A estrela
Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.

Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.

Porque da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Porque tão alta luzia?

E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.
– Manuel Bandeira, do livro “Lira dos cinquent’anos”, 1940.

§

A lua
A proa reta abre no oceano
Um tumulto de espumas pampas.
Delas nascer parece a esteira
Do luar sobre as águas mansas.

O mar jaz como um céu tombado
Ora é o céu que é um mar, onde a lua,
A só, silente louca emerge
Das ondas-nuvens toda nua.
– Manuel Bandeira, do livro “Estrela da tarde”, 1960.

§

A morte absoluta
Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
a exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
que apodrecerão — felizes! — num dia,
Banhada de lágrimas
Nascida menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante…
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: “Quem foi?…”

Morrer mais completamente ainda
— Sem deixar sequer esse nome.
– Manuel Bandeira, do livro “Lira dos cinquent’anos”, 1940.

§

A rosa
A vista incerta,
Os ombros langues,
Pierrot aperta
As mãos exangues
De encontro ao peito.

Alguma cousa
O punge ali
Que ele não ousa
Lançar de si,
O pobre doido!

Uma sombria
Rosa escarlata
Em agonia
Faz que lhe bata
O coração…

Sangrenta rosa
Que evoca a louca,
A voluptuosa
Volúvel boca
De sua amada…

Ah, com que mágoa,
Com que desgosto
Dois fios de água
Lavam-lhe o rosto
De faces lívidas!

Da veste branca
À larga túnica
Por fim arranca
A rosa púnica
Em um soluço.

E parecia,
Jogando ao chão
A flor sombria,
Que o coração
Ele arrancara!…
– Manuel Bandeira, do livro “Carnaval”, 1919.

§

À sombra das araucárias
Não aprofundes o teu tédio.
Não te entregues à mágoa vã.
O próprio tempo é o bom remédio:
Bebe a delícia da manhã.

A névoa errante se enovela
Na folhagem das araucárias.
Há um suave encanto nela
Que enleia as almas solitárias…

As coisas tem aspectos mansos.
Um após outro, a bambolear,
Passam, caminho dágua, os gansos.
Vão atentos, como a cismar…

No verde, à beira das estradas,
Maliciosas em tentação,
Riem amoras orvalhadas.
Colhe-as: basta estender a mão.

Ah! fosse tudo assim na vida!
Sus, não cedas à vã fraqueza.
Que adianta a queixa repetida?
Goza o painel da natureza.

Cria, e terás com que exaltar-te
No mais nobre e maior prazer.
A afeiçoar teu sonho de arte.
Sentir-te-ás convalescer.

A arte é uma fada que transmuta
E transfigura o mau destino.
Prova. Olha. Toca. Cheira. Escuta.
Cada sentido é um dom divino.
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

A vida assim nos afeiçoa
Se fosse dor tudo na vida,
Seria a morte o grande bem.
Libertadora apetecida,
A alma dir-lhe-ia, ansiosa: — “Vem!

Quer para a bem-aventurança
Leves de um mundo espiritual
A minha essência, onde a esperança
Pôs o seu hálito vital;

Quer no mistério que te esconde,
Tu sejas, tão-somente, o fim:
— Olvido, imperturbável, onde
Não restará nada de mim!”

Mas horas há que marcam fundo…
Feitas, em cada um de nós,
De eternidades de segundo,
Cuja saudade extingue a voz.

Ao nosso ouvido, embaladora,
A ama de todos os mortais,
A esperança prometedora,
Segreda coisas irreais.

E a vida vai tecendo laços
Quase impossíveis de romper:
Tudo o que amamos são pedaços
Vivos do nosso próprio ser.

A vida assim nos afeiçoa,
Prende. Antes fosse toda fel!
Que ao se mostrar às vezes boa,
Ela requinta em ser cruel…
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

Água-forte
O preto no branco,
O pente na pele:
Pássaro espalmado
No céu quase branco.

Em meio do pente,
A concha bivalve
Num mar de escarlata.
Concha, rosa ou tâmara?

No escuro recesso,
As fontes da vida
A sangrar inúteis
Por duas feridas.

Tudo bem oculto
Sob as aparências
Da água-forte simples:
De face, de flanco,
O preto no branco.
– Manuel Bandeira, do livro “Lira dos cinquent’anos”, 1940.

 

§

Ao crepúsculo
O crepúsculo cai, tão manso e benfazejo
Que me adoça o pesar de estar em terra estranha.
E enquanto o ângelus abençoa o lugarejo,
Eu penso em ti, apaziguado e sem desejo,
Fitando no horizonte a linha da montanha.

