Sou fã do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro desde criança e sempre procuro escutar intensamente os sambas da Portela e da Mangueira na medida em que se aproxima o carnaval. Esse ano não foi diferente: apaixonei-me imediatamente pelo samba da Portela que fala sobre Clara Nunes e fiquei muito empolgada com a referência à Marielle Franco no samba da Mangueira. Mas foi só na semana passada que parei pra ouvir repetidas vezes o samba da Mangueira e procurar sua letra para não perder nenhuma referência. Depois disso, a beleza e a minha identificação vão muito além da breve homenagem à Marielle: o samba fala sobre a história que a história não conta e, de uns dois anos pra cá, isso faz todo sentido e tem muito peso para mim. Se você ainda não ouviu o samba, escuta! Ele está espalhado por esse texto, mas, sem dúvidas, é muito mais incrível conhecê-lo ouvindo.

Fui, sem falsa modéstia, uma excelente aluna de História nos tempos do colégio. A formação em Direito, cujas disciplinas iniciais abordam, de forma específica, a História do Direito em geral e, particularmente, no Brasil também contribuíram para consolidar um conhecimento que, até então, eu considerava bastante razoável. Sabia o que os livros diziam, compreendia o que meus professores me falavam, tirava boas notas. Portanto, considerava já saber e já me indignava com os horrores da escravidão, afinal, a gente estuda isso na escola. Mas não é bem assim…

Em 2016 desembarcava na minha vida o mestrado, a pesquisa e, mais do que isso, as minhas incríveis colegas militantes do movimento negro. No começo, confesso, eu achava boa parte do que elas diziam, especialmente sobre a disponibilidade do corpo negro e os privilégios da branquitude, exagerado. Felizmente tive a humildade de não só refletir sobre o que diziam, mas de me questionar sobre as razões do meu incômodo. Hoje entendo que meus incômodos vinham da minha ignorância, justamente, sobre História.

Aprendi muito com elas. Curioso que o samba reforça a figura de mulheres de luta, como Marielle e a Luíza Mahin (um brevíssimo resumo sobre essa mulher que a história não menciona: Luíza comprou sua liberdade e fez da sua casa, na Bahia, um ponto de encontro para articular as principais revoltas negras ocorridas em Salvador. Grande articuladora, Mahin é uma personagem importante na Revolta dos Malês, além de mãe do poeta abolicionista Luís Gama) e, são também as mulheres negras que pegaram minhas mãos, simbolicamente, e me guiaram em tanta desconstrução no decorrer da minha vida. Foi uma dessas mulheres incríveis, inclusive, que reforçou a importância para a minha pesquisa do estudo do que Abdias do Nascimento dizia sobre o genocídio do negro brasileiro.

Li o livro que nem é tão grande assim muito lentamente, fazendo inúmeras pausas diante de tanta revolta com o que aprendi estudando pela primeira vez a história que a História não conta. Nenhum outro livro me fez enxergar melhor que eu conhecia muito pouco sobre a história sem floreios do meu país. Aliás, Foucault já defendia a ideia de que a história é o relato daqueles que venceram, de quem oprimiu. É essa a história que eu, branca e de classe média, aprendi e sabia muito bem. Essa história oficial que toca sim, superficialmente, no sofrimento impingido a tantas pessoas e na discriminação, no entanto, nunca daria conta de dar a exata dimensão do que foi a escravidão do Brasil porque seu foco nunca foi a visão do oprimido, do derrotado. A história que a História conta ainda é a narrativa daqueles que optaram por queimar todos os documentos que poderiam contribuir para que os negros brasileiros pudessem identificar suas origens na África, daqueles que optaram por submetê-los à rituais de esquecimento e ao batismo compulsório como forma também de limpar as máculas de quem era tido como menor: afinal, quem não tem pra onde voltar, quem não tem passado, família ou sua própria religiosidade e cultura resistiria muito menos à barbárie que foi imposta ao povo africano. A história de quem defende a vigência de uma democracia racial exemplar no Brasil não pode ser a mesma história de quem sofreu e sofre discriminação por não ser branco.

