Darcy Ribeiro: Enfrentei a vida com coragem, inocência e gozo
GOZOS E PROVAÇÕES
VIDA
Não vivo no ar, suspenso feito passarinho. Também não vivo assentado na terra como um rinoceronte. Nem vivo boiando n’água como um peixe. Vivo, sei que vivo, é no universo infinito que pra lá de mim, pra cá de mim, ao meu redor, sempre existiu e existirá. Igual a si mesmo.
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É certo que ele muda a seu próprio ritmo. Um dia fez o Sol, que fez a Terra e suas miudezas. Inclusive eu. Um dia nos desfará, inapelavelmente. Que me importa? Importa é que tive e tenho um tempo de me ser, gozoso quando possível, de qualquer jeito, se for meu destino. Neste mundo inútil de tão exageradamente grande, eu e você somos as coisas mais miudinhas e as mais arrogantes. Ora, direis…
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Escrever confissão é se explicar, justificar. Na escala cósmica é pura besteira. Vadiagem. Na escala humana é vaidade. Mas existo, confesso, e quero que me vejam. Estas Confissões são como quem dá um grito parado: “Olhe, povo. Estou aqui. Já estou indo. Vou-me’mbora”.
Enfrentei a vida com coragem, inocência e gozo. Sabendo sempre que o inevitável é o melhor, encarei os infortúnios como pontes para o desconhecido, certamente melhor. Não foi fácil achar que a prisão inevitável das grades era o melhor; ou achar que o câncer também era o melhor…
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Ajudou muito a noção outra de que me viro, de tudo me safo. Ajudou também a compreensão de que aquilo que não tem solução, solucionado está. Ajudou, inclusive, minha ousadia aventureira de lançar-me sempre em busca de novos caminhos, sem perder tempo e energia com lamentações.
Tudo isso está no capítulo da minha coragem insciente, da minha inocência de bicho que enfrenta a vida vivendo. Dizem que se encontram animais selvagens de bucho todo podre, devendo doer demais. Mas eles não sabem disso. Tratam é de viver, é de fugir da morte.
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O natural para mim é viver tirando da vida o que ela pode dar e fazendo o possível para melhorar o mundo. Os gozos de amar e de comer, principalmente o primeiro, foram e são fontes de minha felicidade. Mas gosto mais é de ler, de aprender, de escrever, de pensar, de sonhar. Nisso ocupei mais de metade de minha vida, que seria mais equilibrada se eu me desse mais ao convívio humano, às amizades, do que me dou.
Tenho ciúme do meu tempo. Leio o mínimo possível de jornais, apenas procuro informar-me. Vejo pouca televisão ou cinema e mesmo a música, que me é tão prazerosa, ouço pouco. Sou uma lâmpada acesa, me iluminando, penetrando com sua luz o mundo que me cerca. Gosto demais de gente, de olhá-las viver tão naturais e desatentas para si mesmas. Uma mulher que amei muito demais às vezes ficava calada longo tempo, achando que não pensava em nada. Ela tinha um talento extraordinário para descansar por dias, mesmo que não tivesse feito nenhum esforço que exigisse descanso. Seu pendor real era para o ócio, ao contrário de mim, que não sou de ócio nem de negócio. Sempre tive inveja dela.
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Fui feito para pensar, tanto esvoaçando sobre diferentes temas, como tanta gente faz, como pensando de verruma sobre o mesmo tema, incansavelmente, furando a pele da realidade para alcançá-lo e compreendê-lo. Esse ofício de pensar concentradamente eu exerço às vezes à noite. Não tenho insônias, mas tenho toda noite uma ou duas horas de vigília. São ilhas em que me vivo de volta, repensando o vivido, ruminando o passado. É nessas horas que me alço em voos, acordado, planejando. Escrevo assim, mentalmente, páginas e páginas que dito à minha secretária no dia seguinte como se estivesse pensando ali, naquela hora.
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Comi a vida sôfrego. Ainda como, ávido, sem nenhum fastio ou tédio. Quero é mais. Para isso fui feito. Para comer a vida. Para agir, para pensar, para escrever. Isso sou eu. Máquina de pensar, de fazer, faminto de fazimentos. Cheio de fé nos homens, nas gentes. Sobretudo nas mulheres, fontes de meus sentimentos mais fundos, de meus gozos mais sentidos. Oh, minhas sacrossantas mulheres!
Quem sou eu? Dentro da minha fronteira, que é o pelame que me envolve, ou para além dele, quem sou eu? Sou aquele que veio ao mundo a serviço, com a missão de gozar a vida que me é dada e de melhorar a vida dos homens todos. Um missionário, um pensador, um pregador. Isso sou. Ou isso fui até hoje. Isso ainda sou, nesta hora terminal. O apetite para pensar e fazer continua voraz. Nesses setenta e mais anos estou aceso, fazendo minha quarta universidade, a mais importante delas. Saindo da vida, me sentirei roubado. Quisera ficar. Durar. Com minhas aptidões acesas: pensando, amando, estudando, escrevendo. Deixarei aí um punhado de livros, milhares de páginas de valor variado. Algum livro meu será válido? Qual? Meu romance Maíra pede espaço para durar. Meus Diários índios me dão o sentimento de que poderão sobreviver a mim por muito tempo. Por quanto tempo? Um século? Ainda mais?
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Contrariamente a meu perfil de intelectual e ideólogo, sou homem de ação. Tenho até renome como executivo eficiente. Gosto de mandar e dirigir e sou capaz de comandar empreendimentos grandes que envolvem muitas pessoas, fazendo-as trabalhar eficazmente. Temo muito ser recordado no futuro mais por meus empreendimentos que por minhas ideias, o que será uma injustiça. Quisera mesmo é mudar o jeito de pensar das pessoas, cavalgar milhões delas e dirigi-las a seu gosto e seu pesar, para a felicidade e a glória.
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Darcy Ribeiro no livro ‘Confissões‘. Companhia das Letras, 2012
:: Darcy Ribeiro – um homem de fazimentos
:: Darcy Ribeiro (O cientista) – entrevistado por Clarice Lispector
:: Darcy Ribeiro – discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (ABL)
:: “O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” – Darcy Ribeiro
:: Darcy Ribeiro – poemas
:: Fala aos moços – Darcy Ribeiro
:: ‘Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando…’ – Darcy Ribeiro
:: Anísio Teixeira, por Darcy Ribeiro
:: ‘A Amazônia, seus povos e a devastação’, um ensaio essencial de Darcy Ribeiro
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