Capitão Fantástico é o tipo de filme que aborda diversos temas, desde críticas a sociedade de consumo capitalista, ao conservadorismo norte-americano e aos valores vinculados à nossa sociedade cristã ocidental. Da mesma forma, também dirige observações ácidas ao outro lado da moeda: o que poderia ser chamado de “esquerda cirandeira”.
A película gira em torno da história de um pai de família que educa seus filhos abdicando quase por completo dessa mesma convivência na sociedade de consumo dos Estados Unidos. Leva todos os seus seis filhos para uma área de preservação ambiental isolada, morando em uma cabana sem luz elétrica e os confortos da vida moderna. Seus filhos sabem técnicas de sobrevivência na vida selvagem, sabem caçar, pescar e têm um preparo físico de excelência. Além disso, seus pais os ensinaram o valor da atividade intelectual, de modo que são leitores vorazes, e têm conhecimentos que vão desde filosofia política a física quântica.
A mãe, afastada do convívio da família por enfermidade, não faz parte do contexto no qual a história se desenrola. Portanto, a única figura de segurança e modelo possível para as crianças e adolescentes é seu pai, o suposto Capitão Fantástico, provedor, líder, guardião e tutor de todos eles.
Em determinado momento da trama, o pai das crianças sonha com recordações de sua esposa, quando lhe disse estar empolgada com o resultado da criação diferenciada de seus filhos. Nas palavras da personagem: “eles serão filósofos-reis”, fazendo menção a utopia política de Platão.

Para o filósofo, a melhor forma de governo seria a de uma aristocracia por mérito. Segundo dispõe em “A República”, o Estado idealizado se dividiria em três classes sociais: os comerciantes, os militares e os filósofos-reis. A divisão seria feita conforme o nível educacional resguardado a cada indivíduo, sendo a “elite intelectual” os governantes, os referidos filósofos-reis.
O filósofo-rei alcançaria o direito à assim ser considerado se recebesse a devida paidéia (educação), cabendo-lhe alcançar a episteme (ciência). Somente através de uma educação privilegiada as pessoas teriam capacidade de gerir politicamente uma sociedade, pois segundo os ensinamentos de Platão haveria a reunião do saber teórico junto a uma elevada consciência ética. O conhecimento abstrato seria voltado para a prática, e assim se faria política.
Como se pode imaginar, a tentativa de uso da utopia política de Platão na família do protagonista não traz os resultados esperados. A ausência de qualquer interação fora de sua gaiola selvagem – que, no fundo, é apenas de ilusória liberdade, tendo em vista que o pai jamais deixou de depender do dinheiro de seus sogros para sobreviver – não trouxe as crianças a segurança e as respostas que seu pai esperava.
Seus filhos se consideravam ignorantes em alguns aspectos quando comparados aos outros indivíduos de sua idade, criados no modelo “comum”. Indo mais adiante: sequer se pode dizer que o modelo dos reis-filósofos foi de fato estabelecido, pois o completo isolamento da família já pressupunha uma ausência de sociedade, e, portanto, da estruturação necessária para que se pudesse sequer conceber este resultado.
Como as crianças poderiam almejar, no futuro, contribuir a uma sociedade que seus pais as ensinaram a renegar?
Este questionamento que é levantado no filme pode ser trazido para a vida real em alguns sentidos. Os filhos do Capitão Fantástico e o próprio não podem desejar o título de “filósofos-reis” enquanto negam um preceito fundamental do platonismo: o processo de diálogo, a dialética. A dialética é o processo de debate entre interlocutores que, por mais que pensem diferente e discordem, desejam alcançar a verdade, respostas próximas a verdade, ou ao menos se esforçam nesta busca, seja ela tangível ou não.

