sábado, agosto 9, 2025

Lançada há 70 anos, vacina antipólio evitou milhares de mortes

Hoje, a baixa cobertura do imunizante abre espaço para o retorno da paralisia infantil
Suzel Tunes, da Revista Pesquisa FAPESP
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Em 1º de janeiro de 1953, quando a cidade do Rio de Janeiro vivia a maior epidemia de poliomielite registrada até então no país, o Correio da Manhã noticiava: “Não há epidemia de paralisia infantil no Rio”. Os casos se multiplicavam – eram já 450, com 27 mortes, desde junho do ano anterior –, mas o Departamento de Higiene da prefeitura garantia que estavam “rigorosamente dentro da incidência habitual”. Em 23 de janeiro, o jornal voltava a negar a epidemia e, de forma jocosa, argumentava ser a poliomielite uma “doença do frio”, “elemento epidemiológico” inexistente no verão carioca.

Negar a gravidade da epidemia era uma estratégia para evitar o pânico. Outra forma de tranquilizar a população era recorrer a ações preventivas inócuas, como a dedetização feita no interior paulista quando já se sabia que a infecção podia ser transmitida por via fecal-oral. “Até a mosca foi vista como causadora da doença. Achava-se que ela pousava nas casas dos pobres e dali a levava para a casa dos ricos, durante as grandes epidemias de 1916 nos Estados Unidos”, relata a médica Dilene Nascimento, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e organizadora do livro A história da poliomielite (Garamond, 2010).
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Naquele momento, ainda não havia uma forma eficiente de prevenção contra a infecção neurológica aguda que poderia rapidamente evoluir para um quadro irreversível de paralisia, sobretudo das pernas, ou para a morte, quando afetava os músculos da deglutição ou da respiração. Correndo contra o tempo, algumas vítimas com o sistema respiratório paralisado podiam ser salvas quando confinadas no chamado pulmão de aço, cilindro de metal com uma bomba que forçava a entrada e saída de ar dos pulmões.
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A doença atingia principalmente crianças com menos de 5 anos – o que justificava o termo paralisia infantil –, mas também adultos. Em 1921, paralisou as pernas de um presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), então com 39 anos de idade. Em 1943, matou o filho do presidente Getúlio Vargas, Getúlio Vargas Filho, de 23 anos.

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NARASabin (à esq.) e Salk no Salão da Fama, em Warm Springs (EUA), entre outros que contribuíram para o desenvolvimento da vacina contra a pólio, 2 de janeiro de 1958NARA

Como havia um estado geral de medo e anseio por uma proteção efetiva contra a doença, o anúncio de que o virologista nova-iorquino Jonas Salk (1914-1995) havia desenvolvido um imunizante seguro e eficaz – injetável, feito com vírus inativado (morto) – fez dele uma celebridade mundial. A fama foi inevitável, mas ele dispensou a fortuna que poderia receber dos royalties. Quando perguntado quem seria o dono da patente, teria respondido: “O povo, eu diria. Não há patente. Você poderia patentear o Sol?”.
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No mesmo dia em que os resultados positivos dos testes foram divulgados – 12 de abril de 1955 –, a vacina de Salk foi licenciada. Dois anos depois, os casos anuais nos Estados Unidos já haviam caído de 58 mil para 5.600, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
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Em 1961, surgia uma nova opção de imunizante, a vacina oral, produzida a partir de vírus vivo atenuado, desenvolvida pelo microbiologista polonês naturalizado norte-americano Albert Sabin (1906-1993). Ele também não quis patentear seu invento.
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A poliomielite paralisava cerca de 1000 crianças por dia entre 125 países no mundo, de acordo com a Organização Panamericana de Saúde (Opas). “A vacina oral contra a poliomielite teve um grande impacto na erradicação da doença. Reduziu os casos causados pelo vírus selvagem em mais de 99,9%”, comenta a epidemiologista Ligia Kerr, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (FM-UFC). “As gotinhas são fáceis de administrar e a criança vacinada dissemina o vírus para outras crianças, o que a Salk não faz, por ser um vírus morto. Entretanto, o vírus vacinal atenuado pode sofrer mutações, especialmente quando a área apresenta baixa cobertura vacinal, causando casos de poliomielite.”

