Considerações: o trabalho de pensar a artista-pensadora
Anna Bella Geiger para a construção da exposição ‘Totius Orbis Remix’
– por Diogo Santos e Monique Araújo

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“Sou muitas vezes conhecida como aquela artista que faz mapas”, diz Anna Bella Geiger. Mapas abarcam, em escala reduzida, o posicionamento dos lugares, apresentando formas, fronteiras, divisões, contornos e tamanhos. O trabalho da artista é uma análise vista do céu, sobrevoando territórios, desenhando uma dança sobre o corpo do mundo, subvertendo, na epiderme terráquea, a própria Terra e seus continentes de uma ilusão fixa, memorando o fato de que antes mesmo da palavra, placas tectônicas, rios voadores e rochas sedimentares, operam o movimento. Em comemoração aos intensos 70 anos de carreira e 90 de vida da artista carioca, a exposição “Anna Bella Geiger: Totius Orbis Remix” marca, na UERJ, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, uma celebração desta gigantesca artista, reconhecida em todo globo, com importantes prêmios e exposições individuais internacionais. Uma grande pensadora que transita, em sua obra artística, pelas mais diversas áreas do saber, antecipando, já nas décadas de 60 e 70, questões fundamentais da nossa contemporaneidade.
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Partindo dos conceitos de identidade, origem e território, durante o processo de construção da exposição, percebemos a impossibilidade de qualquer esforço de aprisionar a produção artística de Anna Bella nas grades de uma cronologia, numa retrospectiva temporal, reduzindo seu esforço a um contexto histórico ou político extremamente específicos. Pelo contrário, no percurso de imersão no universo de sua obra, percebemos seu caráter hiper-contemporâneo, fundamentado antes de tudo na percepção do trabalho artístico como uma pesquisa: atenta, minuciosa, livre, criativa, política, plural e poética, na radicalização daquilo que se pensa enquanto a tarefa da arte contemporânea. Tendo a consciência do compromisso de Anna Bella com as questões de seu fazer, tentamos assumir a responsabilidade de radicalizar o processo curatorial. Se curadoria é a ocupação de cuidar, percebemos a necessidade de não ler a obra de Anna Bella com um olhar externo, isento ou endurecido por toda uma bibliografia canônica. Precisávamos de um olhar renovado, vicejante. A exposição foi construída através de diversos encontros com a artista em seu ateliê, em longas e acolhedoras conversas sobre sua trajetória, ideias e concepções de trabalhos que pespontavam a formação da arte contemporânea brasileira, seus bastidores e os processos de censura nos anos de ditadura militar. Além de uma artista mulher com trabalho extremamente racional e teórico, tivemos a oportunidade de conhecer uma pensadora apaixonada pelas questões políticas da arte: educação, construção de um circuito, memória, políticas públicas e fomentos.

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©Anna Bella Geiger – Limpeza do ouvido com cotonete, 1968.

Dentro da vasta obra de Anna Bella Geiger, gostaríamos neste pequeno artigo de ressaltar uma gravura da série viscerais, denominada “Cotonete” de 1968. Essa série é muito importante e decisiva pois marca a radicalização do posicionamento pelo teórico na arte. Se apropriando de uma técnica de reprodução, utilizando o suporte do metal, a artista produz uma obra que traz integralmente a questão do corpo. Nomeada pelo crítico Mário Pedrosa, a série quando lida hoje em dia, mantém a sua relevância além de novas camadas de significação que foram sobrepostas pelos sucessivos trabalhos acadêmicos e críticos.
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Conduzida pelas questões de ser e estar no mundo, Anna Bella abre o corpo e o desnuda pelas entranhas, entregando imagens que operam a vitalidade desassistida pela camada da carne, trazendo para o campo de visão territórios que promovem a ação, o corpo aberto, fincado no interior do acontecimento, territórios do acontecimento, desassossegados pela camada epitelial que separa o corpo do político. Curioso perceber que a sua tomada de posicionamento como uma artista teórica-pensadora e política se dá por camadas de mapeamento do corpo. O corpo como território político. De mulher, latino-americano, atravessado por disputas externas e também internas.