Estudando Abdias do Nascimento, Clóvis Moura, Octávio Ianni, Ana Luiza Flauzina, Thula Pires e outros autores com esse viés pude entender como é que a nossa sociedade foi se formando: baseada na desumanização, exploração, no apagar da memória e da cultura (quem não tem passado, não tem presente e tampouco poderá ter futuro, assevera Abdias do Nascimento), no não reconhecimento de direitos, nas estratégias de imobilismo social, nas tentativas de mascarar dados oficiais para simular um contingente populacional muito mais branco do que efetivamente existia, no descuido com a conservação das famílias negras, na prostituição compulsória das mulheres africanas, nas ilusórias leis abolicionistas, no descaso, no afastamento geográfico, na imposição de toda sorte de dificuldade e formas de diferenciar uns dos outros tomando por mote, exclusivamente, a cor da pele.

E aí, posteriormente a esses intensos dois anos de aprendizado sobre essa história não contada, me apercebo que em minha dissertação de mestrado e no samba de 2019 da minha querida Mangueira falamos da mesma coisa: de quem foi de aço em anos de chumbo (que, não se iludam, para muitos esses anos já duram quase cinco séculos e não se limitam, assim, ao período em que os militares estiveram no poder) e, ainda hoje, precisa seguir com essa fibra.

O samba fala, muito acertadamente, do tanto sangue negro que mancha nossa história. Aprendi lendo autores que contam essa história que a História não conta que, no Brasil, dada a proximidade com a costa da África, nunca houve efetivo cuidado com as condições de vida impostas aos escravos. Tal como objetos, essas vidas tinham uma expectativa, uma “vida útil” de, quando muito, oito anos de duração. Era mais barato explorar incessantemente o corpo negro, alimentá-lo mal, castigá-lo duramente e, quando morresse ou se tornasse imprestável para o trabalho, promover a reposição da “peça”. Sem contar na mencionada prostituição compulsória da mulher africana com fins de produção de lucro, por outros meios, para seus senhores que ainda produzia uma atenuação da negritude de seus frutos, os mulatos. Essa palavra infeliz, carregada de preconceitos, remete à mistura de espécies animais que dá origem à mula que, à exemplo da mistura racial envolvida no estupro da mulher negra, possui um lado superior, “melhor”: acreditava-se em um “aprimoramento genético” com a injeção de sangue branco. De todo modo, o mulato, ainda que em vantagem comparado ao negro retinto no gradiente de cores da sociedade que tem na brancura sua melhor posição, permaneceu em posição periférica na sociedade. Incumbia-lhes, quando muito, a assunção de cargos de confiança não desejados pelos brancos como o de feitor.

Outro ponto que considero crucial elencado no samba da Mangueira é a eleição da figura de Princesa Isabel como grande símbolo, generoso, da abolição. Evidente que a princesa tinha seus predicados, mas, mais evidente ainda, é o fato de que tal “endeusamento” desconsidera, por exemplo, o contexto econômico mundial no qual o Brasil, último país do mundo a abolir o trabalho escravo, se via. A mentalidade do latifúndio escravista atrapalhava não só o pretenso liberalismo experimentado à época, mas também, a própria modernização do processo produtivo. Havia, portanto, uma tensão entre este liberalismo e a escravidão. Porém, apesar de sua união ser formalmente dissonante, não passa de um falso impasse. Tal contradição só poderia ser considerada real se o liberalismo em questão fosse um conteúdo pleno e concreto, similar à ideologia burguesa do trabalho livre na época da revolução industrial européia, conforme o posicionamento de Alfredo Bosi (1992, p. 195) sobre a questão. Não era o nosso caso, tendo em vista que, não experimentávamos efetivamente o liberalismo, daí dizer pretenso liberalismo.

A abolição era cobrada internacionalmente. Convinha às elites libertar os escravos. Contudo, a libertação não representou uma transferência do trabalho escravo para o exercício de atividades incumbidas ao negro por séculos, agora, remuneradas. O forte incentivo para chegada de imigrantes europeus produziu uma massa de desocupados ameaçados pelo enquadramento na prática da vadiagem. Mais do que isso: sem o mínimo para assegurar sua existência, abandonados à própria sorte, muitos sucumbiram. É por isso, inclusive, que  Abdias do Nascimento afirma que a abolição “não passou de um assassinato em massa, ou seja, da multiplicação do crime, em menor escala, dos africanos livres” (NASCIMENTO, 1978, p. 65). Era flagrante a falta de vontade política com a melhoria da condição de vida e com a própria subsistência da população negra: desobrigados, os membros da elite só queriam se ver livres daquelas pessoas e embranquecer a população com a mão de obra imigrante proveniente da Europa.

