COLUNISTA

O dengo e a eternidade no toque: crônica da emoção ancestral, por Paulo Baía

A palavra é Dengo. E ela chega acompanhada por um nome que ecoa com o peso da poesia e o brilho do axé: Davi Nunes. Escritor, poeta, contista e pesquisador negro soteropolitano, nascido e forjado em Salvador, Davi é mais que um nome. É voz. É corpo que escreve com os dedos manchados de história. É verbo insurgente na língua que se recusa a se dobrar. É filho da diáspora que, ao invés de sucumbir ao silêncio imposto, grita com beleza. Com beleza que fere. Com beleza que cura.
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Graduado em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia, mestre em Estudos da Linguagem e doutorando em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio, Davi Nunes construiu uma trajetória marcada pelo enfrentamento das palavras e pelas cicatrizes do tempo. É autor de obras essenciais como Zanga (2018), Banzo (2020), o infantil Bucala: A Pequena Princesa do Quilombo do Cabula (2019) e Um Dia Para Famílias Negras (2021), onde cada página é uma travessia, cada verso é um tambor, cada frase é uma memória viva. Sua escrita é uma arqueologia da alma negra. Uma escavação das profundezas onde a afetividade ancestral se encontra com a dor colonial. É palavra que samba. Palavra que chora. Palavra que volta.

Foi dele a definição que se tornou semente e se espalhou feito vento quente no rosto de quem precisa de abrigo. Em seu texto “A palavra não é amor, é dengo”, publicado no blog Duque dos Banzos e difundido em plataformas como o Geledés, Davi Nunes não apenas define o dengo: ele o reconstrói. Ele o reinventa. Ele o reencanta. E é com essa mesma inspiração que esta crônica brota, escorrendo pelas margens da filosofia, da psicanálise, da sociologia e da antropologia como um rio quente de emoção e resistência.
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Porque o dengo, para Davi, é mais do que gesto. É mais do que cuidado. É mais do que carinho. O dengo é “a palavra que dá conta de acoplar a nossa afetividade, no caso do Brasil, de abarcar a batida mandingueira do nosso coração, da magia e poesia do encontro ancestral de negros e negras”. O dengo é palavra de origem banto, nascida da língua Quicongo, forjada no tempo em que ainda se lembrava da África, e sobrevivente do navio negreiro, das senzalas, das favelas, do silêncio. O dengo é insubmisso. Ele escapa dos dicionários brancos. Ele não cabe no léxico da dominação. Ele não se reduz a mimo. É gesto político. É afeto radical. É refúgio e arma.

É o dengo ancestral. O “supremo dengo” que não se dobra ao verniz das boas maneiras. Ele é “a união dos corações em sublimação ancestral”, é “o oriki que arrepia os pelos”, é “o beijo, supremo dengo, libelo de libertação expresso no gesto”. Dengo é o reencontro dos corpos que a diáspora separou. É o refazimento dos quilombos íntimos. É a reconstrução da humanidade que se desfez nas engrenagens do racismo estrutural. É o abraço que atravessa séculos. É a carícia que reconecta continentes. É o afeto que sobrevive à máquina.
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Gaston Bachelard, em sua filosofia da casa, talvez reconhecesse no dengo o espaço primeiro onde a alma se abriga. Dengo como ninho. Como lugar de calor. Como abrigo contra o deserto do mundo. É o fogo que aquece e não queima. O calor que permanece mesmo quando a cidade é gélida. O silêncio que diz: aqui você está seguro. Aqui você pode sentir. Aqui você pode descansar. Bachelard diria que o dengo é a chama original. A chama que precede a palavra. O espaço da ternura que nos protege do colapso do mundo.

Merleau-Ponty, ao fazer do corpo o fundamento do pensamento, talvez dissesse que o dengo é linguagem anterior à linguagem. É gesto que pensa. É toque que comunica. É a subjetividade que se abre para o outro, sem medo de dissolver-se. Dengo é o mundo tornado carne. É o mundo sentido. É a pele dizendo: eu estou viva. E quero que você esteja também. Dengo é corpo em revolta. Corpo que se nega à rigidez. Corpo que quer durar, não apenas resistir.
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E a psicanálise, se escutasse com cuidado os tambores que atravessam a história, entenderia o dengo como retorno do recalcado. Como memória afetiva que insiste em não morrer. Como gesto que escapa da pulsão de morte. Como infância reconquistada. Não aquela romantizada, mas a infância ancestral. Aquela que resiste. Aquela que se reconstrói no colo que não havia. Aquela que reaparece no afeto partilhado. O dengo é o afeto que cura a ruptura. É a carícia que renega o exílio emocional. É o desejo de amar como antídoto contra o mundo que esfria.

