Senta, pega um suco detox – com uma pitada de colágeno hidrolisado – que lá vem a história. As preocupações com o corpo – construído como um território continuamente em expansão – com a saúde e o “bem estar” vêm se transformando numa espécie de política de gestão social, sobretudo a partir das últimas décadas do século XX. Os suplementos ganham prestígio e publicidade, surge moda dos orgânicos, da ingestão de pílulas de alho, de licopeno, as promessas de doces antidiabéticos e que combatem a velhice, e, claro, a guerra aos alimentos transgênicos. Não se trata, aqui, de avaliar, julgar, defender, condenar seus conteúdos e alcances, mas nesse contexto urge problematizar o ideal de corpo eficiente: esse corpo moldado por infinitas intervenções que buscam torná-lo mais ágil, mais leve, mais magro, mais jovem, mais belo, mais, mais e mais…
Escolho essa perspectiva por me basear no último livro em que mergulhei de cabeça em 2016: Gordos, magros e obesos: uma história de peso no Brasil da professora Denise Bernuzzi de Sant´Anna. A obra narra de forma intrigante a história de medir e pesar os corpos, de conceber socialmente o significado da gordura e a sua falta, e como estes foram transformados na “principal carta de identidade individual”. A figura do corpo é descrita no centro de disputas tanto para aqueles que se dobram às normas para alcançar aparência corporal e saúde “padronizados” como para aqueles que se revoltam contra o Império da beleza, dos pesos e medidas.
O livro narra uma batalha à mesa, e também fora dela ao descrever um movimento de mudança profunda na concepção científica dos gordos e magros desde o século XIX. Se quando a maior parte da população brasileira morava em zonas rurais o ideário era ser muito gordo, pois sinalizava fartura, abundância e riqueza, nas sociedades industriais os estudos sobre combustão, somados ao desenvolvimento das empresas de seguro e leis da Termodinâmica, contribuíram para um novo ideal de corpo que estabelecia a adiposidade abundante como uma falha orgânica, que incapacitava para o trabalho, ou, ainda, um excesso de “matéria inútil” acumulada dentro do organismo. Sai de cena o corpo-armazém, devoto ao estoque de gordura para épocas difíceis, para emergir a “maquina corporal”, queimador de carbono, digo de calorias, apto a transformar os alimentos em energia produtiva.

Nesse território corporal, a visão negativa e industrial do corpo gordo e a emergência do corpo eficiente se nutrem de uma pedagogia do bem estar pleno que é movida pelos paradigmas híbridos médico-esportivo, dos alimentos-remédios e dos dermocosméticos, os quais ocupam hoje um lugar de destaque na elaboração de políticas públicas em prol da vida ativa e até mesmo na programação da televisão. São muitos os exemplos no nosso dia a dia, desde a Caminhada contra o câncer de mama, passando por biscoitos que não são apenas biscoitos, pois enriquecidos com doses suplementares de vitamina e cálcio, chegando aos iogurtes antirrugas à base de chá verde e antioxidantes, e, até mesmo, o que espantou muita gente à sugestão que circulou nas mídias digitais de uma versão fit dos famosos saquinhos de doce de Come e Damião, porém recheados de oleaginosas (castanhas, amendoins sem sal, é claro) e barrinhas de cereal.
Na era da medicalização dos costumes, da comida, dos cuidados com a aparência ou dos prazeres, algo que já fora anunciado por Foucault em vários de seus estudos sobre a sexualidade e o biopoder, a gestão da vida chega a altos níveis de sofisticação. Na batalha contra a velhice, a flacidez e gordura, o corpo, que naturalmente insiste em não ceder, é alvo de diversas intervenções disciplinadoras e controladoras que colocam em curso programas de exercícios para arregimentá-lo por meio de uma pedagogia da boa forma, além de uma biopolítica da saúde e uma educação para alimentação “saudável”.
Assim, nessa panacéia de práticas institucionais que conjugam novas tecnologias de gerenciamento da vida e do corpo, novos sujeitos sujeitados são produzidos. Formam-se sujeitos com corpos eficientes e acima de tudo economicamente ativos que se reorganizam para produzir “capital humano”. Como denominou Foucault, em O Nascimento da Biopolítica (2004), o novo homo economicus deverá ser resultado de investimentos familiares e educacionais, bem como de múltiplas intervenções no âmbito do corpo e da saúde, as quais ampliarão as competências para novos tipos de trabalho e garantirão (pelo menos em tese) o prolongamento da saúde e da juventude desse novo corpo.
Nessa perspectiva empreendedora o “sujeito econômico ativo” produz a si mesmo por meio de novas tecnologias esportivas, nutricionais e medicinais. Esculpe-se um corpo saudável, eficiente, dotado de habilidades informacionais e cognitivas extraordinárias de maneira a tornar o sujeito empreendedor de si mesmo. Lembrando que empreendedorismo is the new black no modo de gestão social, seja no setor de serviços, da economia informal como na organização de todas as esferas da vida. Assim, na lógica do sucesso individual e empreendedor qualquer melhoria de vida é atribuída ao esforço pessoal, à “garra” de cada um para se adequar ao padrão de saúde socialmente cristalizado. Como sugere Tatiana Roque, o self empreendedor, dotado de uma espécie de ética da empresa, sobrecarrega o indivíduo, que deve ser o único responsável por todos os riscos, tendo que assumir sozinho a culpa por qualquer falha ou ausência. “Só é gordo quem quer!”, “Só é rico quem tenta!”. Numa escala pouco visível, promove-se uma lógica que caminha lado a lado com a erosão das bases que organizam a seguridade social, e o Estado como responsável pela provisão de bem-estar e direitos básicos (como a segurança alimentar). Mas isso é conversa pra outra hora…
Hoje nos basta refletir que o empreendedor de si é um tipo subjetivo meio narcísico, meio hipocondríaco, e paralelamente, bastante sedutor por exalar “sucesso”, mobilidade, autoestima, beleza, saúde, capacitação, pensamento positivo, habilidades pessoais e polivalências. Por fim, esse empreendedorismo de si, que poderia ser o título alternativo para a música Harder, Better, Faster, Stronger do Daft Punk, ou até mesmo um dos sintetizadores que compõe o hit de 1978 The Robots do Kraftwerk, habita de alguma maneira cada um nós. E quem escreve isso é uma mãe crosfiteira convicta e adepta da pedagogia da lancheira saudável.

* Julia Gitirana, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, Mestre em Direito pela PUC-Rio, Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPR e apaixonada por filosofia.







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