Nesta coluna, decidi escolher abordar parte das premissas de uma série produzida pela HBO em 2017, uma adaptação do homônimo romance de Liane Moriarty, publicado em 2014: “Big Little Lies”, traduzido no Brasil como “Pequenas Grandes Mentiras”. O elenco conta com grandes nomes de Hollywood, como Reese Witherspoon, Nicole Kidman e Shailene Woodley em alguns dos papéis principais, mas o grande trunfo da narrativa vai além de um grupo de atores talentosos e renomados.

A princípio, a série poderia ser considerada apenas mais um roteiro sobre a sordidez escondida por trás dos padrões burgueses norte-americanos de perfeição, a conhecida reprodução do “american way of life” exportado para o mundo todo como suposto padrão de sucesso a ser almejado. Grande parte dos personagens são ricos, possuem algum status na comunidade californiana em que vivem, e, em suma, reproduzem o modelo vendido mundialmente como padrão de êxito capitalista.

Todavia, o seriado não se contenta apenas em expor o que há de controverso em uma vida pautada nesse ideal de perfeição humanamente inalcançável, ou na hipocrisia do falso moralismo tão explorada em muitas mídias. A abordagem de “Big Little Lies” é focada nas mulheres, personagens principais da trama, que começam representadas como estereótipos burgueses do sucesso feminino, como as donas de casa ricas e atuantes na política da comunidade, ou as mães empresárias de sucesso. Ou pela representação da mãe solteira que cria o filho sozinha a despeito do abandono de uma figura paterna, retratando também o ideal clichê de superação apesar das adversidades. Mas o desenvolvimento de personagens, posteriormente, desconstrói o molde de primor para traduzir tudo o que está encoberto por trás: as pequenas grandes mentiras que dão nome ao seriado.

E é justamente sobre os pormenores da trama que escolhi apresentar o tema desta coluna. Além de desconstruir os estereótipos que se propõe a retratar — já que durante a série todas as personagens protagonistas são trabalhadas em sua humanidade, com suas falhas e virtudes expostas, dando profundidade e verossimilhança ao padrão antes apresentado como lugares-comuns —, a crítica que o seriado expõe da maneira mais assertiva é, sem dúvidas, no que diz respeito a masculinidade tóxica, que ensina e dá margem para comportamentos violentos terrivelmente corriqueiros cometidos por homens.

Para se falar de masculinidade tóxica, é importante primeiro abordar os conceitos variados sobre o que seria o “papel masculino”, ou a “função social masculina” na sociedade ocidental. Ao longo da década de 70, tanto a psicologia social quanto a sociologia desenvolveram estudos sobre a “natureza social da masculinidade” e as possibilidades de mudanças no que diz respeito ao padrão de comportamento masculino. Muitos artigos foram publicados em críticas sobre o que naturalizaria a busca dos homens por se adequar, desde a infância, a um padrão opressivo de comportamento, muitas vezes violento, agressivo, individualista, competitivo e belicoso.

Seria o padrão de comportamento que incentiva o homem a se destacar como líder em detrimento de outros homens e mulheres, não apenas ocupando na sociedade um grau de chefia, mas de dominância a todo custo. O mesmo padrão que estimula a violência em oposição a apatia, a repressão contra a diplomacia ou submissão. Dentro desse molde, estariam os famigerados ditames como “isso é coisa de mulherzinha”, “você tem que controlar sua mulher”, “homem não chora” e similares, como se conceitos de docilidade, tranquilidade, calma, obediência, cuidado, afeto e gentileza fossem necessariamente ligados ao feminino, e, mais do que isso: o que se conectasse ao feminino seria, por conseguinte, inferior.

Desde crianças, os homens seriam ensinados a não mostrar suas emoções, pois isso seria uma demonstração de fragilidade. Também seria importante impor o comando sobre os outros, ser a figura dominante, para não ocupar um grau de subserviência, serem “menos homens”. Esse modelo seguiria até a idade adulta, incluindo nisto o conceito da obrigação do homem enquanto “provedor da família”, “chefe do lar”, como se sua própria masculinidade estivesse, necessariamente, ligada à sua capacidade de liderar e controlar.