A montanha é tranqüila e forte, e grande e boa.
Ela afaga o meu sonho. E alegra-me pensar
(Tanto a saudade a um tempo acalenta e magoa!)
Que tu, na doce paz da tarde que se escoa,
Teces o mesmo sonho, ouvindo e vendo o mar.

Embalada na voz do grande solitário,
Tu mortificarás teu casto coração
Na dor de revocar o noivado precário.
(Ah, por que te confiei o meu desejo vário?
Por que me desvendaste a tua sedução?)

Se nos aparta o espaço, o tempo — esse nos liga.
A lembrança é no amor a cadeia mais pura.
Tu tens o grande Amigo e eu tenho a grande Amiga:
O mar segredará tudo o quanto eu te diga,
E a montanha, dir-me-á tua imensa ternura.
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

As três Marias
Atrás destas moitas,
Nos troncos, no chão,
Vi, traçado a sangue,
O signo-salmão!

Há larvas, há lêmures
Atrás destas moitas.
Mulas-sem-cabeça,
Visagens afoitas.

Atrás destas moitas
Veio a Moura-Torta
Comer as mãozinhas
Da menina morta!

Há bruxas luéticas
Atrás destas moitas,
Segredando à aragem
Amorosas coitas.

Atrás destas moitas
Vi um rio de fundas
Águas deletérias,
Paradas, imundas!

Atrás destas moitas…
— Que importa? Irei vê-las!
Regiões mais sombrias
Conheço. Sou poeta,
Dentro dalma levo,
Levo três estrelas,
Levo as três Marias!
– Manuel Bandeira, do livro “Belo belo”, 1948.

§

Boda espiritual
Tu não estás comigo em momentos escassos:
No pensamento meu, amor, tu vives nua
— Toda nua, pudica e bela, nos meus braços.

O teu ombro no meu, ávido, se insinua.
Pende a tua cabeça. Eu amacio-a… Afago-a…
Ah, como a minha mão treme… Como ela é tua…

Põe no teu rosto o gozo uma expressão de mágoa.
O teu corpo crispado alucina. De escorço
O vejo estremecer como uma sombra nágua.

Gemes quase a chorar. Suplicas com esforço.
E para amortecer teu ardente desejo
Estendo longamente a mão pelo teu dorso…

Tua boca sem voz implora em um arquejo.
Eu te estreito cada vez mais, e espio absorto
A maravilha astral dessa nudez sem pejo…

E te amo como se ama um passarinho morto.
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

Canção do vento e da minha vida
O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.

O vento varria as luzes
O vento varria as músicas,
O vento varria os aromas…
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De aromas, de estrelas, de cânticos.

O vento varria os sonhos
E varria as amizades…
O vento varria as mulheres.
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De afetos e de mulheres.

O vento varria os meses
E varria os teus sorrisos…
O vento varria tudo!
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De tudo.
– Manuel Bandeira, do livro “Lira dos cinquent’anos”, 1940.

§

Confidência
Tudo o que existe em mim de grave e carinhoso
Te digo aqui como se fosse ao teu ouvido…
Só tu mesma ouvirás o que aos outros não ouso
Contar do meu tormento obscuro e impressentido.

Em tuas mãos de morte, ó minha Noite escura!
Aperta as minhas mãos geladas. E em repouso
Eu te direi no ouvido a minha desventura
E tudo o que em mim há de grave e carinhoso.
– Manuel Bandeira, do livro “Carnaval”, 1919.

§

Contrição
Quero banhar-me nas águas límpidas
Quero banhar-me nas águas puras
Sou a mais baixa das criaturas
Me sinto sórdido

Confiei às feras as minhas lágrimas
Rolei de borco pelas calçadas
Cobri meu rosto de bofetadas
Meu Deus valei-me

Vozes da infância contai a história
Da vida boa que nunca veio
E eu caia ouvindo-a no calmo seio
Da eternidade.
– Manuel Bandeira, do livro “Estrela da Manhã”, 1936.

§

Crepúsculo de outono
O crepúsculo cai manso como uma bênção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito…
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura inânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale… o horizonte purpúreo…
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

Delírio
Que será que desperta em mim neste momento
Uma inquietação que é quase uma agonia?
Há um soluço lá fora… É o soluço do vento,
E parece sair de minhalma sombria.

Por que, na solidão desta tarde que morre,
Sinto o pulso bater em pancadas de medo?
Por que de instante a instante uma lembrança ocorre,
A que estremeço como a um terrível segredo?

