LITERATURA

Nos reinos de Goiás (A vida e suas contradições) – Cora Coralina

O medo é uma presilha e o medroso não sai do lugar.
Estabeleceu um cercadinho limitante e ali se estabeleceu limitado.
O corajoso caminha sempre para a frente,
aceita as paradas e aproveita as ofertas.
E sua tulha transbordará no final.
.
Há um determinismo constrangendo as criaturas.
Minha gente do Estado de Goiás, muitos poderiam estar,
senão ricos, remediados.
Da mudança para Goiânia, suas ofertas, lotes, casas e chácaras,
terrenos baratos em sua volta. Um decreto do Governador
oferecendo lotes na “nova” a todos os proprietários da “velha”
que requeressem no sentido de compensação generosa,
consequente a desvalorização da velha Capital.

Vendedores de lotes a prestação ofereciam de porta em porta,
traziam mapas, informavam.
Na minha terra, seus costumes: batiam no corredor.
A dona da casa mandava espiar pelo buraco da fechadura:
“Se for vendedor de lote de Goiânia, fala que não tem
ninguém em casa…”
Lotes de ótima procedência, prazo longo,
tolerância nos possíveis atrasos,
amortização de vinte mil réis por mês.
Qualquer pobre podia pagar. Rejeitaram esses, os ladinos.
Não acreditavam, tinham medo de perder suas vinte pratas.
Cá ficaram no “ora vejam”.

Os destemidos e crédulos avançaram e estão na crista da valorização
imobiliária. A mesma situação conheci em Andradina.
Vi pessoas entregarem seus lotes à Firma, Moura Andrade.
Outras casas feitas de material. Diziam: “Ah! Seu Andrade quer
é que a gente abra isso aqui pra ele. Depois toma tudo da gente…”
Estão pra lá, e os que acreditaram e tiveram boa-fé, enriqueceram.
A vida e suas contradições.
.
– Cora Coralina, no livro “Vintém de Cobre”. São Paulo: Global Editora, 2012
.
§§

“Faz tempo, queria contar para sua ternura,
essas coisas miúdas que nós entendemos.
Ah! Meu amigo e confrade…
As rolinhas… as últimas, fogo-pagou, cantaram a cantiga
da despedida no telhado negro da Velha Casa.
Cantaram em nostalgia toda uma certa manhã passada.
Olhei. Eram cinco, as derradeiras.
Levantaram vôo e se foram para sempre.”
– Cora Coralina, em trecho do poema “Meu amigo (in memoriam)”, do livro “Vintém de cobre: meias confissões de Aninha”. 6ª ed., São Paulo: Global Editora, 1997, p.187.

Saiba mais sobre Cora Coralina:
Cora Coralina – venho do século passado e trago comigo todas as idades
Cora Coralina (outros poemas)

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Coletivo Alfenim desembarca no Sesc Belenzinho com dois espetáculos e um workshop

Grupo paraibano Coletivo Alfenim apresenta Desertores, inspirado na peça inacabada de Bertolt Brecht, e A…

2 minutos ago

Musical ‘Alice de Cor e Salteado’ estreia temporada no Teatro Estúdio

Inédito no Brasil, o musical Alice de Cor e Salteado transporta o clássico de Alice…

1 hora ago

“Aconteceu com Minha Filha”: Pai lança livro alertando sobre os perigos das redes sociais e das telas

“Aconteceu com Minha Filha” - livro expõe os bastidores de uma luta real contra o…

3 horas ago

O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, retorna ao palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

O Lago dos Cisnes volta ao palco do Municipal do Rio de Janeiro em 2025,…

5 horas ago

Thiago Miranda lança álbum ‘NorDestino’ nas plataformas digitais

O cantor e compositor Thiago Miranda lança o álbum NorDestino, inspirado pela conexão com o…

15 horas ago

Espetáculo ‘Dingo-Dingo’ em única apresentação no Sesc Interlagos

Infância, ancestralidade e cultura Bantu se encontram em Dingo-Dingo, no Sesc Interlagos. Montagem une teatro,…

16 horas ago