Na nossa última coluna, “Bauman e a dificuldade de amar”, falamos do amor na modernidade líquida e as dificuldades que, para o inesquecível Bauman, marcam esse afastamento dos nossos pares. Seguindo essa temática, trago hoje o olhar de Erich Fromm sobre o amor. Ah! Se esse é o seu primeiro contato com Erich Fromm, acredite em mim: vale ler não só essa coluna, mas todo seu texto “O amor e sua desintegração na sociedade ocidental contemporânea”, capítulo do livro “A arte de Amar”, que aprofunda o que falaremos aqui hoje. Diante da extensão e riqueza desse texto que eu amo, decidi sem prejuízo da compreensão deste, dividir essa nossa coluna em duas partes. E a primeira é essa aqui, que analisa o homem da sociedade contemporânea. Na próxima coluna falaremos sobre como as formas de pseudo amor são confundidas com o amor e o que é, para Fromm, amar.

Fromm é doutor em Sociologia e pertence a Escola de Frankfurt, na qual outros pensadores importantes do século XX tais como Habermas, Adorno e Walter Benjamin estão inseridos. A Escola de Frankfurt se destaca, dentre outras coisas, pelo desenvolvimento de formação psicanalítica consistente que é refletida na obra de Fromm. Outro traço que se vê refletido na obra do autor é o viés marxista que, de modo muito interessante, é conciliado com sua religiosidade – Fromm é judeu. O texto base dessa coluna já citado ali em cima é um exemplo fortíssimo do cruzamento desses dois importantes aspectos de sua obra que, aos meus olhos, fazem dela uma referência sobre a nossa (in) capacidade de amar verdadeiramente e seus motivos. E aqui, deixo uma breve consideração: não quero com esse texto atacar a forma como se ama, mas mostrar através do pensamento de Fromm que, em muitos momentos, o nosso amor é, sem que a gente perceba, um desamor por diversos motivos que o autor embasa em sua obra – e que sentimos na nossa vida.

Para Fromm não é a consciência do homem que determina seu ser, mas, ao contrário, seu ser social que determina sua consciência. Desse modo, os processos mentais/ subjetivos que determinam a maior parte das ações humanas são inconscientes para o próprio homem que as pratica que, quando questionado, apenas as justifica pela consciência e ideologia. Temos aqui um campo de explicações falsas e incompletas considerando que através da alienação o homem desconhece a si mesmo e suas próprias necessidades. O dinheiro, por exemplo, necessidade de primeira ordem poderia, fora de uma sociedade capitalista, ser considerado desse modo ou se trata de uma necessidade introduzida em nossa vida pelo modo de produção capitalista?

Atravessando seu olhar sobre o de Marx, Erich Fromm afirma a potência criadora do homem, intrínseca à sua natureza, cujos impulsos são modificados no que diz respeito à forma e direção. Há, para este sociólogo, uma alienação de todos os nossos sentidos pelo ter, por ser proprietário, que revela a absoluta pobreza interior do homem que contaminou tudo ao seu redor pela propriedade privada e alienou-se de si mesmo. (Lembra do que falávamos na última coluna? Para o Bauman a nossa identidade era expressa pelas nossas posses e isso nos trouxe inúmeros conflitos e desamor. Se você quiser um outro olhar sobre essa questão, clique aqui).

Quando o homem apropria-se do seu próprio ser ele descobre que as suas verdadeiras necessidades não são objetos e sim existir como um ser social, isto é, gozar de relações e vínculos com outros seres humanos. Temos aqui, inclusive, um ponto muito interessante que é sua nova leitura do caráter produtivo pensado em Marx: para Fromm esse caráter é social e produtivo do homem.

Em “O amor e sua desintegração na sociedade ocidental contemporânea”, Fromm de plano reconhece que se o amor é uma capacidade do caráter produtivo e maduro, conseqüentemente, a capacidade de amar das pessoas é influenciada por aspectos culturais e, por isso, questiona, nesse sentido, o modelo da sociedade contemporânea, seus valores e estrutura como meios propícios para o amor. Numa sociedade que tem no mercado o regulador das relações econômicas e sociais o amor não encontra terreno fértil para se desenvolver e isso explica muita coisa.

Somos fortemente impelidos a produzir, a consumir, a buscar entretenimento com coisas tolas e que raramente nos conectam conosco e com os que nos rodeiam. Tudo nos leva a um comportamento individualista, egoísta e raso já que, ainda que não saibamos explicar, por mais que estejamos fazendo tudo “certinho” na vida, mesmo cercados de gente, dentro de um relacionamento estável, por vezes nos sentimos sós, tristes e frustrados. É como se faltasse alguma coisa e, normalmente, falta mesmo: falta falta amor, falta autonomia, falta empoderamento. Nós somos moldados a ser o que o sistema precisa que sejamos, mas a gente precisa ser assim? É nesse modo de vida que mora a nossa felicidade? Quantas pessoas você conhece que trabalham com algo que não gostam só pelo dinheiro? Quantas pessoas você conhece que se prendem aos mais variados padrões para serem aceitas? Quanta infelicidade a gente leva pra casa diariamente sem nem questionar porque falaram que é assim que tem que ser e ponto?

Fromm diagnostica que: “o capitalismo moderno necessita de homens que cooperem sem atrito e em amplo número; que queiram consumir cada vez mais; e cujos gostos sejam padronizados e possam ser facilmente influenciados e previstos. Necessita de homens que se sintam livres e independentes, não submissos a qualquer autoridade, ou princípio ou consciência – e contudo desejosos de ser mandados, de fazer o que se espera deles, de adequar-se em fricção à máquina social; que possam ser guiados sem força, dirigidos sem líderes, impulsionados sem alvos – exceto o de produzir bem, estar em movimento, funcionar, ir adiante.”. Pesado, né? Mas pior é o resultado disto para o autor: “o homem moderno é alienado de si mesmo, de seus semelhantes e de natureza”.

Sem conseguir nos entender, sem conseguir questionar e subverter a lógica cruel que nos amarra numa fórmula da felicidade que não faz todo mundo feliz, seríamos todos capazes de amar, verdadeiramente, o outro?

*Anna Carolina Cunha Pinto, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, escreve sobre suas percepções do mundo associando-as com conteúdos de Filosofia e Sociologia. Formada em Direito pela Universidade Cândido Mendes, mestranda em Sociologia e Direito pela UFF e apaixonada por filosofia.

Leia outras colunas da autora:
Anna Carolina Cunha Pinto (colunista)







Literatura - Artes e fotografia - Educação - Cultura e sociedade - Saúde e bem-estar