Por que pensei em minha mãe agonizante?
Por que me acode a voz daquele amigo morto?
Será a sombra da morte aquela névoa errante,
E morrerei desamparado e sem conforto?…

Como a casa é deserta! E como a tarde é fria!
Plange cada vez mais o soluço do vento,
E parece sair de minhalma sombria.
Desânimo… Desesperança… Desalento…

Mãos femininas… Mãos ou de amantes ou de esposa,
Quem me dera sentir em minha árida fronte
O aroma que impregnais, tocando, em cada cousa…
A carícia da brisa… A frescura da fonte…

Mas nenhuma virá, no instante em que me morro,
Dar-me a consolação deste longo martírio.
Nenhuma escutará o grito de socorro
Do meu penoso, do meu trágico delírio.

Que me importa o passado? À minha natureza
Repugna essa volúpia enorme da saudade.
Ó meu passado, ruinaria sem beleza!
Eu abomino a tua escura soledade.

O tempo… Horas de horror e tédio da memória….
Ah, quem mo reduzira ao minuto que passa,
— Fosse ele de paixão inerte e merencória,
Na solitude, no silêncio e na desgraça!
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

Desalento
Uma pesada, rude canseira
Toma-me todo. Por mal de mim,
Ela me é cara… De tal maneira,
Que às vezes gosto que seja assim…
É bem verdade que me tortura
Mais que as dores que já conheço.
E em tais momentos se me afigura
Que estou morrendo… que desfaleço…

Lembrança amarga do meu passado…
Como ela punge! Como ela dói!
Porque hoje o vejo mais desolado,
Mais desgraçado do que ele foi…

Tédios e penas cuja memória
Me era mais leve que a cinza leve,
Pesam-me agora… contam-me a história
Do que a minhalma quis e não teve…

O ermo infinito do meu desejo
Alonga, amplia cada pesar…
Pesar doentio… Tudo o que vejo
Tem uma tinta crepuscular…

Faço em segredo canções mais tristes
E mais ingênuas que as de Fortúnio:
Canções ingênuas que nunca ouvistes,
Volúpia obscura deste infortúnio…

Às vezes volvo, por esquecê-la,
A vista súplice em derredor.
Mas tenha medo de que sem ela
A desventura seja maior…

Sem pensamentos e sem cuidados,
Minhalma tímida e pervertida,
Queda-se de olhos desencantados
Para o sagrado labor da vida…
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

Elegia para minha mãe
Nesta quebrada de montanha, donde o mar
Parece manso como em recôncavo de angra,
Tudo o que há de infantil dentro em minhalma sangra
Na dor de te ter visto, ó Mãe, agonizar!

Entregue à sugestão evocadora do ermo,
Em pranto rememoro o teu lento martírio
Até quando exalaste, à ardente luz de um círio,
A alma que se transia atada ao corpo enfermo.

Relembro o rosto magro, onde a morte deixou
Uma expressão como que atônita de espanto.
(Que imagem de tão grave e prestigioso encanto
Em teus olhos já meio inânimes passou?)

Revejo os teus pequenos pés… A mão franzina…
Tão musical… A fronte baixa… A boca exangue…
A duas gerações passara já teu sangue
— Eras avó —, e morta eras uma menina.

No silêncio daquela noite funeral
Ouço a voz de meu pai chamando por teu nome.
Mas não posso pensar em ti sem que me tome
Todo a recordação medonha de teu mal!

Tu, cujo coração era cheio de medos
— Temias os trovões, o telegrama, o escuro —
Ah, pobrezinha! um fim terrível, o mais duro,
É que te sufocou com implacáveis dedos.

Agora se me despedaça o coração
A cada pormenor, e o revivo cem vezes,
E choro neste instante o pranto de três meses
(Durante os quais sorri para tua ilusão!),

Enquanto que a buscar as solitárias ânsias,
As mágoas sem consolo, as vontades quebradas,
Voa, diluindo-se no longe das distâncias,
A prece vesperal em fundas badaladas!
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

Embalo
Ao balanço das águas,
Ao trépido pulsar
Da máquina, embalar
As persistentes mágoas
Das peremptas feridas…
Beber o céu nos ventos
Sabendo a sonolentos
Sais e iodados relentos.
Anseios de insofridas
Esperas e esperanças
Diluem-se na bruma
Como na vaga a espuma
— Flores de espumas mansas —
Que a um lado e outro abotoa
Da cortadora proa.
Azuis de águas e céus…
Sou nada, e entanto agora
Eis-me centro finito
Do círculo infinito
De mar e céus afora.
— Estou onde está Deus.
– Manuel Bandeira, do livro “Estrela da tarde”, 1960.