Seguindo esta lógica, pode-se apontar os estudos sobre a toxidez de um padrão masculino perverso, relacionados a ideia de masculinidade hegemônica, oriunda da teoria da ordem de gênero de Raewyn Connell. Nesta teoria, conforme as conjunturas de tempo, cultura e outros fatores externos, múltiplas masculinidades seriam geradas. Dentro destas, haveria a formação da masculinidade hegemônica, definida como a atual posição masculina que dá legitimidade social, cultural, tradicional no sentido de favorecer a posição dominante dos homens na sociedade, justificando a subordinação das mulheres e formas marginalizadas de ser homem aqueles que conseguissem alcançar o padrão de masculinidade hegemônica.

Em termos vinculados à sociologia, a natureza hegemônica da “masculinidade hegemônica” tem relação com a teoria da hegemonia cultural, de Antonio Gramsci, que estuda as divisões de poder entre as classes sociais de uma sociedade.

É relevante fazer uma ressalva a respeito do conceito de masculinidade hegemônica, que seria relativo, subordinado a diversas circunstâncias, variável de cultura em cultura, posto que a dominação do gênero masculino em detrimento do feminino é um processo também histórico, não uma repetição obrigatória. Aplicá-lo de maneira igualitária seria um procedimento reducionista e falho.

Portanto, pretendo me ater ao modelo trabalhado em “Big Little Lies”, sem estragar a experiência de quem se interessaria por assistir, e permitindo que tanto aqueles que não viram quanto aqueles que já assistiram o seriado possam compreender e refletir a partir de minha abordagem.

Basicamente, a masculinidade hegemônica de Connell e que se poderia identificar em “Big Little Lies”, estaria ligada a velha ideia de que o “ser homem” significaria “ser superior” a mulher, e também superior a conjuntos de masculinidade ligados ao “feminino”, e, portanto, inferiores. Estes grupos inferiores, referentes aos homens que não conseguem chegar a masculinidade hegemônica, poderiam ser elencados como sujeitos cooperativos, subordinados ou marginalizados. Os homens, na série, que são ofuscados por suas mulheres — seja por ganharem mais dinheiro em seus trabalhos, por serem mais carismáticas e, em suma, por se destacarem mais na sociedade do que seus maridos — são ridicularizados por isso.

No mais, o adjetivo “hegemônico” é uma forma de reconhecer um padrão a ser almejado como referência de comportamento ideal masculino, que, inevitavelmente, se vincularia a capacidade de subordinar as mulheres e outros demais grupos de homens. E é neste ponto que se desenvolve a masculinidade tóxica.

Nestes termos, aborda José Remon Tavares da Silva:

O modelo de masculinidade hegemônica impõe restrições emocionais e expressivas aos homens que exercem, em regime cotidiano, a vigilância de seus sentimentos, bloqueando canais adequados de expressão. As frustrações emocionais são canalizadas em ira e violência contra as mulheres ou outros homens ou ainda em comportamentos autodestrutivos. Segundo Kaufman: O bloqueio e negação contínua consciente ou inconsciente da passividade e todas as emoções e sentimentos que o homem associa à passividade — medo, dor, tristeza, constrangimento — é uma negação de parte do que somos. A vigilância psicológica e comportamental constante contra a passividade e seus derivados é um ato perpétuo de violência contra si mesmo.

No que se refere a série, somos apresentados a vida das três protagonistas durante sete episódios, contando a história de suas famílias, suas rotinas profissionais, seus lares, seu dia a dia. Os homens são personagens coadjuvantes, todavia, não por isso são simplificados, superficiais ou demonizados. Também há espaço na história para aprofundamento emocional e características próprias da narrativa pessoal destes personagens.

Alguns momentos de grande tensão da história, contudo, estão ligados a atos cometidos por homens que repercutiram de maneira traumática e opressora na vida das protagonistas. E todos estes atos, sem exceção, estão motivados pela noção tóxica de masculinidade: estupro, traições, bullying, abuso doméstico e sexual e suas consequências são desenvolvidos como parte fundamental das “pequenas grandes mentiras” escondidas no sofrimento das personagens. Competição masculina por status de poder, respeito e admiração social também recebem destaque, indo das nuances mais “suaves” as mais graves deste ideal de masculinidade que tantos homens buscam reproduzir para se sentirem realizados, respeitados, de fato “homens”. A luta masculina pela dominância é contínua e massacrante.

