@Koby Feldmos
A travessia pelo tempo recente da história não se faz sobre trilhos sólidos, mas sobre fragmentos. Fragmentos de ideias, de símbolos, de valores, de palavras que um dia sustentaram o edifício da convivência coletiva. O que antes era chão comum, território de entendimento e disputa civilizada, tornou-se um campo de ruínas em que cada qual tateia sua própria verdade, fabricada ao gosto de suas urgências emocionais. O pensamento crítico, outrora ferramenta de emancipação, transmutou-se em ácido corrosivo que tudo questiona, mas pouco constrói. O mundo, esvaziado de consensos mínimos, tornou-se palco de um teatro desordenado, onde máscaras grotescas se revezam no papel de protagonistas da realidade. Ali, na penumbra do reconhecimento perdido, cresce o apetite das paixões tristes, dos ressentimentos congelados, das identidades que se nutrem do ódio como substituto de pertencimento.
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A cultura, que deveria nutrir sentidos, tornou-se laboratório de dissoluções. Cada obra, cada discurso, cada gesto foi sendo dissecado até que não restasse mais carne, apenas osso. E sobre os ossos, rituais de zombaria e escárnio. Não se celebrou mais o humano, mas sua implosão simbólica. As instituições cambalearam sob o peso da suspeita perpétua. A fé virou superstição, a política virou farsa, a ciência virou inimiga. Nada escapou à fúria de uma crítica desenfreada que não reconhece limites nem responsabilidades. O saber, desconectado de qualquer ética do cuidado, passou a se comprazê-la em sua função destrutiva, rindo daquilo que não compreende, demolindo aquilo que não lhe serve. A ironia se converteu em escudo e em espada. Rir de tudo passou a ser confundido com lucidez. Mas a lucidez verdadeira não ri de tudo. Ela chora junto quando necessário, cala diante do mistério, se curva perante o trágico.
Nesse panorama de destroços, o vazio tornou-se fértil. Fertilíssimo. Onde não há mais marcos, qualquer pegada parece um caminho. Onde não há mais voz confiável, qualquer grito vira profecia. Nesse deserto de referências, surgem os falsos messias, os caudilhos de ocasião, os encantadores de algoritmos. A fragilidade das consciências, desancoradas da história, da comunidade e do afeto, torna-se o adubo perfeito para o crescimento do fanatismo. Não há mais necessidade de provas, argumentos, coerência. Basta que uma ideia satisfaça o desespero ou acalme o pânico para que ela se converta em dogma. A linguagem é sequestrada por sentidos unívocos, trancada em bolhas afetivas, contaminada por slogans que se repetem em looping até que pareçam verdades ancestrais. O passado, então, deixa de ser memória e vira munição.
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As paixões do ressentimento, antes latentes, hoje dançam à luz do dia com seus trajes de festa e suas máscaras de vingança. Não há, nesse novo teatro político e afetivo, lugar para o dissenso real, para a escuta cuidadosa, para o tempo da reflexão. Tudo se quer imediato, tudo se quer binário. Ou se ama ou se odeia. Ou se está dentro ou se está traindo. A complexidade, que é o nome verdadeiro da vida, torna-se suspeita. O outro é sempre ameaça, mesmo quando silencioso. Os afetos que deveriam nutrir a convivência transformam-se em trincheiras emocionais, onde a proximidade vira guerra e a diferença vira heresia. A violência simbólica, gestada por décadas nos subterrâneos do desprezo acumulado, ganha corpo nas redes, nas ruas, nas câmaras de poder. E com ela, a celebração do grotesco, a legitimação do absurdo, a naturalização do abjeto.
É nesse contexto que o livro Eles em Nós, do crítico e ensaísta Idelber Avelar, se torna leitura urgente e reveladora. Avelar oferece um mergulho denso nas formações discursivas do ressentimento, especialmente em sua metamorfose em força política de massa. O autor não trata o ressentimento como uma patologia distante, um delírio dos outros, mas como algo que nos atravessa. Como uma estrutura afetiva e simbólica que molda tanto os afetos mais íntimos quanto as manifestações sociais mais espetaculares. O ressentido, no fundo, é alguém ferido em sua demanda por reconhecimento, alguém que carrega uma falta que se transforma em fúria dirigida ao outro, sobretudo aquele que simboliza sua própria impotência. E o gesto do ressentimento é, quase sempre, projetivo. Acusa no outro aquilo que não suporta em si. Persegue no mundo aquilo que não consegue elaborar na alma.