§

Epílogo
Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que só o motivo
Fosse o meu próprio ser interior…

Quando o acabei — a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade…
E o meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura…
— O meu Carnaval sem nenhuma alegria!…
– Manuel Bandeira, do livro “Carnaval”, 1919.

§

Estrela da manhã
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manhã

Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda parte

digam que sou um homem sem orgulho
Um homem que aceita tudo
Que me importa?
Eu quero a estrela da manhã

Três dias e três noites
Fui assassino e suicida
Ladrão, pulha, falsário

Virgem mal-sexuada
Atribuidora dos aflitos
Girafa de duas cabeças
Pecai por todos pecai com todos

Pecai com os malandros
Pecai com os sargentos
Pecai com os fuzileiros navais
Pecai de todas as maneiras

Com os gregos e com os troianos
Com o padre e com o sacristão
Com o leproso de Pouso Alto

Depois comigo

Te esperarei com mafuás novenas cavalhadas comerei terra e direi coisas de uma ternura tão simples
Que tu desfalecerás

Procurem por toda parte
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.
– Manuel Bandeira, do livro “Estrela da Manhã”, 1936.

§

Hiato
És na minha vida como um luminoso
Poema que se lê comovidamente
Entre sorrisos e lágrimas de gozo…

A cada imagem, outra alma, outro ente
Parece entrar em nós e manso enlaçar
A velha alma arruinada e doente…

— Um poema luminoso como o mar,
Aberto em sorriso de espuma, onde as velas
Fogem como garças longínquas no ar…
– Manuel Bandeira, do livro “Carnaval”, 1919.

Ingênuo enleio
Ingênuo enleio de surpresa,
Sutil afago em meus sentidos,
Foi para mim tua beleza,
A tua voz nos meus ouvidos.

Ao pé de ti, do mal antigo
Meu triste ser convalesceu.
Então me fiz teu grande amigo,
E teu afeto se me deu.

Mas o teu corpo tinha a graça
Das aves… Musical adejo…
Vela no mar que freme e passa…
E assim nasceu o meu desejo.

Depois, momento por momento,
Eu conheci teu coração.
E se mudou meu sentimento
Em doce e grave adoração.
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

Inscrição
Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja,
Repousa, embalsamado em óleos vegetais,
O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja,
Dançava, descuidosa, e hoje não dança mais…

Quem não a viu é bem provável que não veja
Outro conjunto igual de partes naturais.
Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja.
E ao fitá-la os varões tinham pasmos sensuais.

A morte a surpreendeu um dia que sonhava,
Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis
À terra, sobre a qual tão de leve pesava…

Eram as suas mãos mais lindas sem anéis…
Tinha os olhos azuis… Era loura e dançava…
Seu destino foi curto e bom…
— Não a choreis.
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

Madrugada
As estrelas tremem no ar frio, no céu frio…
E no ar frio pinga, levíssima, a orvalhada.
Nem mais um ruído corta o silêncio da estrada,
Senão na ribanceira um vago murmúrio.

Tudo dorme. Eu, no entanto, olho o espaço sombrio,
Pensando em ti, ó doce imagem adorada!…
As estrelas tremem no ar frio, no céu frio,
E no ar frio pingam as gotas da orvalhada…

E enquanto penso em ti, no meu sonho erradio,
Sentindo a dor atroz desta ânsia incontentada,
— Fora, aos beijos glaciais e cruéis da geada,
Tremem as flores, treme e foge, ondeando, o rio,

E as estrelas tremem no ar frio, no céu frio…
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

Neologismo
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
– Manuel Bandeira, do livro “Belo belo”, 1948.

§

O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.
– Manuel Bandeira, do livro “Belo belo”, 1948.

§

O impossível carinho
Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
— Eu soubesse repor —
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!
– Manuel Bandeira, do livro “Libertinagem”, 1930.

§

O inútil luar
É noite. A Lua ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia…

Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha…

No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado.
Medita. Há no seu rosto uma ânsia…
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel…
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas…

Com outro moço que se cala,
Fala um de compaixão raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
— É de política.

Adiante uma senhora magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém a conversar:
— “Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, manda matar
uma galinha.”

E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia…
– Manuel Bandeira, do livro “A cinza das horas”, 1917.

§

O martelo
As rodas rangem na curva dos trilhos
Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu naufrágio
Os elementos mais cotidianos.
O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei.

Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de certezas.
– Manuel Bandeira, do livro “Lira dos cinquent’anos”, 1940.

§

O rio
Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas nos céus, refleti-las.
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.
– Manuel Bandeira, do livro “Belo belo”, 1948.

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