COLUNISTA

Carta à humanidade brasileira: por um tempo de escuta, beleza e reconciliação, por Paulo Baía

Escrevo estas palavras como quem escreve à sombra de uma árvore antiga, onde o tempo parece repousar e o silêncio abriga a escuta. Uma carta extensa, é verdade, mas necessária, como o são todas aquelas que buscam alcançar corações distantes sem a urgência dos alarmes. Dirijo-me ao Brasil inteiro, de norte a sul, de leste a oeste, dos grandes centros aos vilarejos que ainda respiram com o ritmo próprio das manhãs lentas. Dirijo-me a cada pessoa que, mesmo no cansaço, guarda dentro de si alguma centelha de esperança. A todas e todos, indistintamente: aos que creem e aos que duvidam, aos que se agitam e aos que contemplam, aos que se entrincheiraram e aos que ainda sonham com a travessia.
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Confesso, com serenidade, um cansaço profundo. Um cansaço que não é apenas do corpo nem da rotina, mas um cansaço de alma, de convivência, de palavras transformadas em espinhos. Não é o peso do tempo, nem a exaustão da luta cotidiana que me esgota, mas a rigidez que tomou conta do espaço entre as pessoas. O que nos fere, dia após dia, é essa polarização que se cristalizou como hábito de pensamento e conduta, essa lógica de trincheira que nos impede de ver a complexidade da vida e a beleza dos outros.
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Estamos vivendo em um Brasil onde o dissenso se tornou pretexto para o desprezo, onde a discordância virou injúria e o diálogo foi reduzido à performance de confronto. Tornamo-nos, sem perceber, habitantes de um tribunal permanente, onde ninguém escuta, todos julgam e quase ninguém perdoa. Mas não é possível viver assim. Não é digno. Não é humano.
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Há um tempo venho buscando outra linguagem. Uma linguagem que não abandone o rigor, mas que recuse a brutalidade. Tenho preferido o gesto do carinho à certeza da sentença, o sopro da beleza à violência da razão armada. Não se trata de abrir mão da crítica, mas de recusar o veneno que frequentemente a contamina. Quero escrever com elegância, sim, mas também com bondade. Quero fazer da palavra uma oferenda, não uma pedra.

E nessa tentativa me recordo com emoção do saudoso jornalista Márcio Moreira Alves. Ele, que durante tantos anos escreveu sobre o “Brasil que dá certo”, quando a maioria só sabia repetir o que dava errado, mesmo que o erro fosse inexistente, mesmo que fosse inventado, construído pela arrogância de um individualismo fóbico, que teme a pluralidade e se recusa a reconhecer qualquer qualidade em quem pensa ou age de maneira distinta. Márcio soube ver, como poucos, que há dignidade no cotidiano, há resistência nas margens, há sabedoria nas soluções populares que a elite ignora. Ele soube narrar o país como quem afaga suas cicatrizes.
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É nesta mesma chave que escrevo. Quero falar de um Brasil real, múltiplo, humano, onde a vida pulsa apesar de tudo. Um Brasil que se reconhece não apenas nos grandes gestos, mas sobretudo nos pequenos sinais: o bom dia da vizinha que estimula o entendimento, o sorriso partilhado no portão, o pão emprestado na emergência, a escuta oferecida sem cálculo. A vizinhança é ainda, talvez, o último território onde a simpatia resiste. E nas comunidades, nos bairros, nos becos e vielas onde o Estado pouco chega, a solidariedade se organiza como princípio, não como exceção.
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Quero também falar das igrejas, não apenas aquelas dos interiores calmos, mas também das que se erguem nas metrópoles inquietas, agitadas pelos trânsitos da pressa, pelos buzinares apressados e pela tensão dos horários. Ali, entre os ruídos da cidade, ainda há espaços de acolhimento e proteção. Ali se reza, se canta, se chora, se abraça. Ali se alimenta a esperança como quem renova o pão de cada dia. E ao lado das igrejas, os Terreiros: espaços sagrados de axé, de força ancestral, de cuidado com o corpo e com o espírito, onde o saber não vem dos livros, mas da vivência, da tradição, do canto que acende a alma.

