SOCIEDADE

Como a degradação da Amazônia aumenta o risco de novas pandemias

por André Biernath | Da BBC News Brasil
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No segundo semestre de 2022, uma situação inusitada em Roraima chamou a atenção do cientista Felipe Naveca.
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Centenas de pessoas passaram a apresentar febre, dor no corpo, vermelhidão na pele e nos olhos — sintomas que sugerem um quadro de denguezika ou chikungunya.
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No entanto, uma grande proporção dos exames laboratoriais feitos nesses pacientes trazia um resultado negativo para essas três doenças, transmitidas pela picada do mosquito Aedes aegypti.

“Ou seja, eram muitos casos suspeitos e poucos confirmados”, resume Naveca, que é pesquisador em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz).
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“Não era dengue. Era oropouche”, informa o especialista.
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Esse vírus endêmico da Amazônia também é transmitido por mosquitos — e a infecção provoca incômodos similares aos observados na ação daqueles outros três patógenos mais conhecidos.

Desde o episódio ocorrido em Roraima, algo parecido se repetiu em outras partes da Região Norte, como Acre, Amazonas e Rondônia.
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Além disso, o vírus conseguiu ultrapassar as barreiras da Amazônia e hoje causa surtos em locais como Bahia, Espírito Santo e Santa Catarina, além de já ter sido importado para outros países das Américas e da Europa.
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O oropouche é apenas um exemplo de como a Amazônia, o local mais biodiverso do mundo, é lar de milhares de vírus, bactérias e outros agentes microscópicos que podem eventualmente causar problemas de saúde em seres humanos.
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Mais que isso, pesquisas recentes têm demonstrado que a degradação desse bioma por meio do desmatamento, do garimpo e de outras atividades aumenta o risco de contato com esses patógenos — e eventualmente pode se tornar o gatilho para futuras epidemias ou até pandemias.
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A BBC News Brasil conversou com especialistas para entender o risco de a Amazônia virar o berço de futuros problemas de saúde pública global e o que precisa ser feito para evitar que um cenário desses se torne realidade num futuro próximo.

Vida em (des)equilíbrio
Em linhas gerais, vírus, fungos, bactérias, protozoários e outros agentes microscópicos vivem ciclos bem definidos na natureza, com animais hospedeiros, intermediários e outros elementos que determinam o equilíbrio dessa dinâmica.
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“Esses patógenos circulam de uma maneira saudável dentro do ecossistema onde atuam, sem causar problemas para os seres humanos”, contextualiza o biólogo Joel Henrique Ellwanger, do Departamento de Genética da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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“A ameaça só passa a existir quando acontece a interferência humana nesses sistemas”, complementa ele.
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Nos últimos cinco anos, Ellwanger publicou alguns artigos científicos em que detalha como um processo desses poderia acontecer na Amazônia.

A ideia dele é entender como esse spillover — conceito científico que descreve uma espécie de “pulo” ou “salto”, um processo de transição no qual os patógenos passam a afetar os seres humanos — pode acontecer na prática, dentro do contexto específico deste bioma brasileiro.
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“Nem todo evento de spillover vai gerar uma epidemia. Isso vai depender do patógeno, de ele conseguir chegar até a população humana e encontrar ali as condições favoráveis para se disseminar”, pondera o biólogo.
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E essas tais condições favoráveis envolvem aspectos biológicos e genéticos — como nossas células terem um receptor onde o vírus consegue se encaixar, por exemplo — até questões sociais, como a existência de um mosquito na região que pode servir de hospedeiro e perpetuador dos ciclos de transmissão.
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“Quando ocorre o desmatamento em alguma região, toda a fauna que habita aquele lugar vai se mover. Muitas vezes, o animal que servia de reservatório natural para aquele patógeno foge. E os vetores, que transmitem doenças como malária e leishmaniose, vão se alimentar de sangue disponível, como o de seres humanos”, detalha Naveca.

