sexta-feira, julho 25, 2025

Eduardo Galeano – Dias e noites de amor e de guerra: 12 estórias breves

Um esplendor que demora entre
minhas pálpebras
Ocorreu esta tarde, na estação, enquanto eu esperava o trem para Barcelona.
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A luz acendeu a terra entre os trilhos. A terra teve de repente uma cor muito viva, como se o sangue tivesse subido ao seu rosto, e inchou debaixo dos trilhos.
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Eu não estava feliz, mas a terra estava, enquanto durou esse longo momento, e era eu o que tinha consciência para saber e memória para guardar.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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É a hora dos fantasmas:
Eu os convoco, persigo, caço
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Desenho-os com terra e sangue no teto da caverna. Me vejo com os olhos do primeiro homem. Enquanto dura a cerimônia sinto que em minha memória cabe toda a história do mundo, desde que aquele homem esfregou duas pedras para se esquentar com o primeiro foguinho.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Sonhos
Os corpos, abraçados, vão mudando de posição enquanto dormimos, virando para cá, para lá, sua cabeça em meu peito, minha perna sobre seu ventre, e ao girarem os corpos vai girando a cama e giram o quarto e o mundo. “Não, não”, você me explica, achando que está acordada: “Não estamos mais aí. Mudamos para outro país enquanto dormíamos”.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Tudo isso já não existe
Muitas favelas foram arrancadas do Rio. Foram jogadas longe dos olhos dos turistas.
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Com elas, foram embora seus deuses. Os tambores que clamam maldição ou dão ajuda já não perturbam o sono dos cidadãos.
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A polícia fechou o terreiro de Vovô Catarino. Ele foi expulso da cidade.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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No fundo, tudo é uma questão de História
Vários séculos antes de Cristo, os etruscos enterravam seus mortos entre paredes que cantavam o júbilo de viver.
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Em 1966 desci com Graziela nas tumbas etruscas e vimos as pinturas. Havia amantes em todas as posições, gente comendo e bebendo, cenas de música e celebração.
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Eu tinha sido amestrado catolicamente para a dor e fiquei vesgo nesse cemitério que era um prazer.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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E de coragem
Uma noite, há muitos anos, num boteco do porto de Montevidéu, estive até o amanhecer bebendo com uma puta amiga, e ela me contou:
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– Sabe uma coisa? Eu, na cama, não olho nunca os olhos dos homens. Eu trabalho com os olhos fechados. Porque se eu olhar para os olhos dos homens fico cega, sabe?
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Mas é preciso escolher
Quantas vezes confundimos a bravura com vontade de morrer?
A histeria não é história nem o revolucionário um amante da morte.
A morte, que algumas vezes me tomou e me largou, volta e meia me chama até hoje, e eu mando ela para a puta que a pariu.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Fui feito de barro, mas também de tempo
Desde que eu era garoto soube que no Paraíso não existia memória. Adão e Eva não tinham passado.
Pode-se viver cada dia como se fosse o primeiro?
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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A terceira margem do rio
Guimarães Rosa tinha sido advertido por uma cigana: “Você vai morrer quando realizar sua maior ambição”.
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Coisa rara: com tantos deuses e demônios que este homem continha, era um cavalheiro dos mais formais. Sua maior ambição consistia em ser nomeado membro da Academia Brasileira de Letras.
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Quando foi designado, inventou desculpas para adiar o ingresso. Inventou desculpas durante anos: a saúde, o tempo, uma viagem…
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Até que decidiu que tinha chegado a hora.
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Realizou-se a cerimônia solene, e, em seu discurso, Guimarães Rosa disse: “As pessoas não morrem. Ficam encantadas”.
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Três dias depois, ao meio-dia de um domingo, sua mulher encontrou-o morto quando voltou da missa.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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O homem que soube calar
Juan Rulfo disse o que tinha para dizer em poucas páginas, puro osso e carne sem gordura, e depois guardou silêncio.
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Em 1974, em Buenos Aires, Rulfo me disse que não tinha tempo para escrever como queria, por causa do trabalhão que tinha em seu emprego na administração pública. Para ter tempo precisava de uma licença e essa licença tinha de pedi-la aos médicos. E a gente não pode, me explicou Rulfo, ir ao médico e dizer: “Me sinto muito triste”, porque por essas coisas os médicos não dão licença.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Sonhos
Eu te contava estórias de quando era menino e você via essas estórias acontecendo na janela.
Você me via menino pelos campos, e via os cavalos e a luz e tudo se movia suavemente.
Então você apanhava uma pedrinha verde e brilhante do marco da janela e apertava na mão. A partir desse momento, era você a que brincava e corria na janela de minha memória, e atravessava galopando os prados de minha infância e de seu sonho, com meu vento em sua cara.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Entre todos, se escutamos direito,
formamos uma única melodia
Atravessando o campo de juncos, chego à margem de um rio.
Esta é uma manhã de luz limpa. Corre uma brisa suave. Da chaminé da casa de pedra a fumaça se solta e ondula. Na água navegam os patos. Uma vela branca desliza entre as árvores.
Meu corpo tem, esta manhã, o mesmo ritmo que a brisa, a fumaça, os patos e a vela.
– Eduardo Galeano, do livro “Dias e noites de amor e de guerra” / ‘Días y noches de amor y de guerra’. Tradução de Eric Nepomuceno. Porto Alegre: L&PM, 2011.
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Leia outros contos, ensaios e crônicas de Eduardo Galeano aqui.


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