Frantz Fanon, o pensador que escancarou os abismos da colonialidade no corpo negro, saberia que o dengo é mais que afeto. É também ressurreição. Fanon escutaria o silêncio das mãos negras que se tocam e diria que ali está a revolução. Que ali está a clínica da cura. Que ali começa a libertação da alma esfolada pela branquitude. Porque o dengo não é só carinho: é ato de insurgência ontológica. É a restituição de um corpo inteiro onde antes havia ferida. É o início da reumanização de sujeitos destituídos pelo discurso colonial. Fanon veria no dengo uma gramática de vida contra a lógica da morte. Uma delicadeza que luta. Um afeto que levanta. Um toque que restitui o direito de existir com ternura.
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O dengo é o que sobrevive à escravidão. É o que não se deixou apagar pelas dores das senzalas. É o que escapou das margens e se infiltrou nos becos das cidades. É o que brilhou nas palmas de quem sambou apesar da repressão. É o que se escondeu nos olhos da mãe que velou seu filho e, mesmo assim, ofereceu um prato de comida. É o que pulsa nos corpos que dançam em roda, nas crianças de trança correndo entre os barracos, no olhar do avô que silencia mas ensina. O dengo é a estética do cuidado reinventado pelas mãos negras. É uma pedagogia da sobrevivência. Um projeto de mundo.
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Ney Lopes, griô das esquinas e alquimista das palavras, já ensinava em seus sambas que o dengo é sabedoria ancestral. É filosofia em forma de música. É orixá no colo. É a língua encantada das mulheres que transformam a dor em beleza. Ney compreende que o dengo é parte do vocabulário de uma resistência sutil, mas poderosa. Não há revolução sem afeto. Não há liberdade sem toque. O samba que ele compõe é um gesto de dengo coletivo. Um abraço cantado. Um axé derramado nas esquinas duras da cidade.

Mansueto, compositor e artista plástico, também desenhou dengos nos becos da arte popular. Ele entendeu que o gesto simples é o mais revolucionário. Que um afago pode ter a força de um manifesto. Que um sorriso pode desmontar impérios. Seus quadros são paisagens de afetos. Seus sambas são convites ao cuidado. Ele não apenas cantou o amor, mas desenhou o afeto. E o dengo se revelou na curva das cores. No compasso do surdo. No silêncio das entrelinhas.
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Ana Maria Gonçalves, em Um Defeito de Cor, fez do dengo um eixo de existência. Kehinde, sua protagonista, negra, escravizada, liberta e lutadora, carrega no corpo as marcas da brutalidade, mas também os gestos de afeto que a salvaram do abismo. O dengo de Ana Maria é ancestral. É sobrevivente. É o gesto que se nega ao endurecimento. A escrita dela é atravessada por uma ternura que não se entrega. Que não se cala. Que resiste com beleza. Porque o dengo é isso: a beleza da resistência.
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O dengo é quando alguém segura sua mão e diz, sem palavras: você importa. É quando o toque carrega a memória dos que nos amaram antes mesmo de nascermos. É quando o afeto não precisa ser explicado. Apenas sentido. O dengo é quando a alma repousa. Quando a cidade recua. Quando o corpo respira. É um instante sagrado no meio da barbárie. Um silêncio que diz mais do que o mundo inteiro.

Há uma pedagogia do dengo. Um modo de ensinar e aprender que escapa aos manuais. Que não se aprende nas escolas, mas no terreiro. No colo. No samba. No chão batido das rodas de conversa. O dengo é o que nos reconstrói quando tudo tenta nos destruir. É a política do cuidado. A ética da ternura. A estética da resistência.
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Dengo é palavra do corpo. Palavra das mãos. Palavra dos olhos. Palavra sem gramática. Palavra que não cabe na norma. É a língua dos ancestrais. É o idioma dos orixás. É o sotaque da pele. É o dialeto do axé. É o gesto que desfaz o nó da alma. É a ternura que reata o fio da vida.
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Dengo é quando a alma encontra casa no corpo do outro. Quando o toque se faz oração. Quando o silêncio tem cheiro de feijão com arroz feito com amor. Quando o tempo desacelera só para que o abraço dure mais um segundo. Dengo é quando o corpo fala a língua da ancestralidade. Quando a pele lembra que foi feita para sentir, não para suportar. Quando o coração bate no compasso do tambor que se recusa a calar. É o axé dos orixás no ressoar de um sorriso. É o quilombo no olhar. É a insurgência do afeto contra o extermínio. É a liberdade que nasce do vínculo.

