sexta-feira, julho 25, 2025

O fascismo que nos habita, por Paulo Baía

Evito utilizar o termo fascista com descuido. Conheço seu peso histórico, suas origens, seus desdobramentos trágicos. Não me refiro, portanto, à caricatura do ditador de farda, mas àquilo que Umberto Eco, com rara lucidez, chamou de Ur-Fascismo: o fascismo eterno, que escapa das páginas dos livros de história e escorre, sorrateiro, para dentro dos nossos cotidianos mais banais. Ele não grita apenas em palanques. Ele sussurra em grupos de whatsapp. Ele aparece, com uma clareza assustadora, nos grupos de associações profissionais, nos fóruns sindicais, nas assembleias de condomínio, nas redes de debates acadêmicos e nas reuniões pedagógicas. Não está à direita apenas, nem se restringe à extrema-direita. Ele habita também os campos da esquerda autodeclarada. Vai da letra A à letra Z no espectro político e ideológico. É uma forma de estar no mundo: arrogante, excludente, dogmática, intolerante ao dissenso.
.
Já vi esse fascismo quando alguém sugere excluir um colega de um grupo por “falar demais”, por “não seguir a pauta”, por “fazer questionamentos desnecessários”. Já o vi em assembleias sindicais onde o contraditório é silenciado pela força dos gritos ou do desprezo. Já o vi em espaços acadêmicos onde catedráticos defendem, com ar professoral, a própria infalibilidade, como se fossem os únicos autorizados a falar, os únicos que pensam, os únicos que compreendem o real. Uns verdadeiros Diáconos da pureza teórica, defensores de uma ortodoxia que transforma ideias em dogmas, principalmente no campo do marxismo petrificado, onde o método vira moral, e qualquer desvio é punido com excomunhão simbólica. São os inquisidores da nova era, zelosos do altar da coerência absoluta, mesmo quando essa coerência se tornou cega, surda e autorreferente.

Esse fascismo cotidiano também se revela no professor que não dialoga, que fala para si mesmo, que reproduz em aula, em rodas de conversa e em fóruns públicos a mesma lógica vertical que diz combater. Ele não se escuta, tampouco escuta os outros. Seu discurso é monólogo. Seu método é imposição. Seu saber é muralha. Esse tipo de comportamento, tão bem diagnosticado por Umberto Eco, se repete em todas as esferas da vida pública e privada. Ele atravessa ideologias e identidades. Ele não precisa de uma ideologia para florescer, basta-lhe a certeza. Basta a convicção de que o outro está errado. Basta o desejo de controlar o espaço, a linguagem, a agenda, o grupo.
.
Há também os que não toleram que os outros sejam lidos ou ouvidos. São aqueles que, ao verem uma postagem que não é sua, correm para publicar dez, quinze links seguidos de portais jornalísticos ou vídeos do YouTube, numa tentativa sistemática de fazer a mensagem alheia desaparecer com a subida artificial de suas próprias postagens. O que os move não é o desejo de contribuir com o debate, mas o de encobrir. É a prática da anulação. É o apagamento por excesso. É o ruído como forma de censura. Nesse gesto, discreto para uns, barulhento para outros, o que se enuncia é: só o que eu posto deve permanecer, só o que eu acredito merece ser lido, só o que eu penso tem valor. O resto deve sumir, afogar-se na torrente do fluxo que eu controlo.

Eco nos alertou que o fascismo eterno não se limita à estética política de regimes clássicos. Ele vive no culto à tradição, na recusa da modernidade, na adoração da força, na intolerância ao diferente, na obsessão pela pureza e na simplificação empobrecedora da linguagem. Ele sobrevive sempre que alguém se julga autorizado a decidir quem pode falar, quem pode estar, quem deve calar. Ele aparece quando há desprezo pela dúvida, quando o pensamento crítico é visto como ameaça, quando a diferença vira inimiga. E é justamente isso que testemunhamos, por todos os lados, em todos os espectros, em todas as tribos.
.
É por isso que não podemos limitar nossa crítica aos fascismos de conveniência, aqueles que reconhecemos quando se manifestam no outro. É preciso coragem para nomeá-lo quando ele emerge entre os nossos, nos nossos campos, nos nossos partidos, nas nossas universidades, nas nossas salas de aula, nos nossos coletivos. O fascismo eterno se alimenta da arrogância moral de quem se acha melhor do que os demais. Ele cresce onde há silêncio, mas também onde há fanatismo. Ele prospera onde a política vira religião, e o argumento, cruz.
.
Não estou dizendo que todas as práticas autoritárias sejam equivalentes. Não se trata de fazer falsas simetrias. Trata-se de reconhecer que a lógica fascista é uma tentação permanente: ela nos seduz com sua promessa de ordem, de pureza, de clareza total. E quando sucumbimos a ela, mesmo com as melhores intenções, estamos contribuindo para o esvaziamento da democracia. Fascismo não é apenas regime. É mentalidade. É hábito. É a escolha de calar o outro ao invés de dialogar. É a decisão de excluir ao invés de escutar.

Por isso, quando vejo alguém pedindo a expulsão sumária de um membro do grupo por divergência de opinião, quando vejo um professor atacar um aluno em público por discordar da bibliografia oficial, quando vejo militantes se destruírem mutuamente por diferenças táticas ou semânticas, penso imediatamente no alerta de Umberto Eco. O fascismo eterno não precisa marchar. Ele apenas precisa que baixemos a guarda, que confundamos convicção com verdade, que confundamos crítica com ataque, que confundamos debate com ameaça. Ele precisa que desejemos a pureza. E a pureza, como nos lembra a história, é um terreno fértil para todas as formas de opressão.
.
Escolho, por isso, não silenciar. Não por heroísmo, mas por lucidez. Escolho falar, mesmo quando a fala incomoda. Escolho reconhecer que o fascismo não está apenas nos outros extremos. Ele se manifesta no centro das relações, nas formas de poder miúdo, nas posturas cotidianas. E só o reconheceremos se estivermos dispostos a desmontar nossas certezas, a abrir espaços para o desacordo, a praticar a escuta, a defender a dúvida. Se há algo que Umberto Eco nos ensinou, é que o fascismo começa sempre com o silêncio cúmplice. E que resistir a ele é, antes de tudo, um exercício de humildade crítica. De convivência real. De coragem cotidiana.
————-

revistaprosaversoearte.com - O fascismo que nos habita, por Paulo Baía
Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
———————
** Leia outros artigos e crônicas do autor publicados na revista. clique aqui
.
Leia também:


ACOMPANHE NOSSAS REDES

ARTIGOS RECENTES