Vez ou outra surge a notícia de alguma livraria fechando. Com os sebos certamente não é muito diferente. Não tenho números, mas observo que boa parte dos sebos paulistanos em que já pisei ao menos uma vez não existe mais. Ou existe apenas em sua versão “virtual”. Os antigos de repente somem, ao menos “fisicamente”; funcionam como mero local de armazenamento de livros comercializados pela internet.

Nada de anormal, okay: tempo de internet, economia baixa, num país em que vender livro já não é tarefa fácil etc. E há vantagens no consumo on line: raridades, por exemplo, são mais fáceis de encontrar, ainda que a preços com frequência abusivos. Além da imensa facilidade em relação ao processo de compra. Mas há também alguns agravantes pouco mencionados, e cujas implicações talvez sejam mais sérias.

O grande barato dos sebos é justamente a forma singular de contato que eles fornecem. Sebos, como os do centro de São Paulo frequentemente eram caóticos – e isso era ótimo. Eram os locais de encontro com raridades, livros antigos, seminovos e novos, mas sobretudo eram espaço em que se empilhavam obras distintas de épocas diferentes, com o mínimo critério possível de organização, tema, autor, assunto, e às vezes, como em várias paredes do finado e gigantesco Sebo do Ornabi, sem critério nenhum. E por vezes o pessoal do sebo não sabia que uma obra rara era o que era, deixando-o por preço ridiculamente barato – com a internet, isso se tornou quase impossível.

Andar pelo sebo, mesmo sem ter nenhuma compra à mente, era uma aventura ímpar. Particularmente, não me recordo, durante minha “sebosa” adolescência, de ter saído de um sebo sem nada nas mãos. A lojinha dos livros velhos permitia levar um Gide, ou um Dino Buzzatti, ou um “O jovem Torless” do Robert Musil por três reais. Sim, com frequência eram edições precárias, amareladas, quase um criadouro de fungos; mas por que a crueldade de não lhes dar a chance de, ao menos, um último dono, uma derradeira leitura, antes do definhar definitivo?

Ocorre que nas estantes virtuais da vida, isso não existe. São sítios avaliados pelo estado dos produtos, e pela integridade quanto àquilo que se prometeu entregar. Assim, livros muito antigos, outros nem tão antigos, alguns meio mofados, vão direto pra lata do lixo. Obras com problemas acima do “aceitável” idem, tornaram-se inviáveis. Lembro de ter comprado “Jung e o Tarot”, de Sallie Nichols, edição difícil de ser encontrada, por cinco reais, há uns quatro anos. O motivo de tamanha barateza era justamente o fato de haver partes aparentemente comidas por traças, buracos e alguns rasgões em outras partes. Algumas páginas um tanto grifadas à caneta. Mas, por incrível que pareça, com alguma boa vontade não se perde uma só palavra da obra ao abri-la. O aspecto inicial era péssimo; por dentro, tudo no seu lugar. Não dá pra imaginar os sítios de venda colocando tamanha “aberração” à disposição. Acabo de buscar a mesma obra na Estante Virtual: a mais barata custa quarenta pilas, contando o frete.

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Sebo do Messias, centro de São Paulo, ainda resiste “fisicamente”. Fonte: São Paulo Antiga.

Essa era a vantagem do sebo “físico” (algo ridículo ter que escrever esse “físico”, não?). Ali, você escolhia não com critérios frios, mas com as mãos, o olfato, e eventualmente, alguma característica que lhe trouxesse empatia. Como aqueles livros antigos da Civilização Brasileira, simpaticíssimos, com as “orelhas” impressas no verso, não raro um tanto tortas, o que longe de ser um defeito, garantia uma identidade às edições. Quando se lerá tal minúcia descrita num sítio internético?

No sebo você entra, sem nada na cabeça, bate o olho e leva. Na internet, primeiro pensamos, depois levamos. Perde-se muito da graça. O antigo prazer de levar meia hora pensando entre levar um ou outro, isso morre se o sebo deixa de existir.