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Alexandre Affonso/Revista Pesquisa FAPESP

A marcha do medo
A conquista de uma vacina “segura, efetiva e potente” – como se anunciou o imunizante de Salk – foi o resultado de décadas de pesquisas e descobertas, desde os primeiros registros da doença, no século XVIII. Existem evidências de que a poliomielite atinge a humanidade desde 1350 a.C. (ver cronologia abaixo), mas apenas em 1789 o médico britânico Michael Underwood (1737-1820) faz a primeira descrição clínica da pólio, definindo-a como “debilidade das extremidades inferiores”.
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Em sua forma epidêmica, a poliomielite instalou-se na virada do século XIX para o XX. A primeira grande epidemia ocorreu nos Estados Unidos, em 1916, com mais de 27 mil casos e 6 mil mortes. Um ano depois, o médico brasileiro Francisco de Salles Gomes Júnior (1888-1972), diretor do Serviço Sanitário de São Paulo, descreveu um surto em Americana, no interior paulista. Ele pressupôs que o vírus havia sido importado dos Estados Unidos, considerando os vínculos históricos da localidade, então chamada Vila Americana, com aquele país. Dessa epidemia surgiu a Lei nº 1.596, que tornava a poliomielite uma doença de notificação compulsória no estado.
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No romance Nêmesis, o escritor norte-americano Philip Roth (1933-2018) descreve o pânico provocado pela pólio. Famílias se mudavam para o interior, fugindo da doença, e as crianças eram proibidas de usar piscinas públicas, ir aos cinemas, andar de ônibus ou mesmo pegar livros emprestados na biblioteca. À medida que o medo crescia, intensificaram-se os esforços científicos – e políticos – para a conquista de uma vacina. Até a população se mobilizou, aderindo à campanha de arrecadação criada por Roosevelt em 1938, a March of dimes, doando moedinhas de 10 centavos (os dimes) para financiar pesquisas sobre a doença.
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A possibilidade real de uma vacina se tornou mais concreta em 1949, quando os pesquisadores John Enders (1897-1985), Thomas Weller (1915-2008) e Frederick Robbins (1916-2003) conseguiram cultivar o poliovírus em culturas de diversos tipos de tecidos. O artigo foi publicado na revista Science em janeiro de 1949 e o feito lhes valeu o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1954. Estava aberto o caminho para as vacinas de Salk e Sabin.

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Acervo Instituto Butantan / Museu de Saúde Pública Emílio RibasCartazes de apoio às campanhas (de 1971, à esq.; sem data, à direita)Acervo Instituto Butantan / Museu de Saúde Pública Emílio Ribas

Campanhas nacionais
No Brasil, a vacina de Salk chegou no mesmo ano de seu licenciamento nos Estados Unidos, em 1955, primeiramente em São Paulo, provavelmente por ter uma sistema de saúde mais organizado que o do Rio de Janeiro, onde começou a ser aplicada no ano seguinte. No início, poucas crianças a receberam.
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Kerr foi uma das crianças que não tiveram a oportunidade de receber o imunizante nessa época: “Contraí pólio em 1957, com 1 ano de idade [que afetou a perna direita e parcialmente a esquerda], quando a vacina ainda era rara no Brasil”. Foi só a partir de Sabin que o imunizante antipólio começou a se disseminar pelo mundo. Ainda assim, de forma limitada nos primeiros anos. “Apenas alguns pediatras a compravam e a aplicavam em seus consultórios”, afirma Nascimento.
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Logo que os Estados Unidos licenciaram a vacina em gotas de Sabin, o Ministério da Saúde criou uma comissão para avaliar qual seria aplicada no país. “Chegaram à conclusão de que seria a oral”, relata Nascimento. Pesou na decisão o baixo custo e a maior facilidade de aplicação.

A primeira experiência de vacinação em massa foi realizada em Santo André, na Grande São Paulo, em 16 de julho de 1961, com o objetivo de imunizar 25 mil crianças que moravam também nos municípios vizinhos. Em um artigo de fevereiro de 2011 na Ciência & Saúde Coletiva, Nascimento observa que as primeiras iniciativas “se caracterizaram mais pela descontinuidade, em face de problemas de suprimento e distribuição das vacinas, do que pelo aumento de cobertura vacinal”.

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Paulo Pinto / Agência BrasilCrianças recebem a Sabin em posto de saúde no bairro do Cambuci, na capital paulista, em junho de 2024, como parte de uma mobilização nacional contra a pólioPaulo Pinto / Agência Brasil

 

Apenas a partir dos anos 1980 começaram as campanhas nacionais de vacinação contra a pólio organizadas pelo Ministério da Saúde. Os casos caíram rapidamente, de 1.290 em 1980 para 122 em 1981. Em 1989, ano dos últimos casos de pólio no Brasil, foram apenas 35 – o último deles registrado em Sousa, na Paraíba.
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Para os primeiros anos do Dia Nacional de Vacinação, as vacinas eram importadas de laboratórios europeus. Depois, começou a produção na Bio-Manguinhos, unidade de fabricação de medicamentos da Fiocruz, por meio de um acordo de transferência de tecnologia firmado em 1980 entre os governos do Brasil e do Japão. A bióloga Rosane Cuber, diretora da Bio-Manguinhos, conta que, como a fabricação do concentrado viral não se mostrou viável do ponto de vista econômico e técnico, optou-se pela formulação da vacina a partir do concentrado viral importado. Segundo ela, a Bio-Manguinhos produziu 691 milhões de doses da vacina trivalente (para os tipos virais 1, 2 e 3) de 1984 a 2014 e 212 milhões da dupla (tipos 1 e 2) de 2015 a 2024. Como resultado de uma parceria iniciada em 2011 com a empresa farmacêutica francesa Sanofi, fabricou também 145 milhões de doses de vacina com o vírus inativado. Nessa época, o esquema vacinal consistia na aplicação de três doses da vacina injetável (aos 2, 4 e 6 meses) e duas doses de reforço da gotinha.

