Poeta foi jornalista e traduziu Marcel Proust
por Moacyr Scliar* – especial para a Folha**

Mario Quintana nasceu a 30 de julho de 1906, na cidade de Alegrete (que os gaúchos preferem dizer: do Alegrete, no sotaque de fronteira). Uma noite muito fria, como são as noites do inverno gaúcho: um grau negativo.

Para comemorar, os irmãos resolveram comprar rapadura no mercadinho da esquina: “Quer dizer, eu fui saudado com duas rapaduras de quatro vinténs”, diz o poeta. Menos prosaicamente, ele lembra que “…no calendário chinês sou cavalo; no ocidental, leão, e no asteca, chuva”.

De um gaúcho da fronteira –região que foi conquistada a ferro e fogo aos espanhóis– se esperaria que preferisse os dois primeiros símbolos; mas Mario é poeta, e prefere a chuva, que lhe lembra o arco-íris e a sua composição favorita, a “Quarta Sinfonia”, de Gustav Mahler.

O pai enviou-o a Porto Alegre, para estudar no Colégio Militar. Gostava de português, francês e história, e era sempre reprovado em matemática: detestava a raiz quadrada e (mais anda) a cúbica, mas gostava de álgebra porque “lida com letrinhas”. Lidar com as letras: uma vocação que se manifestou cedo: aos 13 anos publica seus primeiros textos na “Hyloea”, revista dos estudantes do Colégio Militar.

Mas os fracassos escolares acabaram exasperando o pai. O farmacêutico Celso de Oliveira Quintana era um homem severo: “Filho vagabundo, não quero”.

Apesar de Mario estar empregado como caixeiro na tradicional livraria do Globo, exigiu que ele voltasse ao Alegrete para trabalhar na farmácia. Queria que o filho se tornasse doutor, não poeta.

Anos depois, Mario escreveria em memória do pai o poema “O Velho no Espelho”:
“Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse/que me olha, e é tão mais velho que eu?/ (…) Parece/meu velho pai –que já morreu!/(…) Nosso olhar –duro– interroga:/”O que fizeste de mim/” Eu, Pai/ Tu é que me invadiste./ Lentamente, ruga a ruga… Que importa/ Eu sou ainda /aquele mesmo menino teimoso de sempre/ e os teus planos enfim lá se foram por terra/mas sei que vi, um dia –a longa, a inútil guerra!– vi sorrir nesses cansados olhos/um orgulho triste…”

Em 1926, morre a mãe, Virginia de Miranda Quintana, e no ano seguinte, o pai; em 1927, ele tem um poema publicado na revista “Para Todos” do Rio dirigida pelo cronista (gaúcho) Alvaro Moreyra.

Voltou para Porto Alegre e passou a trabalhar num jornal político-partidário, “O Estado do Rio Grande”: “Eu achava muito chato. Então resolvi fazer um título em três colunas, rimado: um alexandrino, um decassílabo, um setissílabo”. Raul Pilla, dono do jornal, ficou irritado: “O título nada tinha a ver com a matéria –por acaso Mario não lia o jornal?” “Eu não lia mesmo. Afinal, trabalhava nele.”

Em 1930, começa a colaborar para a tradicional “Revista do Globo”. No mesmo ano estoura a revolução: alista-se como voluntário no Sétimo Batalhão de Caçadores e parte para o Rio, onde fica seis meses. Lá conhece Cecilia Meirelles, “a poesia em pessoa”.

1934 é um ano importante. Mario começa a trabalhar na Editora Globo, que era um importante centro intelectual. Sob a direção de Henrique Bertaso, que tinha a assessoria de Erico Veríssimo e outros escritores, a Globo lançava no Brasil os grandes autores da atualidade.

Excelente tradutor, Mario teve aí uma grande oportunidade. Fluente em inglês e francês, traduziu Somerset Maugham, Joseph Conrad, Aldous Huxley, Virginia Woolf, Guy de Maupassant, e sobretudo Marcel Proust com “aqueles períodos que dão volta à esquina”.
Em 1940 vem a consagração com os sonetos de “A Rua dos Cataventos” (Ed. Globo) Em 1943 outro passo importante: Mario introduz a poesia no jornal, criando uma seção chamada “Do Caderno H”. Publicada a princípio na revista “Província de São Pedro” e depois no tradicional “Correio do Povo” (1953) cativa o público leitor.

E os livros se sucedem: “Canções” (Ed. Globo, 1946), “Sapato Florido” (prosa e verso, Ed. Globo, 1948). “O Batalhão das Letras” (infantil –Mario sempre teve um enorme público infantil– Ed. Globo, 1948) “O Aprendiz de Feiticeiro” (Ed. Fronteira, 1950), “Espelho Mágico” (Ed. Globo, 1951, com orelha de Monteiro Lobato), “Caderno H” (Ed. Globo, 1973) “Pé de Pilão” (infantil – Ed. Globo, 1975), “Apontamentos de História Sobrenatural” (Ed. Globo, 1976) “Esconderijos do Tempo” (Ed. L&PM, Porto Alegre, 1980).

E também se sucedem os prêmios e homenagens, aos quais reagia com bom humor. Recebendo o título de cidadão honorário de Porto Alegre na Câmara de Vereadores (1967): “Antes, ser poeta era uma agravante, depois passou a ser uma atenuante e agora é uma credencial”.

Palavras suas, no busto com que a Prefeitura de Alegrete o homenageou (1968): “Um engano em bronze é um engano eterno”.

Pessoa muito simples, afável (costumava passear, quando tinha mais saúde, pelo centro de Porto Alegre, recebendo as homenagens dos porto-alegrenses) foi amigo de Drummond, Paulo Mendes Campos, Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira, que sobre ele escreveu um poema famoso:

“Meu Quintana, os teus cantares/não são, Quintana, cantares/ são, Quintana, quintanares./ Quinta-essência de cantares/insólitos, singulares…/Cantares? Não! Quintanares!”
E Érico Veríssimo, na introdução a “Pé de Pilão”: “Descobri outro dia que o Quintana é na verdade um anjo disfarçado de homem. Às vezes, quando ele se descuida ao vestir o casaco, suas asas ficam de fora. Ah! Como anjo, o seu nome não é Mario e sim Malaquias…”

*MOACYR SCLIAR, gaúcho, foi escritor e médico sanitarista. Entre seus livros mais importantes estão os romances “A Guerra no Bom Fim” (1972), “Cenas da Vida Minúscula” (1991) e os volumes de contos “Histórias da Terra Trêmula” (1977) e “A Orelha de Van Gogh” (1989). Saiba mais AQUI!

**Originalmente publicado em Folha de S. Paulo, 6 de maio de 1994.







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