“O tempo, o tempo, o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio conhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de várias direções o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história.”
– Raduan Nassar, no livro “Lavoura arcaica”. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.182.

Ouça Rolando Boldrin recitando o seu próprio poema “Crônica do Tempo”

“Não tem como ouvir a recitação, sem que a emoção tome conta, e escorra dos olhos a lagrima contida, mas com força suficiente pra se libertar!”

CRÔNICA DO TEMPO
(Rolando Boldrin)

Pra mim, o mundo é um relógio, e o dinheiro é a mola que controla os relógios dessa vida.

Se o senhor tiver tempo pra ouvir minha historia eu começo lhe contando que toda minha vida foi um desencontro entre o tempo e as oportunidades.

Deus nosso senhor que perdoe-me a sinceridade mas até hoje não entendi porque é que pra tudo na minha vida eu sempre cheguei muito tarde ou muito cedo;

Pra começar nasci fora de tempo, sou de sete meses, e se foi cedo de mais pra dar dores e tristezas a minha mãe com essa minha pressa de nascer, foi tarde de mais pra dar alegria ao meu pai coitado, ele morreu antes de me conhecer, ai começa o meu rosário com o tempo.

Já na idade de ir pra escola foi um tormento, minha mãe coitada corria pra lá e pra cá comigo de mão dada e sempre recebendo o mesmo desengano coitada, “Não pode dona, só pro ano que vem é cedo ainda” ou então “Tarde mais dona as matriculas já estão todas fechadas”.

Com o tempo eu fui crescendo, já mocinho eu procurava emprego, porta de oficina, serviço diferente, coisa de pequena paga e aquelas palavras do tempo me seguindo, sempre acontecendo comigo como um relógio do destino, “Olha moço não tem vagas, se você tivesse sido esperto… Agora o quadro de funcionários já está completo”.

Eu me lembro que até pra o amor eu me atrasei, quando pra aquela garota que eu gostava me declarei ela falou pra mim, “Você chegou tarde de mais, já dei meu coração pra outro rapaz”.

Mesmo assim um dia me casei e desse casamento nasceu um menino muito bonito, foi a unica coisa que me chegou na hora certa, porque ele foi a porta aberta para o meu riso, riso que eu já nem sabia mais como era o jeito; dei a ele o nome de Vitorio, ia ser meu grande vingador, pra me vingar do tempo, das horas, dos relógios e até dos segundos; pra me vingar dos donos desse relógio que é o mundo, o meu grande vingador…

Vitorio foi crescendo como pode, logo já tinha cinco anos, e a vida, o tempo como um inimigo traidor sempre me espiando, um dia meu filho adoeceu como toda criança e eu trabalhava num faz de tudo, pra nada lhe faltar, num dia só fui camelô, entregador de encomenda, jardineiro, Tudo!

E chegava em casa cansado e cheirando mal de suor, pra lhe abraçar e lhe beijar, e o coitadinho doentinho dava dó, estava sofrendo.

Então trouxe o Medico para vê-lo, que logo me disse como homem bom que era, “Corre vá logo comprar esse remédio, quem sabe com isso ele não melhora”.

Como eu não tinha dinheiro para o remédio, peguei um despertador lá de casa a unica coisa de valor, pensando que podia vender ele num brechó, e sai correndo muito; até hoje não entendi porque ouvi uns gritos na rua “Pega ladrão” e gente se aproximando de mim, quem sabe pensando que eu fora de fato algum ladrão, e foi soco, abordoada e quando eu pude perceber já estava de pé na frente de um delegado.

Doutor, meu filho ta doente, ta morrendo, por favor eu tenho aqui a receita olha, e supliquei já chorando e o delegado já acreditando disse ao guarda, “pega o carro” leva o moço e me dando do seu dinheiro disse, “Corre compra o remédio do seu filho”. E eu fui correndo e comprei o remédio e voltei como um raio, mas como sempre na vida eu corri contra o tempo, esse covarde…

Quando abracei meu filho foi que eu vi, mais uma vez eu tinha chegado tarde…

Fonte: TV Cultura de São Paulo







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