Paulo Baía

‘Estudo o humano porque não me basto’, por Paulo Baía

Sou simplesmente alguém que atravessa a vida com olhos abertos, um corpo sensível que tropeça nos próprios sentimentos e transforma essas quedas em linguagem. Caminho pelas ruas com uma canção presa na garganta e um mundo inteiro pulsando sob a pele. Não sou herói, nem sábio, nem exemplo. Atravesso o tempo com o peso da dúvida e o clarão das epifanias pequenas. Minha verdade não é um farol que guia, mas uma fogueira acesa para aquecer na noite fria do pensamento.
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Escrevo porque o verbo me salva. Falo porque o silêncio me inquieta. Ensinar é, para mim, uma forma de aprender mais fundo e com mais gente. Compartilhar ideias é um gesto de confiança, uma forma de entrega. Estudo sociologia porque quero entender o humano. Estudo o humano porque não me basto. O que ofereço não é doutrina, nem direção. É um olhar. Um gesto. Um toque breve de reconhecimento. A partilha de uma inquietação que nos torna mais humanos quando não estamos sozinhos.
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Minha música não pede palmas. Ela ecoa no compasso do mundo, nos passos trêmulos dos que buscam. Meu pandeiro não marca um ritmo certo. Ele vibra como vibra o coração de quem ama, de quem teme, de quem tenta. Não espero que ninguém dance conforme meu compasso. Mas se dançarmos juntos por um instante, se nossos passos se encontrarem na mesma batida, então já valeu a travessia.

A beleza que ofereço não é escultura nem doutrina. É a beleza do instante, da presença, da escuta. A beleza de um gesto gratuito, de uma palavra justa, de um olhar que não julga. Não venho trazer certezas. Trago presença. Não ensino o caminho. Caminho junto. Não conduzo ninguém. Estendo a mão, e se ela for segurada, então seguimos lado a lado, com o mesmo medo, com a mesma ousadia, com a mesma sede de sentido.
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Entre o afeto e o pensamento há um campo vasto onde florescem os gestos mais belos. Nesse campo habito. Ali o saber dança com o sentir, a teoria se curva diante da ternura, a análise encontra abrigo na fragilidade. Não quero seguidores. Quero amigos. Companheiros que entendam que o saber não é escada para subir acima de ninguém, mas ponte que nos liga, que nos iguala, que nos humaniza.
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Não sou guia porque não conheço o destino. Também me perco. Também choro. Também erro. Mas sigo com coragem. Com humildade. Com olhos úmidos e pés calejados. A cada encontro, uma chance de renascer. A cada conversa, uma possibilidade de reconstrução. A cada mão estendida, um milagre pequeno que me devolve a fé no que somos quando nos permitimos ser com os outros.

A vida, afinal, não se revela nos grandes discursos, mas nos gestos miúdos. No cuidado. No silêncio que acolhe. Na escuta que não exige. Nas palavras que nascem do ventre da experiência. Minha ousadia é dizer o que sinto. Meu medo é que não me escutem de verdade. Minha esperança é que, ao me ler ou me ouvir, alguém se reconheça menos só.
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O que trago não é fórmula, nem resposta, nem salvação. É só a minha forma de estar no mundo. E se isso tocar o outro, se isso provocar uma fresta de luz, um sopro de beleza, um desejo de compreender mais fundo o que somos, então já é o bastante. O resto é vida, essa travessia incerta onde o pensamento, o afeto e a amizade se entrelaçam como raízes subterrâneas sustentando nossa breve e preciosa humanidade.
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[Cabo Frio/RJ, 8 de julho de 2025]
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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