Dente-de-leão soprado por uma criança - Jon Feingersh Photography Inc./The Image Bank
Há instantes em que o pensamento cansa de ser linha reta e se transforma em nuvem. Instantes em que tudo parece escapar pelos dedos da razão, e o mundo, ao invés de se oferecer como coisa a ser decifrada, sussurra como enigma. Nesses momentos, o pensamento se curva, mas não se rende — devaneia. E no devaneio encontra uma espécie de verdade que não se prova, não se mede, apenas se pressente. É como uma brisa que atravessa a pele e depois se esquece. Uma luz oblíqua, que não ilumina tudo, mas desenha silêncios nas paredes do saber. A ignorância, então, não é ausência — é território. Um lugar de estar, de demorar-se, de ouvir o que não fala.
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A criança que sonha, a ave que plana sem saber o norte, a flor que se entrega à brisa — são pequenas epifanias desse estado raro onde o mundo não precisa ser entendido para ser vivido. Elas não buscam, não perguntam, não duvidam — existem. E nesse existir sem cálculo, talvez estejam mais próximas da sabedoria do que os que erguem colunas de conceitos e bibliotecas de argumentos. O que nelas vibra é uma confiança antiga, uma aceitação sem alarde. São metáforas de um saber outro, mais íntimo, mais silencioso. Um saber que não se enuncia, mas que se sente como quem sente o calor do sol sem saber sua origem.
Pensar, então, é às vezes desaprender. Esquecer a ordem dos discursos, rasgar os mapas. É deixar-se levar por um vento que não pergunta onde vai dar. É andar por dentro do pensamento como quem caminha por uma floresta: sem rumo, mas com os sentidos atentos. Há saber na errância, e há beleza naquilo que não se explica. O pensamento devaneia quando se permite perder — e ao perder-se, se encontra de outro modo, mais leve, mais próximo do que escapa. A ave adormecida, que nada vê e tudo acolhe, é talvez a imagem mais pura desse saber que não quer possuir, apenas respirar.
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A noite — ah, a noite — não é apenas ausência de sol. É presença de outra coisa. É espaço onde o pensamento se cala e, nesse silêncio, escuta o que de dia não se ouve. A noite não ensina, mas embala. Não corrige, mas abraça. É o ventre escuro onde brotam perguntas sem resposta, e onde as respostas, enfim, se tornam desnecessárias. Pensar dentro da noite é aceitar que há coisas que não cabem em palavras, e que há verdades que florescem apenas quando a luz se apaga. É a noite que ensina ao pensamento a humildade de não saber — e a alegria secreta de não precisar saber.
Talvez devêssemos dar à ignorância o valor de um campo fértil, não de um vazio. Pensar não é sempre iluminar: às vezes é habitar a sombra, respeitar o mistério, dançar com o que não se deixa tocar. O devaneio é uma forma de conhecimento que não passa pela rigidez da prova, mas pela leveza da entrega. Ele não afirma, não conclui, mas insinua. Convida o pensamento a uma espécie de poesia interna, onde saber e não saber se confundem como brumas num espelho. A ignorância, nesse contexto, não é um erro a ser corrigido, mas um estado a ser celebrado.
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Procurar, então, não é sempre correr atrás de respostas. Às vezes é repousar dentro da pergunta. É deixar que a dúvida nos acompanhe como uma velha amiga, e que o pensamento caminhe com ela sem pressa. Quando se devaneia, o saber se desamarra. E quando se aceita a ignorância como chão — não como buraco — algo em nós floresce. Devagar, sem estardalhaço. Como a flor que se abre no escuro. Como a ave que voa sem saber o porquê. Como a criança que sonha. E sonhando, ensina.
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[Cabo Frio/RJ, 5 de maio de 2025]
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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