Barco
Vou hoje começar a recordar-te
embora a luz entrando sob o arco
escasso da realidade possa dar-te
a ilusão ainda de que o barco

simplesmente balouça mas não parte
Já partiu afinal do porto parco
onde vieste perceber a arte
de nada ser; no mesmo barco marco

lugar como num ventre: igual escala
é a perda da vida que ganhá-la
– Gastão Cruz, em “Repercussão”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

§

Ramo
Talvez eu não consiga quanto amo
ou amei teu ser dizer, talvez
como num mar que tu não vês
o meu corpo submerso seja o ramo
final que estendo já não sei a quem
– Gastão Cruz, em “A moeda do tempo e outros poemas”. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.

§

TW, Dragon Country
Acreditávamos no tempo quando
o país do dragão era um espectáculo
de fronteira inviolável, e a angústia
não saía de dentro do cenário, e a
emoção era um lugar fictício:
acreditar no
tempo o erro mais terrível
– Gastão Cruz, em “Fogo”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013.

§

1
Há dias em que em ti talvez não pense
a morte mata um pouco a memória dos vivos
é todavia claro e fotográfico o teu rosto
caído não na terra mas no fogo
e se houver dia em que não pense em ti
estarei contigo dentro do vazio
– Gastão Cruz, em “Fogo”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013.

§

5
Tornara-se perfeita a coincidência:
sobre a mesa puseras os braços e subia
o teu olhar; ameaçavas mas eras
o ser ameaçado, por um tiro talvez;
nesse momento não podias
nem mesmo suspeitar de como era tão breve
a personagem
de que não te separaras
– Gastão Cruz, em “Fogo”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013.

§

33
Eu vivi nesses anos mas não sei
o que foi por exemplo ter vivido
em mil novecentos e setenta e sete
embora lembre bem a face e o
movimento de cada actor
no palco de cimento,
e o que fora de cena era a alegria
e a dor da minha noite e do meu dia
– Gastão Cruz, em “Fogo”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013.

§

Nas muralhas do mar
Qual dentre as primeiras do
dia é a imagem
da gruta onde a voz
se repercute o
tema do extenso poema
falhado tal o autor o dizia
ansiosamente prostrado
na adoração da morte Do seu

corpo esgotado
pela algidez das águas não sobrava
nenhum tempo vivido entre
as muralhas gerais dessas
cidades Assim
como uma vaga suicida
marcado pela água o corpo à gruta
tal a voz à imagem refluia.
– Gastão Cruz, em “O pianista”. Porto: Limiar, 1984.

§

Lembrança da ria de Faro
Dunas atrás da casa
gafanhotos cor de
madeira cardos cor de areia
ao fim da tarde,
barcos na água rósea
onde a cidade, em frente à casa, cai
De madeira caiada a
casa está
sobre a areia, que escurece quando
a maré devagar desce na praia
– Gastão Cruz, em “Crateras”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.

§

Chegada
Parece-me irreal que tenhas vindo,
quase irreconhecível: onde estava
o impossível
eco de vida, íngreme, o passado
tornado mais passado?

Parece-me real que tenhas ido
ser outro ser, distante desta praia
Reconheci-te?
A lua minguante
de agosto iluminou tua chegada.
– Gastão Cruz, em “Escarpas”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

§

Escarpas
Tantos vieram para quem estar vivo
foi ouro em que seu ferro converteram;
pelo dia chamados tantos eram
que como lençol negro a luz cobriam,

obscura multidão tal o vazio
lugar universal que biliões
de anos-luz levaria a percorrer,
nuvens de aves morrendo em sucessivo

quebrar do tempo nas escarpas gastas
da passagem; mas como atravessar
o vazio sem tempo, aquele que há-de

ser o tempo de todos? Tantos vieram
mudar seu ferro em erro, é de viver
e morrer que se trata, ferro em ferro
– Gastão Cruz, em “Escarpas”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

§

Ofício
Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe

Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe

Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira.
– Gastão Cruz, em “Escarpas”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

§

O que fez sentido
Reformulamos o amor porém se fórmula
não existia como repeti-la?

