Tenho acordado todo dia em uma missa e ido dormir em um filme pornô. Não, eu não quebrei o isolamento. Nem sou uma cidade católica do interior. São meus vizinhos.

Rigorosamente todas as manhãs Dona Maria José coloca a missa nas alturas, como talvez tentativa última de salvar o bloco inteiro e se eu acordo depois do sermão tendo a concordar que na verdade é justo e necessário darmos graças a todo momento, sobretudo o casal do filme pornô deveria estar dando graças, o de ontem parecia ótimo.

Logo depois da missa temos uma emocionante batalha de louvores e programas matutinos e ainda se vierem noites traiçoeiras eu sempre saberei quem a Fátima Bernardes entrevistou no Encontro.

O almoço é a hora das divas pop em algum lugar entre o quinto e o sexto andar e de Dona Marília e Dona Maria José conversarem pelas janelas, o que tem me rendido extratos incríveis como “Girls, let’s get in mas Marília meu filho não tem ligado”. “É Maria José, you’re a firework, come on show’em what your’re worth”.

Eu às vezes paro na janela para tomar os 20 minutos da parca faixa de sol que o apartamento pega e olho para as janelas que me circundam com uma inusitada explosão de afeto por esses semi conhecidos tão conhecidos. Há dois meses pertenço mais a essas pessoas, algumas só nomes e vozes, alguma só rostos de relance, que àquelas com quem construo cotidianamente minha vida. Conheço seus cheiros, aceito suas intempéries com um estoicismo claudicante, me preocupo com elas – outro dia Dona Marília não ligou para os filhos dois dias e quase deixei uma carta na porta, será que ela estava bem?-, sou por elas lembrada que eu rio alto, faço faxina em horários aleatórios e tenho uma gata com complexo de homem-aranha.

Talvez seja o sol vinte minutos direto, mas nós somos uma interessante pequena comunidade de indivíduos, como é interessante toda comunidade de indivíduos em sua liturgia diária de ser gente. O vizinho de cima ligando para cinco mil pessoas de trabalho e brigando com a Teresa de madrugada (eu já sou time Teresa nas brigas), o casal do nono andar fazendo mímica um pro outro e eu tentando adivinhar, me lembram que eu sou mais gente em conjunto.

Não é muito seguro parar muito tempo na janela, contudo, D. Maria José às vezes se revolta e faz discurso e nossas janelas são uma de frente pra outra. Um dia me chamou quando eu passava com café para trabalhar e me perguntou “O que a gente faz com esse país, menina” e eu não sabia nem o que fazer com meu café mas disse que a gente tinha que fazer algo era com a gente.

Mas não tem jeito, o início da noite, ou o Datena ligado de alguém aviva os ânimos políticos do meu microcosmo. O vizinho de cima às vezes bate uma panela, aqui e ali uns gritos se enfrentam e alguém grita “Mengo” de uma maneira terminativa, que eu nunca entendi exatamente se tinha significado político, ou talvez seja só saudade de gritar Mengo ou de gritar alguma coisa.

As noites são menos animadas desde o fim do Big Brother, é verdade, mas às vezes rola um proibidão, quase sempre rola um pornô – não sei se sempre é filme. Eu olho para as janelas já mais silenciosas e em meia luz e penso que as interações nossas de cada dia nos dai hoje. E também que já é hora de tirar o adesivo Serra 2002, pessoal do nono andar.

Tenho especial afeto por um vizinho, acho que do sexto, que trabalha em silêncio ao lado da janela e às vezes o vejo rindo e quero acreditar que também é da última briga dos filhos de D. Marília narrada aos soluços no telefone e penso que enquanto eu puder achar que alguém sem nome ou voz ri junto de mim em outra janela eu acredito na possibilidade dos encontros.

Minha detetive favorita sempre foi a Miss Marple, uma senhorinha inglesa que encontrava assassinos observado como a natureza humana se repete e eu olho Dona Maria José rezando, o casal do décimo cozinhando, o vizinho de cima brigando em inglês sobre sei lá que mercadorias da China, e depois em português com a Teresa, de quem já quero o telefone pra dizer, amiga, saí dessa, Dona Marília reclamando, a vizinha do lado que deixa seus sapatos na porta, outra que desce e sobe as escadas para fazer exercício e me deixa cansada só de pensar, o vizinho rindo sozinho em frente ao seu computador e lembro que a natureza humana se repete, ou se encontra, ou seja o que for, Miss Marple, só de dizer isso tudo acho que fiz a minha forma de oração.

Ando aficionada por esse poema da Maya Angelou chamado “Humanidade” que termina com uma repetição quase religiosa de “Nós somos mais semelhantes, meus amigos, do que diferentes”. Estou pensando em declamá-lo na janela para Dona Maria José na próxima intervenção política.

Talvez no meio da missa. Talvez na hora do proibidão. É tudo parte da nossa liturgia. Nós somos mais semelhantes, meus amigos, do que diferentes.

Dona Maria José viu a luz acesa e me desejou boa noite.

Mengo e Amém, Dona Maria José. You´re a firework.

*Mariana Imbelloni. Pesquisadora, aspirante a poeta e expirante advogada. Autora do livro “o fio invisível dos dias”, a ser lançado pela Editora Urutau. Também no instagram @marianaimbe

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