Sebo é sinônimo de surpresa. Achava-se bilhetes antigos, cédulas fora de circulação, cartas, receita de bolo pra marcar página. Poemas improvisados, ingressos de cinema, anotações bestas. Com a peneira dos sebos para os sítios virtuais, isso acabou. E quando se deparam com autógrafo de autor famoso – o que antigamente passava em branco muitas vezes – são cem ou duzentos reais a mais.

Os sebos sempre foram o paraíso dos amantes de livros. E a possibilidade de barganhar, inexistente na internet, era outro atrativo que está se perdendo. Tive um amigo alfarrabista em Mogi das Cruzes (tornei-me seu amigo por frequentar sua minúscula loja, bem no coração da cidade). Tinha ele aquela famosa coleção “Vidas dos homens ilustres” de Plutarco, cerca de 15 volumes. Num estado tal que dificilmente interessariam aos sebos na Estante Virtual: imenso amarelado das páginas, seguidos de um forte odor.

Ocorre que quando Beto – assim chamava meu amigo livreiro– os adquiriu, logo barganhei um preço. Prometi levar todos, se me vendesse cada qual por cinco reais. Por alguma razão, ele achava que ninguém queria levar o Plutarco, e somando à amizade, assim o fez. Levei todos após algum tempo. E logo notei que quase todos nunca haviam sido lidos, pois as edições, de fins da década de 50, estavam ainda com as páginas fechadas, como era típico de alguns livros antigos. Com uma régua, ia abrindo página a página, e em seis décadas devo ter sido seu único leitor (um amigo, o Pedro Leonardo, andou lendo as biografias de Caracala e Heliogábalo, se bem notei). Além do mais, o “amarelão” estava mais na parte de fora dos livros; quando abertos, respiravam ainda embranquecidos. Quantos livros terão sido destruídos sem num ter sido penetrados por um par de olhos…

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“Primeiro livros, depois homens”. Berlim, década de 1930. Fonte: Wikipédia.

Talvez os problemas acima sejam ainda solucionados pela rede, por mais cuidado na mediação. Mas é só um “talvez”.

Certa vez, num sebo na Vila Mariana, o dono, que estava ao meu lado, rasgava livros. Rasgava. Achei estranho quando vi, pensei que fossem revistas velhas, sei lá o quê. Olhei, vi que em suas mãos estava uma edição de capa dura de “A arca de Noé”, de Vinícius de Moraes. A capa foi rasgada, o resto não, porque intervi e pedi para que me cedesse. Perguntei o porquê da atrocidade, a resposta foi a mesma: “muito velho”, “mofado” etc. Na verdade, o livro, edição dos anos 90 da clássica coletânea de poemas infantis, estava ótimo. O sujeito rasgava era por hábito, e boa parte das vezes sacrificava obras em bom estado. Presume-se que isso sempre se deu nos sebos, mas sem essa furtiva e involuntária “fiscalização”, com sebos virtuais quantas obras não terão o mesmo destino das fogueiras da Alemanha dos anos 30? Esse pequeno Vinícius eu salvei.

Talvez, no entanto, o espírito disso tudo esteja de acordo com nossos tempos, que não são apenas um tanto fluidos, mas vez ou outra sopram um ar de indisfarçado autoritarismo, alimentado, como sempre é, pela ignorância. Heine afirmou, ainda no século XIX, comece a queimar livros e terminará queimando homens. E basta sair as ruas pra notar que os archotes já foram acesos nas mãos de muitos.

Em tempo: ao chegar em casa com “A arca de Noé”, minha primeira providência foi colar a capa, e tenho o livro até hoje, quase uma década após o incidente. Estou ensinando meus irmãos guris, algo entre sete e oito anos, a gostar do Vinícius. Não duvido nada de meu sucesso na missão.

* André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colunista e colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.

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