LITERATURA

A imoralidade das biografias – Fernando Pessoa

O génio, o crime e a loucura provêm, por igual, de uma anormalidade, representam, de diferentes maneiras, uma inadaptação ao meio. Se repousam, porém, sobre um igual fundo degenerativo, se o génio constitui, de por si, uma espécie nosográfica — são coisas que não sabemos. Manifestação especial de epilepsia larvada, como precipitadamente quis Lombroso, ou manifestação de uma diatese degenerativa, o certo é que o génio é, de sua natureza, uma anormalidade.

Sucede que a imaginação simplista das multidões não destrinça de instinto entre o que na personalidade do homem superior constitui, ou representa, superioridade, e o que nela resulta de concomitante, ou intercorrente, anormalidade psíquica, patentemente tal. No fundo, esta intuição espontânea é justa. Na personalidade tudo se liga? se interrelaciona. Não podemos “separar”, salvo por um processo analítico conscientemente truncador da realidade, na personalidade de Goethe, por exemplo, a modalidade específica da sua ideação literária e a tendência alucinativa que, como se sabe, obriga a autoscopia externa; nem podemos separar na personalidade de Shakespeare a intuição dramática de, por ex., a inversão sexual.

A grande multidão de fascinados inferiores, incapazes de criar e de (…), falhos de inibição e de senso crítico, na impossibilidade de (… ), com razoável êxito (salvo um declarado [?] delírio de grandezas) imitar os poemas de Musset ou os de Verlaine, podem contudo, com maior aproximação, plagiar ao primeiro o copo [?] gigantesco com que se embriagava quotidianamente, e ao segundo a sua incurável vagabundagem e amoralidade de degenerado típico. Quem não pode fazer versos como Baudelaire pode, porém, tingir os cabelos de verde. A prática da pederastia, embora nem sempre fácil […], é contudo mais fácil que a produção de uma segunda “Salomé”.

As biografias dos grandes homens realizam hoje, no sentido inverso, o que entre os homens da Renascença realizou a leitura de Plutarco. Criam um mimetismo […].

1913?
Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1966. – 133.

Mais sobre e com Fernando Pessoa
Fernando Pessoa – o poeta de múltiplos eus
Fernando Pessoa (poemas e textos)

Revista Prosa Verso e Arte

Música - Literatura - Artes - Agenda cultural - Livros - Colunistas - Sociedade - Educação - Entrevistas

Recent Posts

Sou um Católico Civil, por Paulo Baía

Sou um católico civil. Carrego em mim a doçura franciscana, o silêncio beneditino, a disciplina…

19 minutos ago

Luedji Luna lança álbum ‘Antes Que A Terra Acabe’

Luedji Luna emerge de águas profundas para percorrer os caminhos telúricos do amor em “Antes Que A…

12 horas ago

55º Festival de Inverno de Campos do Jordão terá 76 apresentações gratuitas

Criado em 1970 e reconhecido como o maior e mais tradicional evento de música clássica…

2 dias ago

Santo Antônio, amor em tempo de guerra – por Paulo Baía

Num 13 de junho que amanhece com o planeta tremendo, com líderes do mundo se…

2 dias ago

Congadar e Teresa Cristina lançam versão da banda Os Tincoãs

O clássico “Promessa ao Gantois” (Grinaldo Salustiano dos Santos e Mateus Aleluia Lima), da banda…

2 dias ago

Nina Wirtti e Guto Wirtti lançam releitura contemporânea da canção ‘Meu Primeiro Amor’

Neste novo lançamento digital, a cantora e compositora Nina Wirtti (que prepara álbum especial ainda…

2 dias ago