E há também os botequins, as biroscas de esquina, onde se formam rodas de conversa que são, muitas vezes, as mais autênticas assembleias populares. Ali se discute o futebol e a política, a inflação e a vida amorosa, ali se fala sem microfone, mas com paixão. São lugares de fala sem palco. São espaços onde a democracia ainda respira, mesmo sem saber que tem esse nome.
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As rodas de samba, por sua vez, são orações em forma de batuque. São encontros que reafirmam nossa capacidade de sorrir apesar do peso. E os bailes de dança de salão que se espalham pelas tardes e pelos inícios de noite, centenas deles, são atos de resistência ao desencanto. Ali os corpos não apenas se movimentam: se reconhecem, se reencontram, se curam. São espaços de beleza compartilhada, de presença mútua, de encanto.
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E há ainda as músicas que, nas manhãs das ruas e dos ônibus, embalam os desejos de uma boa semana. São canções que carregam pedidos simples: paz, prosperidade, sossego. E isso já seria tanto. Porque no meio de um país atravessado por dores antigas, desejar ao outro uma boa semana é um gesto político, um gesto de humanidade.
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É por isso que não quero mais escrever para ferir. Quero escrever para lembrar. Para lembrar que cada pessoa carrega dentro de si um mundo, uma história, uma experiência. Que ninguém é apenas sua opinião política, sua ideologia, seu voto. Que há algo de belo em cada existência. Que somos feitos de nuances, não de absolutos. Que mesmo os equívocos dos outros merecem ser compreendidos em sua trajetória, não apenas condenados em seu instante.

Estou consciente, sim, das feridas abertas neste país. Sei da desigualdade gritante, da injustiça institucionalizada, da violência que devora as periferias. Mas quero falar disso sem exaltar o ódio. Quero denunciar sem desumanizar. Quero nomear o sofrimento sem me deixar contaminar pela linguagem da vingança. Quero recordar, inclusive, que mesmo na política há gestos de dignidade. Há homens e mulheres que resistem, que constroem, que negociam não por fraqueza, mas por responsabilidade. Há servidores públicos que ainda acreditam no bem comum. Há lideranças que ainda se comovem com a dor dos seus representados.
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É possível, sim, falar da crise sem alimentar o ressentimento. É possível, sim, manter o rigor e a ética sem cair na armadilha da raiva como método. É possível, sim, escrever com firmeza e também com ternura.
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Este texto é uma escolha. Uma escolha que me custa, que exige de mim disciplina emocional, escuta, revisão. Porque a linguagem da brutalidade está sempre pronta. Ela nos seduz com sua rapidez, sua suposta eficiência, seu poder de humilhar. Mas ela não constrói. Apenas arrasa. E já fomos arrasados demais.
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Escrevo, portanto, para você que lê com atenção e generosidade. Que entende que escutar não é concordar. Que sabe que o dissenso faz parte da vida, mas que ele pode ser vivido com respeito, com civilidade, com alguma elegância. Escrevo para quem ainda deseja reconstruir o pacto da convivência. Para quem crê que não é possível salvar a democracia sem salvar também o laço social.

Este país ainda pulsa. Este país ainda resiste. Este país ainda pode se reinventar. Há tempo. Há caminhos. Há saídas. E há, em cada um de nós, uma possibilidade de reconduzir o olhar. Uma possibilidade de reacender o desejo de viver com beleza, com justiça, com afeto.
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Receba, você que chegou até aqui, esta carta como um gesto de aproximação. Uma declaração de respeito. Uma invocação por tempos mais brandos. Que ela te encontre em paz, ou que pelo menos te convide à paz. Que ela te recorde que ainda há música, ainda há dança, ainda há vizinhança, ainda há simpatia. Ainda há tempo. E se ainda há tempo, há tudo. Porque o humano resiste — e resiste melhor quando é tratado com carinho.
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Que possamos, enfim, voltar a nos reconhecer. Não apesar das diferenças, mas por meio delas. Com lucidez. Com firmeza. Com beleza. E sobretudo com dignidade.
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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** Leia outros artigos e crônicas do autor publicados na revista. clique aqui
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Leia também:
:: Paulo Baía – é tempo de alteridades radicalizadas
:: Paulo Baía – pensamento social e político de José de Souza Marques

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