Fernando Pessoa (autoria não identificada)
Estética da indiferença – Bernardo Soares (*)
Perante cada coisa o que o sonhador deve procurar sentir é a nítida indiferença que ela, no que coisa, lhe causa.
Saber, com um imediato instinto, abstrair de cada objecto ou acontecimento o que ele pode ter de sonhável, deixando morto no Mundo Exterior tudo quanto ele tem de real — eis o que o sábio deve procurar realizar em si próprio.
Nunca sentir sinceramente os seus próprios sentimentos, e elevar o seu pálido triunfo ao ponto de olhar indiferentemente para as suas próprias ambições, ânsias e desejos; passar pelas suas alegrias e angústias como quem passa por quem não lhe interessa.
O maior domínio de si próprio é a indiferença por si próprio, tendo-se, alma e corpo, por a casa e a quinta onde o Destino quis que passássemos a nossa vida.
Tratar os seus próprios sonhos e íntimos desejos altivamente, en grand seigneur (…), pondo uma íntima delicadeza em não reparar neles. Ter o pudor de si próprio; perceber que na nossa presença não estamos sós, que somos testemunhas de nós mesmos, e que por isso importa agir perante nós mesmos como perante um estranho, com uma estudada e serena linha exterior, indiferente porque fidalga, e fria porque indiferente.
Para não descermos aos nossos próprios olhos, basta que nos habituemos a não ter nem ambições, nem paixões, nem desejos, nem esperanças, nem impulsos, nem desassossego. Para conseguir isto lembremo-nos sempre que estamos sempre em presença nossa, que nunca estamos sós, para que possamos estar à vontade. E assim dominaremos o ter paixões e ambições, porque paixões e ambições são desescuidarmo-nos; não teremos desejos nem esperanças, porque desejos e esperanças são gestos baixos e deselegantes; nem teremos impulsos e desassossegos porque a precipitação é uma indelicadeza para com os olhos dos outros, e a impaciência é sempre uma grosseria.
O aristocrata é aquele que nunca esquece que nunca está só; por isso as praxes e os protocolos são apanágio das aristocracias. Interiorizemos o aristocrata. Arranquemo-lo aos salões e aos jardins passando-o para a nossa alma e para a nossa consciência de existirmos. Estejamos sempre diante de nós em protocolos e praxes, em gestos estudados e para-(os)-outros.
Cada um de nós é uma sociedade inteira, um bairro todo do Mistério, convém que ao menos tornemos elegante e distinta a vida desse bairro, que nas festas das nossas sensações haja requinte e recato, e porque sóbria, cortesia nos banquetes dos nossos pensamentos. Em torno a nós poderão as outras almas erguerem-se os seus bairros sujos e pobres; marquemos nitidamente onde o nosso acaba e começa, e que desde a frontaria dos prédios até às alcovas das nossas timidezes, tudo seja fidalgo e sereno, esculpido numa sobriedade ou surdina de exibição.
Saber encontrar a cada sensação o modo sereno de ela se realizar. Fazer o amor resumir-se apenas a uma sombra de ser sonho de amor, pálido e trémulo intervalo entre os cimos de duas pequenas ondas onde o luar bate. Tornar o desejo uma coisa inútil e inofensiva, no como que sorriso delicado da alma a sós consigo própria; fazer dela uma coisa que nunca pense em realizar-se nem em dizer-se. Ao ódio adormecê-lo como a uma serpente prisioneira, e dizer ao medo que dos seus gestos guarde apenas a agonia no olhar, e no olhar da nossa alma, única atitude compatível com ser estética.
s.d.
Livro do Desassossego por Bernardo Soares. Vol.II. Fernando Pessoa. [Recolha e transcrição dos textos de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha. Prefácio e Organização de Jacinto do Prado Coelho]. Lisboa: Ática, 1982. – 358.
“Fase decadentista”, segundo António Quadros (org.) in Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Vol I. Fernando Pessoa. Mem Martins: Europa-América, 1986.
Fonte: Arquivo Pessoa
(*) Ortografia: Português de Portugal
Mais sobre e com Fernando Pessoa
Fernando Pessoa – o poeta de múltiplos eus
Fernando Pessoa (poemas e textos)
O cantor e compositor Thiago Miranda lança o álbum NorDestino, inspirado pela conexão com o…
Infância, ancestralidade e cultura Bantu se encontram em Dingo-Dingo, no Sesc Interlagos. Montagem une teatro,…
A cantora e compositora Alaíde Costa lança “Uma Estrela Para Dalva”, álbum com tributo à Dalva…
Assistida por mais de 70 mil pessoas, Bárbara, estrelado por Marisa Orth, retorna ao Teatro…
Em "Porcos Não Olham Pro Céu", quinteto Undo sugere resistência em tempos sombrios. Terceiro single…
Dani Mattos e o grupo vocal Poucas & Boas relembram canções folclóricas brasileiras em espetáculo…