Fato curioso que, da safra recente de filmes brasileiros, “Era o Hotel Cambridge” (2016), de Eliane Caffé, tenha tido pouco destaque em relação a outros filmes. Polêmicas como a que envolveu a não indicação de “Aquarius” para concorrer ao Oscar, o sucesso de “Minha mãe é uma peça 2” e mesmo bons filmes como “Boi Neon” concentraram mais espaço na mídia e nas rodas de discussão, reais ou virtuais.

“Era o Hotel Cambridge”, talvez não tenha recebido as bençãos da crítica que costumeiramente se almeja e tenha tido discreta promoção. Sendo um filme de inegáveis qualidades artísticas, se fosse observado apenas do ponto de vista temático seria o primeiro em qualquer discussão importante. Flime urgente, que aponta para questões não apenas brasileiras, mas mundiais: de uma só tacada, o problema da moradia, dos movimentos de pessoas sem-teto, conjuntamente com o drama dos imigrantes, dos refugiados e da xenofobia.

Eliane Caffé problematiza a necessidade de resistência, e nesse quesito já possuía excelente currículo. Além de ter realizado “Kenoma” (1998) e “O sol do meio dia” (2009), abordou a necessidade de resistir em “Narradores de Javé” (2003), que trata de uma comunidade à beira de desaparecer, ser inundada tal qual a antiga Canudos. A solução é tentar documentar os inúmeros “causos”, a história e folclore locais, para provar a importância da região. A resistência é social, mas sobretudo, cultural: é necessário preservar a memória, as histórias, as versões, a oralidade. Em “Céu sem eternidade” (2011), a diretora abraça o tema das comunidades quilombolas num documentário – outro assunto que ganha espantosa atualidade, após o crescimento assustador da violência no campo em 2017 e com a recente chacina numa comunidade do interior da Bahia.

Essa experiência e preocupação de Eliane Caffé se debruçam sobre “Era o Hotel Cambridge”, com uma narrativa que não se prende a uma trama específica, mais afeita a retratar a atmosfera dos moradores sem-teto, sua luta e suas causas. Obra de ficção que imprime tal realismo em alguns momentos que faz com que as fronteiras porosas com o documentário se dissolvam. Se o elenco conta com gente fenomenal, como o ator-parceiro José Dumont, traz algumas surpresas louváveis. A líder da turma é vivida por Carmen Silva. E logo a surpresa, após ver o filme, que Carmen não é somente uma atriz, mas uma liderança de um movimento social que caiu perfeitamente no papel. Sua atuação no filme é mais que perfeita, e talvez não pudesse ser diferente: Carmen passou a vida inteira, mesmo sem saber se que atuaria num longametragem, se preparando pra esse papel.

Em anexo à questão da moradia, surge o problema dos imigrantes, num Brasil que recebe tantos vecinos latinos, refugiados do Oriente Médio, da África, gente do Haiti. Assunto que não é brasileiro, é global, num mundo em transe, de migrações intensas por toda parte, e que inevitavelmente traz a questão da convivência e da xenofobia (outro item que no Brasil abestalhado após as conspirações de 2016 de repente surge atual, com manifestações esparsas de brutamontes e hunos de toda sorte). Sem falar na bizarra notícia da existência de trabalhadoras domésticas escravizadas das Filipinas em condomínios de luxo em São Paulo, que garante a triste atualidade do filme. Filme que, pelas mesmas razões, mereceria uma difusão maior.

E certamente não foi a intenção da diretora, mas o lançamento de “Hotel Cambridge” ainda coincidiu com a eleição em Sampa (cidade onde se passa a trama) do doidivanas cuja gestão já demoliu prédio com pessoas dentro, acordou moradores de rua com jatos d´água em pleno inverno e criminaliza abertamente qualquer forma de utilização do espaço público como algo… público!, veja-se o banimento de boa parte dos grafites e da arte urbana.

Assim, se há um êxito fundamental em “Hotel Cambridge” está em traduzir problemas e sentimentos globais a partir de uma localidade só, um hotel-cortiço que carrega em si um universo em crise. Cada problema particular, seja dos imigrantes, seja dos despossuídos, é a face de um mundo em transe e aflito dentro das contradições da desigualdade, da esperança no deslocamento, do eterno drama da alteridade, e da incompetência humana para a solução de questões tão antigas como terra, comida e teto. E guardadas as devidas proporções, as preocupações que consagraram os Dardenne, e também Ken Loach e Stephen Frears, já tem no Brasil sua representante.

André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.

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