Há nomes que não apenas nomeiam, mas fundam. Nomes que se tornam território, bandeira, totem, tambor. Marquinhos de Oswaldo Cruz é desses. Seu nome não é ornamento artístico: é gesto fundacional. É o tambor que ecoa no vale profundo da exclusão. É palavra acesa num país que tantas vezes insiste em apagar. Ao inscrever no próprio corpo o nome de seu bairro, Marquinhos fez da geografia um pacto, da história um sobrenome, do chão um altar de pertencimento. “De Oswaldo Cruz” não é um endereço: é um manifesto. Um emblema contra o esquecimento. Uma contra-cartografia da cidade mutilada.
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Marquinhos não apenas canta: ele funda trilhos de memória. Não apenas compõe: ele semeia comunidades. Não apenas existe: ele insurge. É mais que um sambista. É um ator público no mais denso e pleno sentido da expressão. É político, sim. Político no sentido mais profundo, altruísta, generoso, democrático e republicano que esse termo pode carregar. Não o político da barganha, mas o político do encontro. Do cuidado. Da escuta. Da restauração da dignidade. Marquinhos é o sacerdote de um tempo novo. Um sacerdote laico, popular, ancestral. Um grito que atravessa os séculos de silenciamento. Um zelador da dignidade negada a milhões de escravizados e seus descendentes. Um construtor de futuro pelas mãos da cultura e da memória.
Desde jovem, com as mãos já suadas de tamborim, Marquinhos escolheu o caminho da fidelidade ao samba de raiz. Quando isso significava virar o rosto para o mercado, suportar o silêncio da indústria fonográfica, ver-se ausente dos palcos da grande mídia. Sua decisão é mais que estética: é uma decisão ética. Uma ética forjada nos becos, nos terreiros, nas rodas, nos quintais. É a recusa de se render à lógica da mercadoria. É o compromisso com a continuidade de uma linguagem coletiva, nascida da dor, da festa, da oralidade e do sagrado. Em Uma Geografia Popular (2000), seu primeiro disco, já se delineia com precisão sua visão de mundo: o samba como mapa da resistência, como elo entre corpos dispersos, como reinvenção do território. O samba, ali, é linha que conecta Tia Doca à Central do Brasil, o Jongo da Serrinha ao Atlântico do tráfico, a dor ao canto, a memória ao futuro.
Sua obra musical é extensão de sua missão. Em Uma África chamada Rio de Janeiro (2022) e em Agbo Ato (2025), Marquinhos se aprofunda como cartógrafo da ancestralidade. Desafia o apagamento histórico com melodias insurgentes. Honra os saberes africanos. Evoca os orixás. Descoloniza os ritmos. Subverte o mercado. Restaura no samba sua essência mais originária: ser expressão de uma humanidade ferida, mas nunca vencida. Ainda que sua música circule por grandes gravadoras, como a Deckdisc, não há concessão. É o mercado que se curva. Marquinhos obriga o espetáculo a reverenciar a dignidade. Seus palcos são trincheiras do sagrado.
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Mas sua atuação política transcende a música. Sua obra é territorial, é pública, é sensorial. Em 1995, fundou o Trem do Samba, que não é apenas evento, mas gesto de refundação simbólica da cidade. Uma proposta de reparação histórica. No dia 2 de dezembro, trens partem da Central do Brasil rumo a Madureira e Oswaldo Cruz, lotados de músicos e de povo, convertendo os vagões em rodas de samba, as estações em altares populares. O que era símbolo da modernidade segregadora se transforma em rito de comunhão. É celebração, mas também denúncia. É memória e insurgência. É pedagogia do território e do pertencimento. Marquinhos inscreve o subúrbio na narrativa oficial, exige escuta, restitui o lugar roubado.