No entanto, quando pensamos na abundância amazônica, tudo isso ganha uma escala muito maior, o que faz as probabilidades também crescerem numa progressão geométrica.
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“Imagina a diversidade de plantas que existe ali e a gente sequer conhece. Se pensarmos que cada espécie de ser vivo possui um microbioma próprio, estamos muito longe de entender todas as potenciais ameaças”, explica Ellwanger.
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“Nós conhecemos apenas uma gota de um imenso oceano microbiano que interage nesse ecossistema”, complementa ele.
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O historiador das ciências Rômulo de Paula Andrade, da Casa de Oswaldo Cruz, também ligada à FioCruz, chama a atenção para o trabalho feito por um laboratório de virologia que foi instalado em Belém do Pará entre 1954 e 1971, com patrocínio da Fundação Rockefeller, dos Estados Unidos.

“Nesse período, a partir da coleta de amostras, eles isolaram mais de 2 mil cepas de vírus que são transmitidos por insetos ou aracnídeos”, conta ele.
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Ou seja, se apenas um ou alguns deles forem capazes de cumprir alguns requisitos básicos para um spillover — como foi o caso do oropouche recentemente —, estamos diante de uma possível nova dor de cabeça em termos de saúde pública.
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“Vários estudos recentes mostram que a gente não conhece quase nada em termos da diversidade de patógenos da Amazônia”, admite Naveca.
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E isso se torna ainda mais preocupante num cenário de degradação deste bioma, como registrado ao longo das últimas décadas.
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“São tantos os vetores, patógenos, mecanismos e facilitadores de eventos de spillover que a degradação da Amazônia se torna a tempestade perfeita para a disseminação de doenças infecciosas”, resume Ellwanger.

O vírus oropouche é um exemplo de patógeno endêmico da Amazônia que começou a se espalhar pelo Brasil e pelo mundo

Como a degradação contribui para o spillover
Em suas pesquisas, Ellwanger registrou uma série de práticas que acontecem na maior floresta tropical do mundo.
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Segundo o cientista, elas estão por trás do desequilíbrio na dinâmica da natureza e do aumento do contato das pessoas com uma série de patógenos potencialmente perigosos.
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“Um dos grandes vetores do desmatamento na Amazônia hoje é a mineração”, cita ele.
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“Para realizar essa atividade, seres humanos entram na floresta, desmatam e exploram o solo em busca de ouro e outros minerais valiosos. Esse processo já coloca os seres humanos em contato com diversos vetores de doenças infecciosas, como mosquitos e carrapatos.”

“Mas os problemas não param por aí: o garimpo está relacionado à contaminação do meio ambiente com mercúrio, substância tóxica que afeta o nosso sistema imunológico. Isso também favorece a proliferação de patógenos”, acrescenta o pesquisador.
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“Podemos ainda falar da criação ou da pavimentação de rodovias, que facilitam a migração de espécies transmissoras de patógenos para regiões altamente populosas”, lembra Ellwanger.
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Sobre a construção civil, Andrade estudou os desdobramentos da abertura da famosa estrada Belém-Brasília entre os anos 1950 e 1970.
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“Esse processo de cortar a floresta no meio teve muitas consequências, como surtos seríssimos de malária, que foram causados inclusive por um tipo de patógeno mais mortal do que o comumente observado à época”, diz ele.

Temor diante do desconhecido
Na avaliação de Andrade, governos de todas as matizes ideológicas que comandaram o Brasil desde o início do século 20 sempre enxergaram a Amazônia como “uma região a ser explorada”.
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“Isso é algo que vai além das diferenças ideológicas e tem a ver com a forma que o Estado brasileiro se constitui, como responsável por adequar a Amazônia aos seus desígnios”, analisa o historiador.
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“Os grandes projetos, que envolvem rodovias, hidrelétricas e outros empreendimentos vêm dessa ideia da Amazônia como esse espaço de ‘exploração racional’ a partir de uma perspectiva colonialista”, pontua ele.
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Para o especialista, a ideia de integrar a Amazônia ao resto do Brasil parte do princípio que “essa região precisa ser domesticada aos parâmetros urbanos e industriais de um Brasil que se pretendia moderno a partir dos anos 1940”.
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E tudo isso se conecta à discussão mais ampla sobre o risco que a degradação desse bioma representa do ponto de vista da saúde pública.
 