A estratégia dos dias nacionais de vacinação adotada no Brasil serviu de modelo para outros países e a Organização Pan-americana de Saúde (Opas) a recomendou para a erradicação da doença nas Américas, que ocorreu em 1994. Hoje, porém, essa conquista está ameaçada. Segundo Kerr, da UFC, há um risco iminente do regresso da pólio ao Brasil: “As vacinas de pólio e de sarampo, por exemplo, requerem 95% de cobertura para o controle da doença, mas em 2024 estávamos em torno de 70%, com grande variabilidade regional”.
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Ela adverte que o mundo tem registrado queda na vacinação infantil nos últimos 30 anos: “Por não verem mais casos, as pessoas pensam, erradamente, que a doença foi embora”. No Brasil, a seu ver, problemas de desabastecimento de vacinas nas unidades de saúde, falhas de comunicação do governo e as fake news poderiam ter dificultado o cumprimento do calendário vacinal, sobretudo nos grupos com menor nível socioeconômico.
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“Seria importante levar as equipes do posto de saúde para escolas e grandes empresas”, opina o farmacêutico-bioquímico Wasim Aluísio Prates-Syed, doutorando do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) e membro da União Pró-vacina, iniciativa do Instituto de Estudos Avançados da USP para combater a desinformação sobre as vacinas.

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Acervo Instituto Butantan / Museu de Saúde Pública Emílio RibasZé Gotinha participa de campanha de vacinação em Osasco, na Grande São Paulo, sem dataAcervo Instituto Butantan / Museu de Saúde Pública Emílio Ribas

Unindo-se aos esforços de erradicação global da doença, em novembro de 2024 o governo federal anunciou uma mudança no esquema vacinal antipólio, de acordo com uma recomendação da OMS: a substituição do imunizante oral do vírus vivo atenuado pelo injetável do vírus morto.
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Antes eram administradas três doses da injetável aos 2, 4 e 6 meses e duas doses de reforço, com a oral, aos 15 meses e aos 4 anos de idade. Agora, será dada apenas uma dose de reforço, aos 15 meses, com a vacina injetável. O objetivo é reduzir a circulação do vírus vivo atenuado em lugares com baixa cobertura vacinal e o risco, ainda que baixo, de que ele sofra mutações genéticas e recupere a virulência. Em 2024, vários países africanos registraram casos da doença provocados por poliovírus circulante derivado de vacina.
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A substituição das gotas pela injeção não deverá aposentar o Zé Gotinha, mascote das campanhas nacionais de vacinação. O personagem criado em 1986 pelo artista plástico mineiro Darlan Rosa, então funcionário do Ministério da Saúde, nasceu com a missão de popularizar as campanhas contra a pólio, mas acabou se tornando símbolo de todas as vacinas.
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“Nunca associei o Zé Gotinha apenas à vacina oral antipólio. Ele é mascote das vacinas, e no mundo inteiro não conheço outro”, orgulha-se Prates-Syed, que tem uma tatuagem do Zé Gotinha no braço. Nascimento, por sua vez, reconhece que o combate à pólio fortaleceu a vacinação de outras doenças infecciosas preveníveis. O calendário nacional contempla 19 vacinas a serem tomadas desde o nascimento.

A reportagem acima foi publicada com o título “Vitória ameaçada” na edição impressa nº 354, de agosto de 2025.

Artigos científicos
CAMPOS, A. L. V. de; NASCIMENTO, D. R. do; MARANHÃO, E. A história da poliomielite no Brasil e seu controle por imunização. História, Ciências, Saúde -Manguinhos. v. 10, n. 2. 9 mar. 2004.
NASCIMENTO, D. R. do. As campanhas de vacinação contra a poliomielite no Brasil (1960-1990). Ciência & Saúde Coletiva. v. 16, n. 2. fev. 2011.
ENDERS, J. F., WELLER, T. H., ROBBINS, F. C. Cultivation of the lansing strain of poliomyelitis virus in cultures of various human embryonic tissues. Science. v. 109, n. 2822. 28 jan. 1949.

Livros
ROTH, P. Nêmesis. Trad. Jorio Dauster. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
NACIMENTO, D. R. do (org.). A história da poliomielite. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

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Este texto foi originalmente publicado por Pesquisa FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.

 


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