É preciso criar um eco ambíguo
que deixe de ser eco e tome a forma

do que viver possa ter sido:
encontraremos restos do sentido

que num instante incerto alguma coisa fez
e nunca poderá ser repetido
– Gastão Cruz, em “Escarpas”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

§

No céu negro
Não é usando o adjetivo escuro
ou obscuro
que o poema se escurece.

ele possui a sua escuridão
uma noite que
o esconde e molha no céu negro
– Gastão Cruz, em “Escarpas”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

§

Relatório em forma fechada
Os estragos da noite foram vastos,
inversos ao pulsar da primavera:
há tempo em que se luta pelos gastos
rastos da vida e o tempo novo gera
desilusão somente, esse viscoso
correr da insónia como se já água
as lágrimas não fossem e no fosso
há pouco aberto qualquer outra água
de natureza opaca suspendesse
a sua interminável queda; voltas
por fim à noite espessa que já tece
a madrugada com as linhas soltas
da minha vida, versos que transformam
em realidade as sílabas que os formam
– Gastão Cruz, em “A moeda do tempo”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.

§

A moeda do tempo
Distraí-me e já tu ali não estavas
vendeste ao tempo a glória do início
e na mão recebeste a moeda fria
com que o tempo pagou a tua entrada.
– Gastão Cruz, em “A moeda do tempo”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.

§

Gravura
Ourives-gravador era o ofício
do meu avô paterno: sobre mesas
dispersos utensílios buris limas
por entre chapas e, há muito, objectos

acumulados; lembro-o curvado
com a luneta, fixamente olhando
a dura mão que no metal gravava
por encomenda nomes: desenhava com

força as linhas do seu significado
como se para alguma eternidade
ilusória as gravasse, assim o poeta

com o buril inscreve na deserta
chapa do mundo não interpretado
o sentido precário de o olhar
– Gastão Cruz, em “A moeda do tempo”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.

§

Rainha da noite
De que serve sonhar que não acabe
alguma tarde como o dia a vida

A madrugada rasga o céu do palco
nas árias da rainha suicida

Mas a noite da morte é que não abre
as veias dando o sangue a outro dia
– Gastão Cruz, em “Os poemas”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

§

A colher
Reabro uma
gaveta da infância
e encontro a colher em desuso caída
a sopa lentamente se escoando
no prato fundo:

a vida
em certos dias tinha a forma
daquele objecto antigo
tocando-me nos
lábios com um calor excessivo.
– Gastão Cruz, em “Os poemas”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

§

Memória
A voz rouca da noite exprime a nossa
memória poderia dizer a
nossa história mas evito

o que possa
anular o sentido
do que procuro manter vivo
– Gastão Cruz, em “Observação do verão”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011.

§

Corda
Ninguém tem nome: apenas uma escura
corda de sons que prende o corpo e deixa
queimaduras na pele, esse é o preço
de ser nomeado porque o chamamento

de cada vez se torna mais ardente
até ser casa ou roupa ou outra pele
que fere o corpo e finalmente o veste
do nome que é o dele
– Gastão Cruz, em “Óxido”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

§

Exercícios de morte
Corríamos perigo e não sabíamos
corrê-lo: cada noite era um oceano
em que nadar causava maior dano
ao acto de viver; substituíamos

toda a roupa molhada quando o mar
as ilhas submergia e refluindo
descobria lençóis de lava findo
o exercício de morrer; amar

já se encontrava aquém da ameaça
e um novo exercício começava,
princípio e fim da noite, inútil chave
da câmara fechada onde uma baça

falsa promessa o breve movimento
doutra onda traçava no mar lento
– Gastão Cruz, em “Óxido”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