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Avelar demonstra que, ao invés de ser um excesso de emoção, o ressentimento é muitas vezes a consequência de uma anestesia afetiva prolongada, uma fratura não cicatrizada. Sua força está na capacidade de reverter perdas em armas. De converter a dor em raiva e a raiva em discurso político. Ao abordar o ressentimento como operador do fascismo cotidiano e de seus discursos restauradores, o livro convoca os leitores a uma tarefa difícil e necessária: identificar onde os monstros começam, não apenas nos palanques, mas também nos espelhos. Nesse sentido, sua crítica é tão política quanto psicanalítica, tão social quanto literária. Ele propõe uma arqueologia dos afetos que moldam a cultura e os vínculos sociais, desnudando como a repetição rancorosa do trauma transforma a narrativa em cárcere.
A política do presente, como mostra também o sociólogo Pablo Ortellado em seus ensaios e artigos sobre cultura digital, polarização e fake news, é menos uma disputa de projetos do que um espetáculo de afetos desregulados. Ortellado aponta que, no ambiente digital, os mecanismos de engajamento favorecem conteúdos que ativam indignação, fúria, medo e ódio. A informação cede lugar à performance. A verdade é medida pela capacidade de gerar cliques e emoções fortes. A radicalização não é um desvio do sistema. É o seu combustível. O ressentimento, nesse universo, não é apenas uma consequência. Ele é a engrenagem central. E as redes sociais, com seus algoritmos famintos por atenção, fazem de cada usuário um pequeno profeta da discórdia, um microinfluenciador da guerra simbólica. Ortellado mostra, com precisão, que a destruição da confiança nos marcos comuns do saber e da linguagem não é um acidente. É um projeto de poder.
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Mas essa realidade não é resultado apenas do colapso do mundo lá fora. Ela é também a expressão de um colapso interno. Cada um carrega em si os escombros de promessas não cumpridas, de pertenças corroídas, de laços que um dia foram amor e hoje são desconfiança. O ressentimento não nasce do nada. Ele germina no terreno fértil de perdas mal elaboradas, de traumas herdados, de violências não simbolizadas. A política do presente é também a gestão dos fantasmas do passado. Os que hoje gritam, cancelam e perseguem são muitas vezes os filhos não reconhecidos de uma história marcada por silêncios brutais. Não basta olhar para o presente e ver monstros. É preciso compreender os espelhos que os criaram. E esse espelho está muitas vezes dentro de cada um. A pulsão destrutiva que hoje atravessa a sociedade é, em parte, uma herança maldita de ausências afetivas e epistemológicas.
O que se vive, portanto, não é apenas uma crise política ou cultural. É uma exaustão simbólica. Uma civilização que já não sabe o que adorar nem o que repudiar, que perdeu o norte moral e o sul afetivo. Um mundo que se debate entre os escombros da lucidez e o fascínio pelo abismo. Um tempo em que o conhecimento perdeu a humildade, a crítica perdeu a generosidade, a ética perdeu a densidade. E quando tudo isso se desmancha, o que resta é um campo aberto à ocupação dos afetos mais primitivos: o medo, a raiva, a inveja, a culpa, o ressentimento. Nesse cenário, os saberes das ciências humanas, em sua verdadeira vocação, não devem se ajoelhar nem aos ídolos nem aos cínicos. Devem abrir espaço para a reinvenção, com coragem e ternura. Porque só com ternura se podem erguer, entre as ruínas, pontes. E talvez alguma casa. E talvez de novo um lar.
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Há, no fundo desse quadro sombrio, uma lição incômoda, mas irrefutável: os demônios que hoje nos assombram não vieram de fora. Eles não foram apenas fabricados por mídias venais ou líderes populistas. Eles estavam entre nós e mais profundamente ainda, estavam em nós. O ódio que hoje se espalha com tanta facilidade foi semeado por décadas de cinismo institucional, de abandono educacional, de desigualdade que se disfarçou de progresso. Os que agora marcham ao som da barbárie muitas vezes são aqueles que jamais foram convidados a dançar no salão da civilidade. A vingança deles é dançar sozinhos e cuspir no chão da festa. E no entanto, não se trata de justificar. Trata-se de compreender. Porque compreender não é pactuar. É abrir brechas para que talvez, só talvez, o ciclo da repetição possa ser interrompido.
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A reconstrução exigirá mais do que boas intenções ou gestos simbólicos. Exigirá uma revisão profunda dos afetos que estruturam o social. Exigirá reconectar razão e corpo, pensamento e afeto, crítica e cuidado. O tempo da ironia já passou. O tempo do sarcasmo já exauriu suas energias. O que se impõe agora é o tempo do vínculo. Do reconhecimento mútuo. Da escuta radical. De uma ética da palavra, não como instrumento de destruição, mas como possibilidade de encontro. Talvez não se trate mais de salvar a civilização. Talvez seja a hora de inventar outra. Uma civilização que não precise se afirmar destruindo tudo o que veio antes. Uma civilização que saiba acolher os cacos de sua história sem transformá-los em projéteis. Uma civilização que se autorize, enfim, a amar. Mesmo depois de tudo. Mesmo sem garantias. Mesmo com medo. Amar como ato de revolta contra a ruína. Como recomeço possível. Como política profunda.
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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