Os personagens coadjuvantes que participam do cotidiano das protagonistas femininas são seus maridos, companheiros, filhos, amigos, colegas de profissão. Boa parte deles se envolvem com essa luta pela masculinidade hegemônica, até mesmo crianças em processo de formação, e durante a busca por reproduzir o modelo almejado ferem as mulheres ao seu redor e outros homens. Alguns com marcas físicas, outros com abusos verbais, psicológicos, mas o ciclo de violência está ali, gritante, retratado com verossimilhança incômoda.

A série retrata o que vemos, dia após dia: casos de assédio moral, assédio sexual, violência doméstica e inúmeras agressões direcionadas às mulheres e homens inferiorizados por outros homens que estão, supostamente, apenas tentando se provar como dignos de respeito. Toda a lógica do “homem provedor”, da figura masculina de “liderança ideal” como conhecemos muitas vezes se conecta com conceitos misóginos. Para se sentir reconhecido, o homem — dentro do padrão de masculinidade tóxica — acha que se impor perante a mulher e outros homens, até mesmo por maneiras violentas, é justificado. É uma questão de manter status e de respeito. A opressão acaba sendo encoberta por todos os conhecidos motivos: “ele só estava tentando fazer o melhor”, “ele estava em um mau dia”, “ele não sabe o que faz”, “ele só quer o bem dessa família”, “ele não deve ter percebido que me machucou”.

A violência opressora masculina é trabalhada com primazia dentro do contexto da série, não esquecendo de demonstrar o quanto é, infelizmente, corriqueira, tanto no seriado quanto na realidade, oculta dos olhares alheios, como nos é ensinado a fingir não ver, negar, fugir, estando todos subordinados ao poderio dessa masculinidade que justifica inúmeras violações.

As mulheres escondem seu sofrimento, os homens que cometem os atos perversos buscam desculpas, tentam negar, abafar ou justificar suas agressões, até o momento em que a situação se torna insustentável. E, a partir daí, a série nos traz a resolução, que passa longe de revanchismos ou vinganças misândricas. A marca da violência continua, como trauma, como um passado dolorido. O ideal seria que jamais tivesse acontecido.

“Big Little Lies” é, portanto, uma série cujo grande trunfo está no retrato crítico da realidade, de maneira despretensiosa porém honesta, capaz de traduzir o que periga ser um lugar-comum da ficção com toda a profundidade e veracidade que chega a deixar o telespectador desconfortável. Coloco como maior trunfo justamente na capacidade de o roteiro traduzir de forma honesta, porém minuciosa, as modulações do padrão de comportamento masculino que torna vítimas as mulheres e os homens submetidos a alcança-lo.

Que a série e esta coluna possam servir de gatilho para reflexão acerca deste arquétipo misógino e violento, que precisa ser parado o quanto antes. Ensinemos nossos filhos, crianças e homens ao nosso redor a chorar se quiserem chorar, a demonstrar suas emoções e sentimentos, a agir com gentileza, a encontrar sua própria identidade sem a necessidade de atacar outrem para tanto. Não há nenhuma obrigação intrínseca a algum ideal masculino de dominância para ser homem, e mais, para ser um homem digno de admiração e respeito.

É tempo de parar a masculinidade tóxica, e com ela sustar a criação de pequenas grandes mentiras para encobrir as vítimas e os algozes de seus crimes, evitando insistir em um ciclo de violência que nada traz além de opressão para todos os gêneros.

Fontes bibliográficas:
CONNELL, Raewyn. Masculinities. California, California II, 2005.
CONNELL W, Robert; W. MESSERSCHMIDTII, James. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Rev. Estud. Fem. vol.21 no.1 Florianópolis Jan./Apr. 2013.
KAUFMAN, Michael. The construction of masculinity and the traid of men´s violence. In. KAUFMAN, Michael (Ed). Beyond Patriarchy: Essays on Pleasure, Power, and Change. Toronto, Oxford University Press, 1987.
REMON TAVARES DA SILVA, José. Masculinidade e violência: formação da identidade masculina e compreensão da violência praticada pelo homem. 18º REDOR Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife — PE, Tema: Perspectivas Feministas de Gênero: Desafios no Campo da Militância e das Práticas. 2014.

Clarice Lippmann, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio e estudante entusiasta de Filosofia.

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