§

A fadiga
Nada me prende à vida
e se vivo,
só vivo de fadiga e se forçado
sou a continuar a fatigar-me
como sucede agora, e me nutro
de desgostos veementes e absurdos
nestes climas atrozes, a existência
receio abreviar

Outrora está tão perto que está longe:
que diferença fazem as idades, que muralha
as separa?
Nada posso dizer: o que perdi
esqueci porque as palavras
não formam já o mundo nem o mundo
forma já as palavras;
para poder beber destilo o mar
– Gastão Cruz, em “Óxido”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

§

Dizer um nome
Não direi o teu nome para
nós evidente pois estás no centro
da multidão que fomos quando a outros
disputámos o óxido do ouro

Não direi o teu nome como outrora pedi
que não dissesse o meu nome quem tinha
o poder de o dizer em pleno dia:
dizer um nome é sempre uma heresia
– Gastão Cruz, em “Óxido”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

§

Peregrinos
Toda essa gente dos transportes públicos
diariamente em trânsito parece
mover em sentido único um corpo que arrefece

Viste passar espectros vindos
do espelho informe em que também te vês
romeiros quem sois vós que destruís
a vossa imagem desistindo dela

Filhos fostes; trazidos na corrente
do fogo, regressais
ao presente e chamais-vos ninguém
– Gastão Cruz, em “Óxido”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

§

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Gastão Cruz – poeta português

BREVE BIOGRAFIA DE GASTÃO CRUZ
Gastão Cruz, poeta e ensaísta português, nasceu em 1941, na cidade de Faro, no Algarve, e licenciou-se pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em Filologia Germânica.
Professor do ensino secundário, o autor exerceu paralelamente, entre 1980 e 1986, a carreira de leitor de Português no King’s College de Londres e dirigiu, nos anos 70 a 90, após a morte de Carlos Ferreira, o grupo de teatro Teatro Hoje/Teatro da Graça que ajudou a fundar.
O gosto pelo teatro e pelo mundo da poesia “empurra-o” para a tradução de títulos dramáticos de, entre outros autores, Strindberg, Shakespeare (Conto de Inverno) e Cocteau e para a organização de recitais dramatizados que proporcionam uma intensa divulgação poética.
Ainda muito jovem, com apenas 19 anos, Gastão Cruz, manifestando já um grande apego pelo texto poético, publica o seu primeiro livro, A Morte Percutiva, no volume colectivo intitulado Poesia 61, que compila textos de uma plêiade de cinco jovens poetas: Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge e Maria Teresa Horta.
Homem com uma forte ligação à terra onde nasceu, o autor sente uma grande revolta quando olha para o que o rodeia. A destruição do cenário que o viu nascer e crescer, nomeadamente o da Ilha de Faro onde passava as férias de Verão: o mar, a areia, os cardos, as plantas e os seus aromas e, sobretudo, o silêncio e o isolamento são temas recorrentes na sua poética. Mas, na sua obra, perpassam temas diversos como a dor, a metamorfose, a guerra colonial (Outro Nome e Aves), a morte (Pedras Negras).
Começando por assumir uma escrita experimentalista, Gastão Cruz adoptou depois formas clássicas como o soneto e a canção, que reflectem bem, desde os anos 60, a influência de Camões que, aliás, o autor não desmente. As suas obras são caracterizadas pela contenção quantitativa, sendo assim reduzido o número de textos que compõem cada volume. Ao contrário, cada um destes textos são portadores de uma grande densidade de significação e formam entre si uma unidade que se estrutura como uma teia. Orgão de Luzes, por exemplo, é composto por 15 poemas caracterizados por um vocabulário escasso e por um “virar” do sujeito poético para si próprio, como se fechado dentro de uma Campânula (título de um outro livro publicado em 1978).
Acreditando que a poesia deve conter um “discurso autónomo”, correspondendo a um “sistema com as suas leis próprias”, Gastão Cruz considera que esta deve resultar de um trabalho de composição consistente e rigoroso.
Autor de uma obra muito diversa, publicou, entre outros, os seguintes títulos: A Morte Percutiva; A poesia Portuguesa Hoje, 1973; Campânula, 1978; Orgão de Luzes; Transe (1960-1990); As Pedras Negras, 1995; Poesia Reunida, 1999; Crateras, 2000 que recebeu o Prémio D. Dinis.
Fonte: Assírio & Alvim Editores