Sem a dialética presente, há apenas alienação. A ausência de diálogo, do contraponto de ideias não constrói, mas sem dúvidas mantém o status quo. O sistema que rege a nociva sociedade capitalista apenas é fortalecido quando não há um movimento dialético, ou seja, de debate entre esses mesmos supostos conservadores, e aqueles que ousam pensar diferente. Que desejam tentar outro modelo político, de vida, cultural e socialmente construído, ou o que o valha.
Há ausência de dialética quando um pai ensina seus filhos a rejeitar completamente uma sociedade que continuará existindo queira ele ou não. Essa ausência se mantém, quando este mesmo pai estimula as crianças a perpetuarem um modelo de vida que depende dessa estrutura social – pelo capital –, mesmo que em gastos mínimos. E a ausência se perpetua de maneira especialmente cruel quando este pai lhes ensina a defender o proletariado e lutar contra as classes elitistas, mas essas mesmas crianças não fazem ideia de como é a vida de uma pessoa explorada pelo capitalismo na prática.
Uma das lições de Capitão Fantástico, por assim dizer, é que não há combate ao sistema se o indivíduo se rende a um isolamento passivo. Talvez não seja tão comum nos depararmos com pessoas que se mudam para locais longínquos, como eremitas, fugindo da civilização. Mas em meio ao nosso pacato dia a dia, convivemos com erros semelhantes.
É cada vez mais difícil encontrar pessoas dispostas a praticar a dialética. Quantas vezes não ouvimos alguém comentar: “deletei Fulano do facebook porque vota no político x”, “não falo mais com Sicrano porque diz y”, ou “bloqueei Beltrano porque se posicionou a favor de z” e outras afirmativas similares? A busca por um pensamento equiparado parece constante, e a aversão a discordância ou ao que consideramos errôneo, falho é tamanha que impede uma tentativa de diálogo prévia, ou seja, uma construção depois de um confronto dialético entre duas perspectivas diversas.
Não se pode conceber uma criação intelectual que se aproveite, se esta for formulada dentro de um nicho de pessoas e conhecida apenas entre aqueles que já lhe foram receptivos de início. Não há modificação de panoramas quando não há choque de perspectivas, quando não se abre a mente, os ouvidos, os olhos, quando não se procura a ponte adiante, um caminho comum entre as diferenças: o diálogo. Cada vez mais somos incentivados a fechar os olhos e virar as costas para o que nos parece contrariar o que consideramos o correto, o justo, buscamos um “definitivo”. Parecemos querer esquecer de que o que se diz por correto, justo, também não é definitivo. Está vinculado ao devir – no sentido de movimento – sendo contingencial. Afinal, não há uma resposta única!
Somos estimulados a ler artigos, a criar opiniões e a pesquisar o tempo todo – nunca foi tão fácil, com o uso de dados móveis ou uma conexão satisfatória – e simultaneamente somos incitados a rejeitar quem chegou a conclusões diversas as nossas. As discussões não são iniciadas para chegar a um resultado, com cada um dos lados sentindo que aprendeu algo com este confronto. Parece que se procura uma “audiência sofista” na qual quem melhor debate é tido como o polo vencedor. E, assim, vamos todos perdendo.
Perderemos, enquanto o diverso for visto como ameaça, e não como um estímulo ao pensamento. A reflexão, tão fluida quanto respirar.

Que possamos ser humildes e não sonhemos em ser filósofos-reis, ou sequer aprendizes destes. Que possamos ser, ao menos, indivíduos que convivem com suas próprias limitações, aceitando nossa incapacidade humana de ter dentro de nós o conhecimento infinito.
Não há melhor maneira de desafiar o estabelecido do que reconhecer que fazemos parte deste status quo, sem fugir desta dura realidade. Somos tão peças quanto qualquer outro. Quem sabe possamos dar o primeiro passo para uma sociedade mais justa, quando, enfim, for possível trabalhar com a ideia de que nossas assertivas não são e jamais serão universais. Que o foco seja no que podemos gerar trabalhando nossas diferenças, um aberto ao outro ao que pode trazer uma interseção. Afinal, não há construção que seja firme sem estar composta de elementos diferentes.
Poder ao povo, abaixo o sistema!

* Clarice Lippmann, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio e estudante entusiasta de Filosofia.

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