por Larissa Roso | Gaúcha ZH
Conheça a história de Jocasta, que passou mais da metade da vida em uma casa-lar de Porto Alegre e foi adotada por um casal do Rio de Janeiro. Agora, a nova família vai morar em Portugal
Ela é adolescente, mas também recém-nascida. Aos 17 anos, Jocasta ainda se atrapalha ao dizer o nome completo, invertendo a ordem dos sobrenomes.
— Felício… Pacheco — arrisca, inconvicta.
— Pacheco Felício! — intervém a mãe, com um sorriso.
— Ela sempre troca — explica à repórter.
O “sempre” nem é tanto assim: Jocasta Pacheco Felício está se adaptando desde o último dia 21 de novembro, quando ficou pronta sua nova certidão de nascimento, expedida pelo 2° Ofício do Registro Civil das Pessoas Naturais da comarca de Porto Alegre. “O conteúdo é verdadeiro. Dou fé”, afiançou o escrevente que assinou o documento, repleto de significados. Jocasta agora é filha de Cleberton Teixeira Felício e Soraia Pacheco de Almeida Silva Felício.
— É muita emoção. Acho que meu coração vai explodir! Preciso de mais um coração — constata Soraia.
Depois de nove anos vivendo em um abrigo, Jocasta — batizada em homenagem à personagem de Vera Fischer na novela Mandala, veiculada pela TV Globo em 1987 — protagoniza o raro enredo da adoção tardia. Via de regra, quanto mais tempo passa e a criança cresce, menores se tornam suas chances de ser escolhida pelos adotantes, que preferem bebês ou crianças pequenas. Primogênita de uma prole de cinco, a menina assumiu a responsabilidade pelos irmãos desde cedo, quando eles ainda moravam com a mãe biológica, que acabaria perdendo a guarda dos filhos por negligência — o pai, ela nem conheceu. Jocasta limpava a casa, lavava as roupas, ordenava a rotina. Eram tantas as demandas que a escola ficou de lado. Atrasada para a idade, ela cursou em 2019 o nono ano do Ensino Fundamental.
Jocasta acompanhou os irmãos começarem a ser adotados (hoje, todos têm novas famílias). Ficava feliz por ver que eram recebidos por pais e mães com amor e carinho estocados em fartura. Mesmo ciente das dificuldades, mantinha a esperança. Religiosa, pedia a Deus, antes de dormir e ao acordar, uma família. Em um momento de cansaço, dias antes de o acaso lhe arrebatar, proferiu uma oração que mais parecia um ultimato:
— Se você não me der uma resposta, eu desisto de ser adotada!
No Rio de Janeiro, Cleber, engenheiro de produção de 44 anos, e Soraia, analista de sistemas, 45, chegaram até o perfil de Jocasta no aplicativo Adoção, do Tribunal de Justiça (TJ) do Rio Grande do Sul em parceria com o Ministério Público Estadual e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), em junho passado. Havia quase três anos, eles se envolviam com os trâmites burocráticos do processo de adoção, as reuniões preparatórias, os programas de busca ativa e as conversas com outros candidatos a famílias substitutas em grupos de WhatsApp. Tomaram a decisão de adotar depois de anos de tentativas de gestação por reprodução assistida. Frustrada e com problemas de saúde, Soraia interrompeu o tratamento.
— Preciso entender qual é a sua intenção: você quer ser mãe ou quer gerar uma criança? — questionou, à época, o marido.
— Ser mãe — respondeu a esposa.
— Então, para ser mãe, tem jeito — incentivou Cleberton.
Levou um tempo até que o casal, junto há quase três décadas, concordasse com a faixa etária pretendida: Soraia desejava um filho entre zero e quatro anos e meio; Cleberton, entre oito e 12. Ela acabou cedendo, e as opções se tornaram mais numerosas. Ansiosa, Soraia não largava o celular, sempre aguardando informações ou analisando possibilidades. “Pode estar aqui o meu filho”, ansiava.