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Gastão Cruz – foto: Miguel Manso/Publico – Portugal

OBRA DE GASTÃO CRUZ
Poesia
:: A morte percutiva, poesia 61. Faro: Edição dos autores, 1961.
:: Hematoma. Covilhã: Livraria Nacional, 1961.
:: A doença. Coleção Novos, nº 7. Lisboa: Portugália Editores, 1963.
:: Outro nome. Coleção Poesia e verdade. Lisboa: Guimarães Editores, 1965.
:: Escassez. Faro: Edição de Autor, 1967.
:: As aves. Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1969; 2ª ed., 1972.
:: Teoria da fala. Coleção Cadernos de Poesia, nº 24. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1972.
:: Os nomes [reunião de todos os livros anteriores e ‘Os Nomes desses corpos’). Lisboa: Assírio & Alvim, 1974.
:: Campânula. Lisboa: Edições & etc., 1978.
:: Os nomes desses corpos. 2ª ed., Porto: Editorial Inova, 1979.
:: Órgão de luzes Coleção Subterrâneo três. Lisboa: Edições & etc., 1981.
:: Poesia 1961-1981 [reunião de todos os livros anteriores e ‘Referentes’]. Porto: O Oiro do Dia, 1983.
:: O pianista. Coleção Os olhos e a memória, nº 28. Porto: Limiar, 1984.
:: Órgão de luzes. poesia reunida. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1990.
:: As leis do caos. Coleção Peninsulares. Literatura, nº 36. Lisboa: Assírio & Alvim, 1990.
:: Transe. [antologia 1960-1990]. Lisboa: Relógio D’Agua, 1992.
:: As pedras negras. Lisboa: Relógio d’Agua, 1995.
:: Poemas reunidos. Coleção Poesia do século XX, nº 33. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1999.
:: Crateras. Coleção Peninsulares. Literatura, nº 62. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.
:: Rua de Portugal. Coleção Poesia inédita portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002.
:: Repercussão. Coleção Poesia inédita portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
:: A moeda do tempo. Coleção Poesia inédita portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006.
:: Os poemas. (coletânea). Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
:: Escarpas. Coleção Poesia inédita portuguesa, nº 118. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
:: Observação do verão. Coleção Poesia inédita portuguesa, nº 127. Lisboa: Assírio & Alvim, 2011.
:: Fogo. Coleção Poesia inédita portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013.
:: Óxido. Coleção Poesia inédita portuguesa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.

Ensaio
:: A poesia portuguesa hoje. 1973; 2ª ed., revista e aumentada. 1999.
:: Carta a Otelo. Coleção Subterrâneo três. Lisboa: Edições & etc., 1984.
:: A vida da poesia – Textos críticos reunidos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.

Tradução*
:: Doze canções de Blake. [tradução Gastão Cruz]. Porto: O Oiro do Dia, 1980.
:: Troco a minha vida por candeeiros velhos (Cambio mi vida por lámparas viejas), de Léon de Greiff. [tradução Gastão Cruz]. Lisboa: Editora Abysmo, 2014.
* traduziu outros autores: Jean Cocteau, Jude Stéfan e Shakespeare.

Organização
:: Ao longe os barcos de flores. Poesia portuguesa do século XX. [organização Gastão Cruz]. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.

Brasil
:: A moeda do tempo e outros poemas. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009.

© Direitos reservados ao autor/e seus herdeiros

© Pesquisa, seleção e organização: Elfi Kürten Fenske







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