Paulo Baía

Kafka à Beira-Mar e a melancolia das coisas que ficam, por Paulo Baía

Não sei exatamente o que me levou, nesta manhã morna e nublada de inverno em Cabo Frio, a me lembrar de Kafka à Beira-Mar, de Haruki Murakami. Talvez tenha sido o silêncio rarefeito da casa, ou o modo como a brisa atlântica se insinuava por entre as frestas da janela, misturando o cheiro do mar ao perfume já frio do café que esqueci de terminar. Talvez tenha sido a ousadia de um gato que, como quem sabe de coisas que os humanos desaprenderam, surgiu diante do portão com a altivez própria dos felinos. Parou ali, imóvel. Miou uma, duas vezes. Não com fome, nem por carência, mas como se estivesse me enviando uma mensagem que só os gatos são capazes de emitir. Uma mensagem codificada em mistério, em enigma, em silêncio com pontas de sombra.
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No mesmo instante, Iza e Leon, meus companheiros fiéis, despertaram de sua calma. Ambos da raça Chow Chow, silenciosos como estátuas de templo, mas de sentidos sempre acesos, começaram a latir em uníssono, numa cadência que soava tanto como alerta quanto como afirmação de território. Eles dormem comigo. Acordam comigo. Caminham à minha volta como se fossem minhas próprias sombras. São presença e escuta. Vigília e ternura. Embora pareçam serenos, é na quietude que escondem sua guarda. E naquele instante em que o gato ousou me chamar, foram eles que traduziram o que meu coração ainda não sabia: algo dentro de mim fora acionado. E era memória.
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Foi nesse momento que me vi de volta àquela leitura feita anos atrás, durante a pandemia. Nos dias longos e solenes do isolamento, quando o tempo parecia uma película cinza sobre o mundo, e o futuro, um conceito remoto e vago. Ali, em meio à clausura involuntária e às horas penduradas no calendário, li Kafka à Beira-Mar. E não li com os olhos apenas. Li com a pele. Com a alma em carne viva. Com o pensamento exausto de realidade. Foi um mergulho, uma espécie de descolamento da crosta do mundo. Um escape e, ao mesmo tempo, um reencontro.

Lembro com clareza do impacto que o livro me causou desde as primeiras páginas. Murakami, esse escritor japonês que há anos habita a lista dos possíveis Nobel, me entregou não uma história, mas uma travessia. Narrava alternadamente as trajetórias de dois personagens. Kafka Tamura, um adolescente de quinze anos fugindo de uma profecia edipiana, com uma coragem que só os que não têm mais nada a perder carregam no peito. E Nakata, um ancião marcado por um trauma na infância que o privara da capacidade de ler, mas o dotara do dom extraordinário de conversar com gatos. Dois mundos, duas órbitas, dois silêncios em busca de sentido.
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Era como se eu caminhasse por uma floresta onírica a cada capítulo. O real se dissolvia suavemente diante do simbólico. O tempo se fragmentava. O espaço se tornava fluido. Havia peixes que caíam do céu, soldados que atravessavam as décadas sem envelhecer, bibliotecas que se convertiam em santuários, e gatos, sempre eles, que filosofavam sobre a dor. Mas nada disso vinha com estrondo. Murakami escrevia como quem acende uma vela em meio à escuridão. Sua prosa era delicada, límpida, com uma suavidade que escondia uma profundidade cortante. E a tradução de Maria João Lourenço capturava com rara sensibilidade esse sopro sutil de grandeza.
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Durante a leitura, Iza e Leon se deitavam aos meus pés. Cabo Frio estava deserta, como o mundo todo. O silêncio das ruas encontrava eco no silêncio da narrativa. E eu sentia que Kafka Tamura não era apenas um personagem. Era uma parte de mim que ainda buscava a si mesma. E Nakata, com sua doçura desconexa, representava aquele saber ancestral que habita os que se perderam do mundo, mas não de sua essência.

O livro não dava respostas. Ele semeava perguntas. Quem somos quando esquecemos nossa origem? O que buscamos quando partimos sem destino? O amor é encontro ou reconhecimento? A identidade é forma ou fluxo? Essas questões me acompanhavam como espectros gentis. E, ao fechar o livro, tive a clara sensação de não ter terminado uma leitura, mas de ter concluído um ciclo. Como se houvesse atravessado um espelho.
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Agora, anos depois, esse espelho reaparece. E o faz com a sutileza dos presságios. O gato, os latidos de Iza e Leon, o céu branco de Cabo Frio. Tudo se organizou para me devolver aquele instante. E me fez perceber que certas leituras não passam. Elas se alojam em nós como paisagens internas. E esperam. Esperam um som, um cheiro, um olhar, para voltarem a nos habitar.
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Kafka à Beira-Mar é um romance de formação, mas é também tratado filosófico. É uma fábula surrealista, mas também uma meditação lírica sobre o amor, a solidão, o destino e a linguagem. É múltiplo. É espiral. É labirinto. Não cabe em prateleiras fixas. Ele escapa, como a areia entre os dedos nas praias do Peró. Ele permanece, como o sal na pele depois do mergulho.

Murakami perturba sem agredir. Transforma sem avisar. Leva o leitor até a borda de algo e o deixa ali, à beira-mar, ouvindo o rumor das ondas dentro de si. É literatura que não se esquece. Porque não se lê Murakami apenas. Vive-se. E, ao viver, algo em nós muda. Sem barulho. Como o vento que altera a rota de uma folha sem que a árvore perceba.
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Recomendo esse livro não apenas aos que buscam beleza, mas aos que aceitam o risco do assombro. Aos que sabem que se perder é também um modo de reencontrar-se. Aos que compreendem que o mundo tem camadas invisíveis e que às vezes um gato ousado diante de um portão é o primeiro sinal de que algo profundo está por vir.
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E hoje, neste dia qualquer, em que o tempo parece novamente suspenso, volto a essa obra não como quem relê, mas como quem retorna a um lugar onde algo essencial foi deixado para trás. Porque Kafka à Beira-Mar não é um livro que se abandona. É um livro que permanece. Como um farol. Como uma brisa. Como uma pergunta que ainda não foi respondida, mas que já mudou tudo.
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[Cabo Frio/RJ, 4 de agosto de 2025]
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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