— Olha esse! — falava ela a Cleberton, empolgando-se repetidas vezes. — Olha esse!
Não chegaram a conhecer nenhum possível filho pessoalmente. Quando se interessavam por alguém, descobriam que já havia casais em uma fila de espera. Depois de baixar o app, a analista de sistemas visualizou fotos e vídeos de crianças e adolescentes à espera de um lar até decorar as carinhas, repassando os perfis sem parar, por uma semana. E então deparou com a menina gaúcha. “Jocasta! Que nome forte”, pensou ela, em uma manhã de junho, antes de começar a trabalhar.
Surpreendeu-se com a desenvoltura da adolescente diante da câmera. “Quero estudar, fazer faculdade de Arquitetura, porque eu gosto de matemática e também porque eu gosto dessas coisas de beleza… tanto de pessoas quanto de casas. Gosto de ver filme”, descrevia a garota no vídeo. “Eu quero ter conselhos de uma mãe e de um pai, uma coisa que eu não tive em toda a minha vida. Eu estou desde pequenininha na casa-lar”, seguiu ela, acrescentando que desejava conhecer os Estados Unidos com seus “futuros pais” e frequentar a universidade lá. “Quem já estiver olhando (esse vídeo) eu já tô amando, entendeu?”. Um trecho da gravação é especialmente tocante: ao deslocar o advérbio na frase, Jocasta dá uma ênfase peculiar ao desejo: “Eu gostaria de ser muito adotada”.
Em casa, Soraia passou o celular ao marido, que era taxativo: não aceitaria adolescentes, temeroso de não saber lidar com rompantes de rebeldia. Apesar de Jocasta informar a idade no início do vídeo, Cleberton assistiu até o fim. O engenheiro também foi fisgado. Juntos, os dois clicaram em “interesse em adotar”.
Em julho, Cleberton e Soraia vieram pela primeira vez a Porto Alegre. Partiram levando um dossiê sobre a menina, para que soubessem mais detalhes da trajetória dela. Pediram-lhes que dedicassem alguns dias a refletir antes de dar a resposta final sobre a menina. Soraia não teve dúvidas ao folhear aquelas páginas:
— Senti que era a nossa filha.
Na viagem seguinte ao Rio Grande do Sul, os três se encontraram em uma sala do Foro Central. Nos abraços, Cleberton e Soraia perceberam que Jocasta tremia. A sensação de pertencimento que a adolescente experimentava havia surgido no momento em que pusera os olhos, pela primeira vez, em fotos do casal e da residência que passaria a ser seu endereço na capital fluminense, com um quarto só para ela.
— Na hora, caiu minha ficha: agora eu tenho uma família. Agora é a minha vez! — recorda.
Jocasta tinha um compromisso em seguida: uma feira de ciências no colégio que frequentava na Zona Norte. Seria o primeiro passeio da recém-formada família. O engenheiro conduzia um carro alugado com a ajuda de um aplicativo de trânsito, e Jocasta contestava todas as indicações dadas pela voz robotizada do navegador. Tentava chamar Cleberton de pai, mas não conseguia.
— Aí não, tio! Vira à esquerda! Ai, tio não… é que eu não estou acostumada a chamar ninguém de pai — confidenciou durante o trajeto.
— Tio! Titio! Não, tio não… — confundiu-se de novo.
Para a surpresa de Cleberton, que julgava que a garota não conhecia nada da cidade por viver confinada no abrigo, Jocasta estava certa nas orientações. Ao chegar, os novatos temiam que a filha pudesse ter algum constrangimento com a presença deles entre os colegas de aula. Nada disso. Todos já haviam sido avisados sobre a visita. Era como se Cleberton e Soraia, que não conseguia parar de chorar, fossem celebridades a circular pela Escola Estadual de Ensino Fundamental Poncho Verde.
— Aqueles são os pais da Jocasta! — apontavam alunos e professores.
Jocasta reforçava a novidade:
— Esses são meus pais!