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©Anna Bella Geiger – Local da ação, 1999

Ao nomearmos a exposição “Totius Orbis Remix” ecoamos a inscrição do mapa ptolomaico: “Totius Orbis Habitabius Brevis Descripto” (Breve Descrição de Todo Orbe Habitado). Desenhado por Ptolomeu de Alexandria (que viveu entre os séc. I e II) é, possivelmente, o primeiro esforço científico de tentar representar a Terra até então conhecida. Apresentando um sistema de coordenadas que sistematiza a interpretação geográfica do mundo para a cultura greco-romana, calculando distâncias e a circunferência da Terra.
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Transpassando latifúndios primários, como órgãos flutuantes, ao mapeamento conceitual do mundo, o trabalho de Anna Bella Geiger, retoma este esforço primitivo de Ptolomeu, ressignificando a atividade cartográfica para as urgências da contemporaneidade: evoca uma coreografia política, embaladas pelo exercício fundamental de uma mente que não cansa de produzir perguntas: centraliza a África, come a América Latina, reparte o globo, equaciona o Brasil, deporta meridianos, contorna continentes, eleva, contrai, afunda, bagunça, recorta e ressalta o corpo que representa o mundo, sempre à deriva. Desconfigura resoluções e chacoalha narrativas hegemônicas de centralidade e globalidade, conduzindo suas linhas cartográficas ao exercício fundamental de abstração, movendo tanto os corpos, quanto as possíveis formas de ver o cosmos. Desenvolvendo, desdobrando e espelhando as macropolíticas da Terra nas micropolíticas da casa, do trabalho, do corpo feminino, da atividade primeira e inaugural do gesto do desenho.
– Diogo Santos e Monique Araújo

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©Anna Bella Geiger – Local com ondas e meridianos, 2004.

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SERVIÇO
Exposição Anna Bella Geiger: Totius Orbis Remix
Curadoria: Diogo Santos e Monique Araújo
Local: Galeria Candido Portinari – Campus UERJ Maracanã – Rua São Francisco Xavier, 524
Visitação: de segunda a sexta, de 10h às 19h | Entrada Gratuita
Em cartaz até: 28 de abril (2023)
Realização: @coexpauerj@decult / UERJ

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BREVE BIOGRAFIA DA ARTISTA
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Anna Bella Geiger na Abertura da Exposição Totius Orbis Remix – – foto: @hevelin.costa

Anna Bella Geiger (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1933). Escultora, pintora, gravadora, desenhista, artista intermídia e professora. Com formação em língua e literatura anglo-germânicas, inicia, na década de 1950, seus estudos artísticos no ateliê de Fayga Ostrower (1920-2001). Em 1954, vive em Nova York, onde freqüenta as aulas de história da arte com Hannah Levy no The Metropolitan Museum of Art (MET) [Museu Metropolitano de Arte] e, como ouvinte, cursos na New York University. Retorna ao Brasil no ano seguinte. Entre 1960 e 1965, participa do ateliê de gravura em metal do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ), onde passa a lecionar três anos mais tarde.
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Em 1969, novamente em Nova York, ministra aulas na Columbia University. Volta ao Rio de Janeiro em 1970. Em 1982, recebe bolsa da John Simon Guggenheim Memorial Foundation, em Nova York. Publica, com Fernando Cocchiarale (1951), o livro Abstracionismo Geométrico e Informal: a vanguarda brasileira nos anos cinqüenta, em 1987. Sua obra é marcada pelo uso de diversas linguagens e a exploração de novos materiais e suportes. Nos anos 1970, sua produção tem caráter experimental: fotomontagem, fotogravura, xerox, vídeo e Super-8. Dedica-se também à pintura desde a década de 1980.
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A partir da década de 1990, emprega novos materiais e produz formas cartográficas vazadas em metal, dentro de caixas de ferro ou gavetas, preenchidas por encáustica. Suas obras situam-se no limite entre pintura, objeto e gravura.
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Fonte: ITAÚ CULTURAL. Anna Bella Geiger. In: Enciclopédia Itaú Cultural – Artes Visuais, 17.8.2022. (acessado em 14.4.2023).







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