cinco mil formas
Há cinco mil formas de se apaixonar
antes eu achava que eram duas
ou três.

Desde que acordo e abro a janela
como o primeiro afazer da manhã
me apaixono pelos dias
e noites na minha cama
quando as pessoas se tornam imagens
fantasmas, lembranças no escuro
depois que enfim adormeço
passam a ser sonhos claros
desenhos que traço nas margens
pessoas que deixei para trás
que nunca deixaram meus dedos.

Também tem as tardes inteiras
que passo com quem conheci
e devagar me apaixono
pelos traços firmes do rosto
que se movem e definem
enquanto falamos:
somos amigos – às vezes repito
para mim mesma e perco
um pedaço da conversa –
como somos amigos
e admiro as formas que fazem
os lábios para dizer.

Depois minhas próprias mãos
os livros que não terminei
habitam a escrivaninha
como se fossem presenças
muito antigas, ancestrais
de vidas que já morreram
que voltam para chamar
atendo, respondo depressa
aceito o que me lembraram
abro um espaço no peito
e me apaixono também
por essas almas penadas
que pedem pouco, me ninam
assistem o que divago
os olhos absortos nas prateleiras.

Mais ainda do que isso
tem outra coisa maior
que não sei como explicar
interpela, interrompe
acompanha pelo avesso
desmancha tudo o que digo
filtra as horas, limpa a casa
organiza os travesseiros
é como um centro sem forma
no qual demoro, de que me perco
para depois, se distraio,
devolver o que eu tinha jogado
me ensinar numa pressa distante
que nada vem antes da hora –
uma voz diz em tom baixo
sussurra de longe no ouvido
escutamos ali dentro
de um clarão fundo e bem fraco
me apaixono sobretudo
por essas formas estranhas
que descobri nesses anos:
recônditos subterrâneos
calada quase não procuro
ignoro, desconheço
deve ser assim que se faz:
aprendo e depois esqueço.
– Leda Cartum, no livro “As horas do dia – pequeno dicionário calendário”. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2012.

§

ode aos dias longos
faz tempo era manhã:
anos atrás acordávamos
mas ainda o cheiro fresco
fácil de achar no corpo
do café – ainda o rastro
nítido dos sonhos da noite
funda de ontem –
décadas dentro de um dia
que conforma pelas frestas
fecha a porta da frente
completa uma linha firme
contempla o que formou.

vamos dormir então
deitar nessa cama feita
no princípio dos séculos
estamos cansados
foi um dia longo:
afunda na memória –
antes de adormecer
ao afastar os lençóis
diremos ao falso fim:
que a fundação de muitos
seja feita também deste.
– Leda Cartum, no livro “As horas do dia – pequeno dicionário calendário”. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2012.
* Leda Cartum formada em Letras pela Universidade de São Paulo, hoje no mestrado estuda o escritor Pascal Quignard – de quem está traduzindo o livro Le sexe et l’effroi. Trabalha com texto e produção escrita em diversas áreas, desde tradução e editoração até roteiros para cinema e dramaturgia para teatro. É ganhadora do Prêmio Off-FLIP de 2014.
Obras
:: As horas do dia – pequeno dicionário calendário. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2012.
:: O porto. [ilustração Alexandre Teles]. São Paulo: Editora Iluminuras, 2015.







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