James Ensor - The Intrigue - 1890 (Royal Museum of Fine Arts Antwerp)
Há uma violência educada no cotidiano. Uma disciplina que se veste de rotina e nos treina para o silêncio. Todo dia alguém te pergunta como você vai. Nunca te perguntam por que ainda vai. Que desejo te move. Que ausência te rasga. Que insônia te empurra para fora da cama quando tudo em volta sugere rendição. A vida virou um desfile de máscaras, e o mais bem-vestido é o que mente melhor. A roupa? Serve para disfarçar. O sonho? Serve para libertar. Mas poucos suportam o peso do sonho. Ele exige queimar as roupas que te deram, cuspir as respostas prontas, negar o caminho asfaltado. Sonhar é trair o script.
.
A maioria não sonha: consome. Compra promessas em prestações, aceita a miséria como fado, sorri de cansaço. Mas há os outros. Os que chutam a engrenagem. Os que se recusam a ser engrenagem. Os que tropeçam, caem, sangram, mas não se rendem. Os que guardam um desejo como quem carrega uma bomba no bolso. Não explodem por acaso. Explodem quando percebem que a vida está pequena demais para caber o que sentem. Sonhar, nesses tempos de obediência, virou um ato radical. Um gesto sujo de humanidade.
O mundo desdenha os sonhadores. Chama de ingênuo quem decide não morrer por dentro. Chama de louco quem transforma ruína em semente. Mas é nos olhos dos sonhadores que mora o perigo: eles não temem mais perder. Já perderam tanto, que só lhes resta o absurdo de continuar. E continuam. Com os pés descalços no chão duro. Com o coração costurado à mão. Com o peito exposto à brutalidade do mundo. Cada cicatriz é um protesto. Cada passo é um grito mudo. Cada recusa é um poema sem rima.
.
Não se trata de esperança. Esperar é passivo. Sonhar é insurgente. Quem sonha não espera, age. Reinventa o mapa. Altera as rotas. Atira no escuro e corre atrás da bala. O sonho não é leve, não é fofo, não é instagramável. É pesado, bruto, inconveniente. Arranca a venda dos olhos, sacode a poeira do corpo e desafia o que está posto. Sonhar é dizer não com o corpo inteiro. É negar o possível porque ele foi construído para te conter. É esculpir o impossível com as próprias mãos, sem garantias, sem plateia, sem aplausos.
E não se iluda: sonhar dói. Arde. Desmonta. Desnorteia. Mas é nessa dor que se descobre o que ainda pulsa. O que ainda vale. O que ainda não morreu. Porque quem sonha não está atrás de conforto. Está atrás de sentido. Está atrás de vida, e não de sobrevivência. Enquanto muitos perguntam qual a melhor roupa para a ocasião, os sonhadores perguntam: qual é o incêndio de hoje? Qual é o muro a ser riscado? Qual é o grilhão que ainda nos amarra?
.
Então, sim, eu vou. Com o sonho como ferida aberta, como arma clandestina, como bússola pirata. Vou porque não sei ficar. Porque o mundo como está não basta. Porque há algo em mim que não consente. Porque cada passo meu é uma ofensa à lógica da indiferença. Porque sonhar, neste tempo de normatização e rendição, é a mais bela e perigosa forma de liberdade.
.
[Cabo Frio/RJ, 30 de julho de 2025]
————–
* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
———————
** Leia outros artigos e crônicas do autor publicados na revista. clique aqui
.
Leia também:
O primeiro single, “Antes do Fim”, parceria de Lô Borges e Zeca Baleiro chega nas…
O cantor e compositor Zé Ibarra sobe ao palco do Teatro Riachuelo Rio como a…
A agenda cultural da Estação Motiva Cultural para o segundo semestre de 2025 tem mpb,…
Rodrigo Eberienos entrega releitura vibrante dos clássicos do blues em álbum que celebra o passado…
Não fui ao show de Caetano Veloso com seus filhos. Claro que eu queria ir,…
Entre quintais e arranha-céus, Pablo Lanzoni lança o disco “Aviso de não lugar”. Com produção…