Canta uma esperança desatinada para que se enfureçam silenciosamente os cadáveres dos afogados
Canta para que grasne sarcasticamente o corvo que tens pousado sobre a tua omoplata atlética
Canta como um louco enquanto os teus pés vão penetrando a massa sequiosa de lesmas
Canta! para esse formoso pássaro azul que ainda uma vez sujaria sobre o teu êxtase.
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Arranca do mais fundo a tua pureza e lança-a sobre o corpo felpudo das aranhas
Ri dos touros selvagens carregando nos chifres virgens nuas para o estupro nas montanhas
Pula sobre o leito cru dos sádicos, dos histéricos, dos masturbados e dança!
Dança para a lua que está escorrendo lentamente pelo ventre das menstruadas.
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Lança o teu poema inocente sobre o rio venéreo engolindo as cidades
Sobre os casebres onde os escorpiões se matam à visão dos amores miseráveis
Deita a tua alma sobre a podridão das latrinas e das fossas
Por onde passou a miséria da condição dos escravos e dos gênios.
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Dança, ó desvairado! Dança pelos campos aos rinchos dolorosos das éguas parindo
Mergulha a algidez deste lago onde os nenúfares apodrecem e onde a água floresce em miasmas
Fende o fundo viscoso e espreme com tuas fortes mãos a carne flácida das medusas
E com teu sorriso inexcedível surge como um deus amarelo da imunda pomada.
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Amarra-te aos pés das garças e solta-as para que te levem
E quando a decomposição dos campos de guerra te ferir as narinas, lança-te sobre a cidade mortuária
Cava a terra por entre as tumefações e se encontrares um velho canhão soterrado, volta
E vem atirar sobre as borboletas cintilando cores que comem as fezes verdes das estradas.
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Salta como um fauno puro ou como um sapo de ouro por entre os raios do sol frenético
Faz rugir com o teu calão o eco dos vales e das montanhas
Mija sobre o lugar dos mendigos nas escadarias sórdidas dos templos
E escarra sobre todos os que se proclamarem miseráveis.
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Canta! canta demais! Nada há como o amor para matar a vida
Amor que é bem o amor da inocência primeira!
Canta! — o coração da Donzela ficará queimando eternamente a cinza morta
Para o horror dos monges, dos cortesãos, das prostitutas e dos pederastas.
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Transforma-te por um segundo num mosquito gigante e passeia de noite sobre as grandes cidades
Espalhando o terror por onde quer que pousem tuas antenas impalpáveis
Suga aos cínicos o cinismo, aos covardes o medo, aos avaros o ouro
E para que apodreçam como porcos injeta-os de pureza!
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E com todo esse pus, faz um poema puro
E deixa-o ir, armado cavaleiro, pela vida
E ri e canta dos que pasmados o abrigarem
E dos que por medo dele te derem em troca a mulher e o pão.
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Canta! canta, porque cantar é a missão do poeta
E dança, porque dançar é o destino da pureza
Faz para os cemitérios e para os lares o teu grande gesto obsceno
Carne morta ou carne viva — toma! Agora falo eu que sou um!
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Vinicius de Moraes, no livro “50 poemas macabros”. Companhia das Letras, 2023

SOBRE O LIVROrevistaprosaversoearte.com - Balada feroz - Vinicius de Moraes
A face sombria de um dos grandes poetas da língua portuguesa, em antologia ilustrada e com poemas inéditos.
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Mais frequentemente lembrado por seus versos de amor, Vinicius de Moraes sempre cultivou um apreço pelo feio e o grotesco. Não que uma característica exclua a outra — em sua poesia, o belo e o mórbido andam de mãos dadas.
Estes 50 poemas macabros apresentam ao leitor uma faceta que marca toda a produção do poeta, mas poucas vezes recebeu destaque como um dos principais atributos de sua obra. De cemitérios a campos de concentração, caminhando entre fantasmas ou corpos decompostos, está aqui o Vinicius fúnebre e escatológico, aquele que pode ser considerado, “com a devida atenção, o principal herdeiro no século XX da poesia grotesca levada a efeito por Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos”, como escreve Daniel Gil, que organiza a seleção e assina o posfácio.
Com projeto gráfico especial e ilustrada por Alex Cerveny, a antologia inclui ainda sete poemas inéditos, extraídos de documentos do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa: “A morte sem pedágio”, “A consumação da carne”, “Poema de aniversário”, “Cara de fome”, “Parábola do homem rico”, “Desaparição de Tenório Júnior” e “O sórdido”.
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FICHA TÉCNICA
Páginas: 168
Formato: 13.70 X 21.00 cm
Peso: 0.214 kg
Acabamento: Livro brochura
Lançamento: 19/10/2023
ISBN: 978-85-3593-550-9
Selo: Companhia das Letras
Capa: Claudia Warrak
Ilustração: Alex Cerveny
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