Na cidade cinzenta e neoliberal, onde tudo é função e produtividade, o dengo é o intervalo que salva. A pausa que impede o colapso. O recuo tático da alma. O gesto que suspende a lógica da guerra. É quando o corpo diz basta. Basta de dureza. Basta de pressa. Basta de solidão. É quando alguém diz: me deixa te cuidar. Me deixa te escutar. Me deixa ser teu chão quando o mundo falhar. E essa entrega não é fraqueza. É força. É estratégia de sobrevivência. É saber que viver é impossível sozinho.
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O dengo preto é mais que carinho. É política. É episteme. É ontologia. É revolução afetiva. É a África que sobreviveu nos gestos cotidianos. É o samba na palma da mão. É a voz que acalenta. É o corpo que ampara. É a dança que convida. É a sabedoria dos mais velhos. É a criança que ainda sonha. Dengo é herança e projeto. É memória e promessa. É a possibilidade de outro mundo dentro deste. É a insurreição da ternura. O levante do amor. O grito sussurrado da liberdade.
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E quando a palavra se aproxima do corpo, quando a linguagem se curva diante da beleza que não se nomeia, o dengo aparece. Como metáfora viva. Como sintaxe de cura. Como semântica da sobrevivência. O dengo é o que resta quando o resto não basta. É o que sobra quando tudo falta. É o que se compartilha mesmo no vazio. E nesse gesto mínimo, inteiro de beleza, mora uma das maiores utopias de nossa era: o desejo de continuar humano. De continuar gente. De continuar sentindo.

Há no dengo uma poética da eternidade. Uma recusa radical do tempo acelerado. O dengo se recusa a correr. Ele quer durar. Ele exige permanência. Não pede pressa, pede presença. Não pede prova, pede entrega. É no dengo que a alma respira. É nele que o corpo encontra morada. É através dele que as cicatrizes são suavizadas. Porque ele não apaga a dor. Mas oferece abrigo para atravessá-la. O dengo é o antídoto contra a secura da alma. Contra o concreto nas relações. Contra a barbárie que habita as estruturas do cotidiano.
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Dengo é quando alguém segura sua mão sem pressa. Quando alguém alisa teu cabelo como quem reza. Quando o corpo deita no outro como quem planta raízes. Quando a lágrima escorre e há um colo que acolhe. Quando o riso explode e há um olhar que acompanha. Dengo é quando a humanidade reaprende a viver dentro de nós. É o gesto que reativa a dignidade dos vencidos. O abraço que reconcilia o mundo com a beleza. O toque que afaga as vozes que o grito calou. A ternura que se arma como lança contra o cinismo.
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E no silêncio profundo onde habita o dengo, ouve-se a canção antiga das águas. O murmúrio dos tambores. O eco das cantigas de embalar. Os passos de quem atravessou o tempo e ainda assim floresceu. Porque o dengo floresce. Mesmo na lama. Mesmo no luto. Mesmo na solidão. Porque o dengo é flor negra que não se curva. É afeto insubmisso. É amor que nunca aceitou algemas. É a batida mandingueira do coração, como disse Davi Nunes. É a magia do reencontro entre os que se reconheceram antes mesmo de se olharem.
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E então compreendemos: o dengo é o nome do milagre possível. É o nome da emoção que resiste à máquina. É a emoção que não recua. É o afeto que luta. É o amor que insiste. E por isso, é política. É filosofia. É poesia. É sobrevivência. E mais que tudo: é beleza. A beleza que não se explica. Que apenas se sente. Como se sente o toque de quem nos ama com verdade. Como se sente o axé que pulsa quando dois corpos se encontram e sabem que vieram de longe, mas chegaram juntos. Como se sente o tempo suspenso no abraço certo. Como se sente o dengo. “O supremo dengo.”
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[Cabo Frio/RJ, 6 de agosto de 2025]
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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