EDUCAÇÃO E CIÊNCIA

Edgar Morin: o pensador que viveu o século como um poema inacabado, por Paulo Baía

Há vidas que se erguem sobre a Terra como se fossem constelações. Edgar Morin é uma dessas presenças que não apenas atravessam o tempo, mas o iluminam com a obstinação silenciosa dos que não cessam de interrogar o mundo. Aos 104 anos, ele não é um vestígio do século XX, mas sua memória viva, pulsante, inquieta, vibrante. Um sobrevivente de todas as guerras que não se deixou prender nem pelo rancor da história, nem pelo conformismo dos sobreviventes. Ele não está encerrado em suas glórias passadas. Ele continua. E continuar, para Morin, é resistir ao absurdo com pensamento, ternura e complexidade.
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Nascido Edgar Nahoum, no coração de Paris, em 1921, foi ainda menino quando perdeu a mãe. A dor primeira que molda silêncios profundos e maturidades precoces. Desde então, aprendeu a viver com a ausência como parte da presença do mundo. Em vez de se enclausurar, abriu-se à aventura do espírito. Leu com a fome dos que sabem que a vida, para ser suportada, precisa ser decifrada. Apaixonou-se pelo cinema, pela política, pela juventude que ardia nos becos e cafés da cidade em guerra.

Quando a França caiu sob o peso do fascismo, ele se levantou. Ingressou na Resistência como quem entrega o próprio corpo à esperança. Assumiu o nome Morin e o nome lhe calhou como um destino. Tornou-se tenente das forças que queriam libertar a alma da Europa. Lutou. Sobreviveu. E, sobrevivente, recusou a acomodação. Voltou à Paris como quem volta à vida, trazendo a guerra no olhar, mas também uma fé terna na humanidade, aquela que apenas os que viram o horror de perto podem nutrir sem ingenuidade.
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Foi comunista. Foi expulso por pensar demais, por escrever com franqueza, por não ceder à ortodoxia. Reergueu-se no pensamento. Publicou, ensinou, provocou. Criou revistas, atravessou a sociologia, a filosofia, a antropologia, a política, a biologia, a epistemologia. Morin nunca aceitou que o conhecimento pudesse ser disciplinado por fronteiras. Ele compreendeu que a vida escapa à lógica unívoca. Que a verdade é múltipla, inacabada, em disputa permanente. Fundou então o pensamento complexo, não como sistema, mas como viagem. Uma recusa do reducionismo. Um chamado à inteireza. Pensar, para ele, é abraçar o paradoxo, acolher o inesperado, aprender com o erro, viver a incerteza como uma dádiva, não como uma falha.

Na aurora de sua maturidade intelectual, lançou O Método, seis volumes que são como montanhas. Nele, traça os contornos de uma nova forma de ver o mundo, onde ordem e desordem dançam juntas, onde o sujeito é parte do objeto, onde a razão caminha de mãos dadas com a emoção. Um método que não impõe, mas acolhe. Que não encerra, mas convida. Que não soluciona, mas ilumina.
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Morin não separa a lucidez da ternura. Essa talvez seja sua maior originalidade. Pensar, para ele, é também amar. Amar não como retórica, mas como gesto essencial de existência. O amor como modo de conhecer, de resistir, de transformar. Amou ideias, livros, o cinema, a beleza, a natureza viva. Conheceu a perda, a ausência, o luto que escurece as manhãs. Mas não deixou que a dor lhe calasse o verbo. O amor é, para ele, risco e graça. É ligação e abismo. É desejo e dom. É o que nos humaniza diante da brutalidade do mundo. Por isso escreve, ainda hoje, com essa vibração do enamorado, com esse cuidado de quem sabe que toda palavra pode ser um ato de cura.

Edgar Morin – foto: Bertrand Guay/AFP

Aos 104 anos, recusa o exílio da velhice. Lê, escreve, dá entrevistas, recebe visitas, envia cartas, responde leitores. Mora em Paris, a cidade onde tudo começou. Caminha entre livros, revisita filmes, observa o mundo com olhos jovens e alma vigilante. Sua trajetória desmente com serenidade os clichês sobre a idade. Não se aposentou do pensamento, tampouco do encantamento com a vida. É exemplo de uma longevidade criativa, de uma juventude que se alimenta do desejo de compreender.
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Morin vive a filosofia como uma biografia. Não há separação entre a ideia e o corpo, entre o pensamento e a caminhada, entre a teoria e o afeto. A crise do mundo, para ele, é também uma crise do sujeito. Da democracia, da ecologia, da cultura, da alteridade. Ele não analisa essas crises do alto de uma torre, mas mergulha nelas com compaixão crítica. É um sociólogo atento, alguém que vigia o presente com o olhar do historiador que compreende o tempo em camadas. O papel do intelectual, afirma com sua vida, é participar, provocar, alertar, envolver-se. O pensamento não é luxo acadêmico, mas ato de sobrevivência. Em tempos de regressão, pensar é resistir.
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Aos cem anos, recebeu a mais alta honraria da França. Mas sua glória não está nas medalhas, está em sua integridade. Em sua recusa ao cinismo. Em sua fé inquieta na possibilidade de um mundo mais solidário. Em sua capacidade de continuar perguntando. Morin não nos oferece respostas prontas. Ele nos oferece caminhos. E caminhos são sempre perigosos, incertos, mas necessários.

Há algo de intensamente poético em sua trajetória. Como se ele fosse o personagem de uma epopeia que troca a espada pela caneta, o trono pela biblioteca, o grito pela escuta. Um Ulisses que recusa o retorno e prefere continuar navegando por mares desconhecidos. Um peregrino da complexidade humana. Um amante da vida em todas as suas contradições.
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Em um tempo de brutalidades, de simplificações, de urgências histéricas, Morin é um farol. Não porque aponta um rumo, mas porque nos lembra da beleza de estarmos perdidos juntos. Da dignidade de buscar. Da coragem de não saber. Sua vida é uma ode ao pensamento como aventura. Ao amor como método. À fragilidade como força.
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Edgar Morin não é apenas um filósofo de seu tempo. É seu poeta. Seu cronista sensível. Seu amante inconformado. Sua existência inteira é uma obra em aberto. Um gesto de fidelidade à vida. Um convite à complexidade, à sensibilidade, à esperança lúcida. Ele nos ensina que envelhecer pode ser um ato de rebeldia. E que pensar, amar e resistir são verbos que nunca conjugam o passado.

Ao celebrarmos seus 104 anos, não homenageamos apenas sua longevidade. Homenageamos a possibilidade de viver intensamente, de continuar inquieto, de amar até o fim, de pensar até o limite, de jamais desistir da humanidade. Porque em Edgar Morin, mais do que um pensador, pulsa uma promessa: a de que a vida, quando habitada com paixão e pensamento, pode ser sempre reiniciada. Mesmo aos 104 anos.
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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