LITERATURA

Netinho – Carlos Drummond de Andrade

Se tivesse mais dois anos, chamá-lo-ia mentiroso. No seu verdor, é apenas um ser a quem a imaginação comanda, e que, com isso, dispõe de todos os filtros da poesia.

O que aconteceu, para ele, não conta. O que não aconteceu, sim, pula a todo instante na conversa e logo se materializa, real dentro do real. Geralmente, se lhe perguntamos alguma coisa, a resposta é um ato criador.

— Quem buliu neste açucareiro e sujou a toalha?
— Foi Puck.
— Mas Puck é um cachorrinho de nada, não sobe à mesa.
— Subiu na cadeira.
— Você viu Puck subir?
— Vi, ué.
— E deixou?
— Eu disse assim: Puck, não sobe nessa cadeira não.
— E que foi que Puck lhe respondeu?
— Que tinha vontade de comer um torrãozinho de açúcar.
— Mas você é que comeu torrão de açúcar. Está-se vendo pela sua boca lambuzada.
— É, eu também comi um, mas foi Puck quem deu.

Horas depois:

— Você se lembra? Naquele dia em que Puck me deu um torrão de açúcar…
O tempo ainda não existe em forma fixa. As coisas marcadas para amanhã desenham-se no nevoeiro, ou mergulham no insondável. Prometem-lhe um velocípede.
— Onde está?
— Espere, vem amanhã.
— Por que amanhã nunca é hoje?

E ninguém, de Bergson ao avô, saberia responder-lhe ao certo.

Contudo, uma noção se delineia, da sequência das horas. Conta-nos um fato estranho:

— Quando o céu ficou azul-escuro, e um gato pulou no terraço, e depois o céu virou claro outra vez, eu fui espiar devagarzinho, e o gato tinha comido a máquina de escrever…

Ama as coisas pelo prazer abstrato da posse, menos pelas coisas em si, ou pelo seu uso voluptuoso. Há um lápis.

— Me dá esse lápis pra mim?
— Não posso.
— Me empresta?
— Não posso, preciso dele.
— Ah, me empresta…
— Está bem, empresto.
— Agora ele é meu?
— Seu, não. Emprestado.
— Eu queria tanto um lápis pra mim… Me dá, anda.
— Está bem, pode ficar com ele.
— É meu? Oba!

E joga-o fora, imediatamente.

Não lhe deem brinquedo caro, porque logo o desmonta para brincar com um pedaço qualquer. Dir-se-ia instinto de destruição, comum à espécie. Inclino-me a crer que seja instinto de simplificação e prazer de recriar, em novas bases, a realidade imposta.
Em suma, grande figura, admirável exemplar de todos os garotos da mesma idade em todo o mundo, e só Deus sabe como foi batida esta crônica (se assim podemos chamá-la), enquanto ele montava a cavalo no cronista: upa, upa, cavalinho alazão!

— Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Saiba mais sobre Drummond:
Carlos Drummond de Andrade – antologia poética
Carlos Drummond de Andrade – entrevista inédita: erotismo – poesia e psicanálise
Carlos Drummond de Andrade – fortuna crítica
Carlos Drummond de Andrade – o avesso das coisas (aforismos)
Carlos Drummond de Andrade – poesia erótica
Carlos Drummond de Andrade – um poeta de alma e ofício

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky, retorna ao palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

O Lago dos Cisnes volta ao palco do Municipal do Rio de Janeiro em 2025,…

31 minutos ago

Thiago Miranda lança álbum ‘NorDestino’ nas plataformas digitais

O cantor e compositor Thiago Miranda lança o álbum NorDestino, inspirado pela conexão com o…

11 horas ago

Espetáculo ‘Dingo-Dingo’ em única apresentação no Sesc Interlagos

Infância, ancestralidade e cultura Bantu se encontram em Dingo-Dingo, no Sesc Interlagos. Montagem une teatro,…

12 horas ago

Alaíde Costa lança álbum ‘Uma Estrela Para Dalva’

A cantora e compositora Alaíde Costa lança “Uma Estrela Para Dalva”, álbum com tributo à Dalva…

13 horas ago

Espetáculo ‘Bárbara’ com Marisa Orth estreia curta temporada no Teatro Bravos

Assistida por mais de 70 mil pessoas, Bárbara, estrelado por Marisa Orth, retorna ao Teatro…

14 horas ago

Quinteto Undo lança single ‘Porcos Não Olham Pro Céu’

Em "Porcos Não Olham Pro Céu", quinteto Undo sugere resistência em tempos sombrios. Terceiro single…

14 horas ago