Com o passar dos anos, as discriminações foram arrefecendo-se muito discretamente. Abdias do Nascimento afirma que até 1950, com amparo legal, era prática comum o anúncio de vagas de emprego que estabeleciam características físicas, com especial destaque para a cor da pele, de seus pretensos ocupantes. Em alguns desses anúncios taxativamente se dizia não serem aceitas para as vagas pessoas “de cor” (NASCIMENTO, 1978, p. 82). Tal prática é apenas um exemplo, dos muitos possíveis, dentro da história brasileira no qual a população negra foi discriminada pelo simples fato de não ter a pele branca. Como dito outrora, as estratégias de imobilismo social dos negros passam pelo trabalho, seja ele precarizado e mal remunerado ou, simplesmente, inexistente. Por isso, cabe salientar que o acesso a este universo, por parte dos negros, foi obstaculizado desde o fim da escravidão pela política de incentivo de imigração de trabalhadores brancos para o país. Por isso é importante elucidar, como o faz Abdias do Nascimento (1978, p.85) que:

Se os negros vivem nas favelas porque não possuem meios para alugar ou comprar residências nas áreas habitáveis, por sua vez, a falta de dinheiro resulta da discriminação no emprego. Se a falta de emprego é por causa de carência de preparo técnico e de instrução adequada, a falta desta aptidão se deve à ausência de recurso financeiro. Nesta teia o afro-brasileiro se vê tolhido de todos os lados, prisioneiro de um círculo vicioso de discriminação – no emprego, na escola- e trancadas as oportunidades que permitiriam a ele melhorar suas condições de vida, sua moradia inclusive.

Cabe aqui considerar, inclusive, que em virtude da falaciosa ideia de democracia racial vigente no país, as desigualdades sociais passaram a ser explicadas através da ideia de classe. Se os negros não conseguiam mobilidade social “não é porque exista um ideário sectário na sociedade, mas porque saíram da condição de escravos sem as condições materiais necessárias para a experiência da liberdade” (PIRES, 2013, pp.37-38). Importante pontuar, como Thula Pires faz, que ao perder o status de res com a abolição, o negro, agora sujeito, passa a ser associado com a criminalidade, com a preguiça, com a degeneração e com o enfraquecimento biológico da população. Este pensamento era atestado por boa parte da intelectualidade brasileira da época (PIRES, 2013, p. 34).

Muito há que se falar sobre a história que a história não conta tomando não só o período da escravidão, mas, também sobre o período posterior a este evento. Trata-se de época fundamental para a consolidação das estratégias de imobilismo social e isto, sem dúvidas, contribuiu para que ainda hoje a luta seja uma questão muito mais presente no cotidiano dos não brancos.

Luta que passa, em extremos, pela sobrevivência e que é constante para imensa maioria desse contingente da população que ainda é alvo, por exemplo, de maior incidência de abordagem policial. Luta que tem em figuras como Marielle, uma mulher negra, favelada, mãe solo e gay, um expoente. Que Marielle, bem como Luíza Mahin e, principalmente, as muitas Marias invisíveis para a história sejam sempre inspiração para quem, seja negro ou branco, quer um país que não está no retrato e não se esquiva da luta para implodir as centenárias amarras que impediram e ainda impedem a muitos a mobilidade social, a igualdade de direitos e de oportunidades, enfim, justiça social.

Referências desta coluna

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 3ª. edição. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

CORRÊA, Mariza. Sobre a invenção da mulata. in Cadernos Pagu v.6, n.7, p. 35-50, 2008.

MOURA, Clóvis. História do negro brasileiro. 2ª. edição. São Paulo: Editora Ática, 1992.

______. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática, 1988.

NASCIMENTO, Abdias do. O Genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.

 ______. O Quilombismo: Documentos de uma militância pan-africanista. Editora Vozes: Petrópolis, 1980.

PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Criminalização do racismo: entre política de reconhecimento e meio de legitimação do controle social dos não reconhecidos. 2013. Tese (Doutorado)- Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito, 2013.

Anna Carolina Cunha Pinto, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, escreve sobre suas percepções do mundo associando-as (quase sempre!) com conteúdos de Filosofia e Sociologia. Formada em Direito pela Universidade Cândido Mendes e mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense é fã de Amy Winehouse, Foucault, Picasso e roupas de poá.

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