“Uma nova pandemia pode surgir justamente a partir da Amazônia? Simplesmente não dá pra saber”, admite Andrade.
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O historiador cita o exemplo do zika, um vírus isolado pela primeira vez na década de 1950 nas florestas de Uganda, na África.
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“Quem poderia adivinhar que, cerca de seis décadas depois, esse mesmo patógeno chegaria ao Brasil e causaria surtos onde afetaria o desenvolvimento do cérebro e do crânio de crianças durante a gestação, especialmente em lugares mais pobres?”, acrescenta ele.
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“Esses processos todos são muito imprevisíveis e difíceis de controlar”, complementa o especialista.

A construção de rodovias no meio da floresta facilita a transmissão de patógenos para regiões densamente populadas, apontam estudos | foto: Getty Images

As maiores preocupações — e como evitá-las
Além do já citado oropouche, outro vírus endêmico da Amazônia que chama a atenção de pesquisadores é o mayaro, também transmitido pela picada de mosquitos.
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E aqui não dá pra ignorar aquela imprevisibilidade mencionada anteriormente: como você já viu, a ciência está longe de conhecer todos os patógenos que circulam por esse vasto bioma.
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Mas Naveca pontua que “velhos conhecidos” não podem ser vistos com complacência, ou como um problema do passado. É o caso de doenças como leishmaniose, malária ou febre amarela.
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A febre amarela, aliás, causou um surto importante no Brasil em meados de 2018 e 2019 e demandou um reforço nas campanhas de vacinação contra esse vírus.
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E o que fazer diante desse cenário? Será possível evitar que a Amazônia se torne o berço de uma futura pandemia?
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Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil dizem que sim. Mas essa tarefa passa necessariamente por dois eixos: preservação ambiental e investimento em pesquisa.
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“O mecanismo mais robusto que nós temos para a conservação da Amazônia é a demarcação de terras indígenas e a criação de unidades de conservação”, observa Ellwanger.

“Esses territórios apresentam a melhor taxa de preservação, então trata-se de uma política muito eficiente que precisa ser mantida e, se possível, ampliada”, propõe ele.
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No campo da ciência, é necessário fazer levantamentos sobre os vírus que mais circulam, para entender como eles operam e qual o risco de “pularem” para seres humanos.
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“Uma coisa importante é ter regiões sentinela, como áreas onde há atividade humana que ficam próximas do ambiente de floresta, e reforçar o monitoramento de novas doenças ali”, sugere Naveca.
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Esse tipo de trabalho foi facilitado recentemente com a chegada de ferramentas e tecnologias mais avançadas, capazes de fazer um mapeamento genômico amplo e rápido.
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Nessa seara, outra ação citada pelos especialistas envolve o acompanhamento de espécies que são os reservatórios naturais de muitos vírus ou outros agentes microscópicos que podem representar um perigo aos humanos.
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É o caso de roedores, primatas, aves e morcegos.
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“Os morcegos, por exemplo, são um reservatório importantíssimo de vírus. E temos trabalhos que demonstram a falta de informações sobre as espécies desses animais que habitam a Amazônia”, destaca Naveca.
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“Há uma fauna tão grande ali que existe a possibilidade de surgimento de diversos vírus”, complementa o pesquisador.
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Diante da construção desse conhecimento básico, é possível pensar em ferramentas de diagnóstico, além de vacinas e remédios, para o futuro.
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“Só conseguimos combater um problema quando conhecemos ele em detalhes. E é melhor ter essas informações antes que aquilo se torne algo real e concreto”, raciocina Naveca.
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Já para Andrade, o risco de futuras pandemias a partir da Amazônia passa necessariamente pela compreensão de que essa é uma região cheia de particularidades.
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“O básico seria ter minimamente uma sensibilidade e uma empatia para compreender que existem outras formas de pensar o mundo, o uso da terra e a relação com a natureza”, conclui ele.

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