Dali em diante, acumularam-se primeiras vezes: viagem de avião com os pais, Rio de Janeiro, o quarto novo só para ela, assistir a filmes com o pai e a mãe até pegar no sono, viagem de avião sozinha. No início de 2020, outra grande aventura aguarda a família Felício: o trio — mais os cinco gatos de estimação — embarcará em 31 de janeiro para Portugal, onde Soraia cursará doutorado na Universidade do Porto. A mudança ainda é uma abstração para Jocasta, que teve pouco tempo para introjetar tantas novidades. Perguntada se sabe apontar no mapa o país onde vai residir por pelo menos três anos, ela ri e confessa que não. Cleberton explica estar sendo cuidadoso para evitar que a adolescente não se sinta soterrada por tantas informações.
— Até Portugal, não são só duas horas de voo. São 10. Não vamos conseguir viajar para Porto Alegre com tanta frequência. Estamos em uma fase de não criar grandes expectativas para não sofrer grandes frustrações — pondera o engenheiro.
Na entrevista concedida a GaúchaZH, em 16 de dezembro, horas antes da realização de uma festinha de despedida na casa-lar onde Jocasta passou mais da metade da existência, eram evidentes o bom entrosamento e o afeto entre os três. Mais cedo, o pai havia saído em busca de pão de queijo, que a filha adora, para o café da manhã. Como se cuidasse de um bebê, Soraia trazia consigo o leite que Jocasta ainda não tinha tomado. Brincalhão, o carioca Cleberton entica com a filha, a todo instante, por conta do sotaque e das letras “s” engolidas na formação dos plurais, algo tipicamente gaúcho:
— “Puxa meus pé”, ela me pede, para acordá-la de manhã — entrega o pai.
— “Bah, mas agora ela tá tri bem!” — continua ele, ao comentar que Jocasta conseguiu enfrentar o medo de altura e não teme mais as viagens aéreas.
Coordenadora da Infância e da Juventude do Estado, Nara Saraiva revela estar feliz e emocionada com mais um processo bem-sucedido de aproximação por meio do app Adoção. A ideia, reforça a juíza, é viabilizar mais mudanças como as de Cleberton e Soraia.
— Muitos pretendentes buscam a adoção do recém-nascido ou da criança pequena. Temos muitas dificuldades de encaminhamento das crianças com um pouco mais de idade, de adolescentes ou de grupos de irmãos. Com o aplicativo, o pretendente assiste ao vídeo, verifica a foto. No dia do encontro, possibilitamos que ele conviva com essa criança ou com esse adolescente. O pretendente pode vir a se sensibilizar e alterar o perfil (pretendido). A partir do momento em que convive e conhece, ele eventualmente se apaixona. Ninguém ama o que não conhece — afirma Nara.
Antes de ver a filha diante de si, Soraia não esperava ser chamada de mãe tão cedo. Para sua surpresa, foi assim que Jocasta se dirigiu a ela desde o princípio. Três dias depois de se conhecerem, a menina parabenizou Soraia pelo aniversário com uma frase arrebatadora: “Você foi a melhor coisa que aconteceu quando eu não esperava mais”. Agora, Cleberton se diverte:
— Se você tinha o sonho de ser chamada de mãe, já deve estar entrando em desespero. É “‘mãe, mãe, mãe, mãe, mãe'” a toda hora!
O aplicativo Adoção
- O aplicativo Adoção é uma iniciativa do Poder Judiciário em parceria com o Ministério Público do Estado e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
- Como a maior procura dos adotantes é por recém-nascidos e crianças pequenas, a plataforma tem como objetivo promover a adoção de quem encontra maior dificuldade em ser adotado: crianças maiores, adolescentes, crianças e adolescentes com deficiência e grupos de irmãos.
- O app apresenta, além das informações básicas, fotos e vídeos de quem está à espera de uma família substituta.
- Disponível nas versões Android e iOS, o app pode ser baixado nas lojas Google Play e Apple Store.
- Os interessados precisam estar cadastrados no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).
- Mais informações podem ser obtidas pelo e-mail [email protected].
*com informações Gaúcha ZH.