E não para aí. Em 2008, cria a Feira das Yabás, onde o centro da celebração são as matriarcas. As mães de santo, cozinheiras, contadoras de histórias, guardiãs dos quintais. Mulheres tantas vezes silenciadas tornam-se protagonistas. A praça Paulo da Portela vira terreiro, altar e mesa. Ali se cozinha memória. Se canta dignidade. Se serve resistência com tempero e afeto. A feira, hoje patrimônio imaterial do Rio, é muito mais do que o título que a reconhece. É saber comunitário em ato. É a sabedoria das anciãs convertida em rito popular. É um projeto estético que é também ético. Uma pedagogia dos afetos. Uma política do cuidado.
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Marquinhos é ator público no mais alto grau da palavra “público”. Ele transforma sua atuação estética em projeto político. Não ocupa gabinetes, mas ocupa mentes e corações. Não legisla por decretos, mas por melodias. Seu ativismo é espiritual e concreto. É coletivo e visceralmente pessoal. Atua na contramão da institucionalidade burocrática. Sua política é a do chão, da escuta, da constância, da poesia cotidiana. Seu corpo é presença política. Sua voz é instrumento de educação popular. Seu canto é ferramenta de resgate. Sua presença é um projeto civilizatório.
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Ao incorporar a cosmovisão africana, Marquinhos desmonta as estruturas de embranquecimento da música popular. Seus versos em iorubá, sua viagem à Nigéria, seus cantos aos orixás são práticas de reconexão com o continente-mãe. Não são adereços: são alicerces. São modos de devolver ao samba a sua espiritualidade, seu caráter filosófico e sua potência política. Reinstala o terreiro como centro estético. Recoloca o corpo negro como sujeito, e jamais objeto, da história. Marquinhos não representa a ancestralidade: ele a habita. Ele não fala por ninguém: fala com todos.
Em 2024, com a publicação do livro Trem do Samba: memórias vividas e sonhadas, prefaciado por Milton Cunha, Marquinhos transfere à palavra escrita o mesmo poder de sua música. O livro é mais que registro: é documento de insurgência. Um gesto de generosidade intelectual. Um altar de lembranças insurgentes. Um chamado às novas gerações. Marquinhos escreve como canta: com alma, com história, com o sangue da memória correndo pelas páginas.
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E mesmo ao circular pelos palcos da grande indústria, pelos festivais, pela televisão, sua integridade permanece intacta. Sua presença nesses espaços é conquista do coletivo. Ele carrega as vozes do subúrbio, os cheiros da panela, os tambores do quintal. Não se adapta: resiste. Não se molda: transforma. Sua arte é insurgência afirmativa. Sua travessia pela indústria cultural é vitória da persistência e da fidelidade. É o Brasil profundo dizendo: não esquecemos, não recuamos, não nos calamos.
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Marquinhos de Oswaldo Cruz é cantor, compositor, curador, educador, contador de histórias, organizador de memórias, ativista popular, sacerdote de uma política do afeto e da ancestralidade. Ele não separa estética de ética. Não divide beleza de justiça. Seu samba é reza, sua roda é templo, sua palavra é tambor. Ele transforma a cidade a partir do samba, da comida, do afeto e da escuta. Sua política é dança, é cheiro de dendê, é lembrança que vira chão, é resistência que sorri. Ele é griot, e esse nome precisa ser dito com o respeito que carrega séculos de sabedoria negra. Griot é aquele que guarda a palavra sagrada, que transmite os saberes da oralidade, que costura passado e presente para que o futuro exista. É o educador popular, o contador de histórias, o filósofo da rua, o ancestral que caminha entre nós para que o povo jamais se perca de si mesmo. No Brasil, onde tantas vezes se tentou calar as vozes negras, o griot é um ato de insurreição. É um mestre da memória e do cuidado. Marquinhos é isso: griot no corpo e na alma. Ele canta para que não esqueçamos. Ele escreve para que se lembrem. Ele cozinha para que nos reconectemos. Ele dança para que o chão se reconheça. Ele é griot de um Brasil ancestral que não se ajoelha. É farol aceso na noite da cidade. É orixá de carne e canto. É tambor que não se cala. É verbo que cura. É tempo que resiste. É o Brasil profundo que canta, caminha e não se rende.
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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