Mia Couto – O caçador de ausências
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Ela é a primeira a visitar-me. Seu corpo não é apenas a primeira memória. Ele é a porta que abre todas as restantes lembranças.
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E foi abençoado por essa saudade que cheguei ao lugar do Vasco. Bati à porta, ele nem atendeu. Não fugiu, nem rugiu. Mandou um miúdo com mensagem da sua ausência: não estava e, além disso, estava ausente. E mais: Vasco Além-Disso Vasco mandara dizer que, agora, residia em incerteza de parte. Ainda insisti: – E Florinha também deu ausência? – Florinha? Não sabe que aconteceu com ela? – Não.
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O miúdo falou que Florinha fugira de casa, numa noite dessas. Diz-se que ela se entranhara na floresta, deambulando sem destino. Ainda lhe seguiram o rasto até à curva do rio. Depois, subitamente, nenhuma pegada, nenhum vestígio, nenhuma gota. Mal soube da fuga, Vasco ordenou que todos espalhassem vigília e desgrenhassem capins e arvoredos.

Enlouquecido passou o mato a pente fino. Pobre homem: abanava a árvore para cair fruto, mas quem tombou foi serpente. A solidão se enroscou, definitiva, no seu viver. E o homem se azedou a pontos de se raivar contra tudo e todos. Quem sabe tinha sido boa fortuna eu ter falhado encontrar-me com esse Vasco? Com certeza, ele me receberia a tiro de espingarda. .

Assim, com saco vazio e alma magra eu me fiz ao mato, ensaiando um arrastoso regresso. Trazia comigo o meu nenhum dinheiro, bolso enchido de sopro. Um céu triste me enevoava. Pela primeira vez, chamava lembranças e a Florinha não comparecia.

Estranhei, com suspeição. Porque ela se tinha retirado da sua ausência? Meu sobressalto tinha razão. Porque, sem saber, um contrabandoleiro me tinha seguido desde a cidade. O malandro sabia, por certo, que eu ia colectar um montante.
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Tomando-me por um zé-alguém, o bandido me emboscou. Saltou de um penhasco, sombra encostando-se-me no corpo. Foi espetando nariz no meu hálito enquanto encostava o cano da espingarda no meu pé. Olhei para baixo, em respeito do medo.

De repente, o valor das minhas partes inferiores se desenhou, superior, ante o meu juízo. Cada pé sustenta mais que uma perna, meio corpo, meia vida. Um pé suporta o passado, outro dá apoio ao futuro. Aquele pé que o matulão me ameaçava, eu sabia, aquele pé dava sustento ao meu futuro.
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– Esse, não. Lhe peço, dispare no outro pé.
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A mão do mautrapilho procurou encosto no meu ombro. Era gozo de tocar-me? Ou seria o gosto de me ver liquedesfazer em tremuras? Eu já fazia descontos na minha vivência, mais vazado que o saco que tremia em meu regaço. Corajoso é o que esquece de fugir? Pois, imóvel fiquei até que se escutou o formidável rugido, clamor de cavernosos dentes. Cruz em peito, credo na boca! O que seria um tal escarcéu? E eis que um leopardo se subitou entre os ramos das árvores. E soou o disparo, tangenciando o instante. Tombei no meio de gritaria. Que se passara? O bandido, tomado de susto, disparou em seu próprio corpo. Tudo se passou em fracção de um “oh” e, no rebuliço, ainda acreditei ver um dedo maiúsculo voando, avulsamente pelo ar. Mas eu já me desencadeara dali, correndo tanto que os quilómetros se juntaram às léguas. Em pulos e tropeços, a distância me foi escudando.

Mas, contudo e porém. Mordido por ter cão, mordendo por não o ter. E eu me salvava de balázio para me perder na escura selva. Salvei-me da boca, metia-me no dente? Olhei em volta e o verde me enleava, pegajoso. Dormi com o relento, lençolei-me com o infinito da estrela. Pensava que era noite de passagem. Mas rodopiei mais noites às voltas, zarantolo. Assisti às quatro estações da lua. Comi raiz, masquei folha, trinquei casca, cuspi-me a mim. Beberiquei orvalhos, na cafeteira da madrugada.
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Já eu tinha perdido contas às manhãs quando ao despertar me rasgou um susto.
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Focinhando em meu rosto estava o leopardo. Minha alma caiu de joelhos, me entreguei a meu próprio fim. O felino achegou–se e estacou a rasar-me o corpo. Olhei seus olhos e estremeci até às lágrimas: ali estavam, serenos e espantosos, os olhos de quem eu nunca me curara de ter amado.

– Florinha! E mesmo debaixo de tontura entreguei meu rosto, meu pescoço ao afago. Tanto que não senti nem dente, nem sangue. Os outros dizem que foi milagre o bicho não consumar em mim sua matadora vocação. Só eu guardo meus secretos motivos.
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Mia Couto, trecho do conto ‘O caçador de ausências’. no livro “O fio das missangas”. Companhia das Letras, 2016

SOBRE O LIVROrevistaprosaversoearte.com - 'O caçador de ausências', um conto de Mia Couto
“A missanga, todos a veem. Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo.” “A vida é um colar. Eu dou o fio, as mulheres dão as missangas. São sempre tantas as missangas.” É assim que o donjuanesco personagem do conto “O fio e as missangas” define a sua existência. Fazendo jus a essa delicada metáfora, cada uma das 29 histórias aqui agrupadas alia sua carga poética singular à forma abrangente do livro como um todo – vale dizer, ao colar em questão. Com um texto de intensidade ficcional e condensação formal raras na literatura contemporânea, Mia Couto demora-se em lirismos que a sua maestria de ourives da língua consegue extrair de uma escrita simples, calcada em grande parte na fala do homem da sua terra, Moçambique, um pouco à maneira de Guimarães Rosa, ídolo confesso do autor. A brevidade das pequenas tramas e sua aparente desimportância épica estão focadas na contemplação de situações, de personagens, ou simples estados de espírito plenos de significados implícitos, procedimento típico da poesia. Os neologismos do autor, a que os leitores já se habituaram, para além de mera experimentação formalista revelam-se chaves fundamentais de interpretação da leitura. Não por acaso, a maioria dos contos de O fio das missangas adentram com fina sensibilidade o universo feminino, dando voz e tessitura a almas condenadas à não-existência, ao esquecimento. Como objetos descartados, uma vez esgotado seu valor de uso, as mulheres são aqui equiparadas ora a uma saia velha, ora a um cesto de comida, ora, justamente, a um fio de missangas. “Agora, estou sentada olhando a saia rodada, a saia amarfanhosa, almarrotada. E parece que me sento sobre a minha própria vida”, diz a narradora de uma dessas belíssimas “missangas” literárias.
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FICHA TÉCNICA
Título: O fio das missangas
Páginas: 152
Formato: 21 x 13.2 x 1.6 cm
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 02/08/2016 (1ª edição)
ISBN: 978-8535927849
Selo: Companhia das Letras
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