quarta-feira, agosto 13, 2025

Atrás de Mim, um Mundo Inteiro, por Paulo Baía

Atrás de mim há um cortejo silencioso e indestrutível. Não é feito de reis, de heróis de bronze ou de santos de altar dourado, mas de gente que o mundo tentou apagar, que as páginas oficiais da história esconderam de propósito, que as vitórias dos poderosos empurraram para o rodapé das memórias. À frente desse cortejo estão eles: os escravizados arrancados da África, homens e mulheres transformados em mercadoria, acorrentados em porões úmidos e escuros onde o ar era denso de morte. Vieram de diferentes povos, reinos e nações, com línguas, deuses, canções e saberes que o colonizador tentou esmagar. Foram atravessados pelo terror das correntes, pelo cheiro insuportável de corpos amontoados, pela fome que secava a carne e pela violência que não dava trégua nem no sono. E, mesmo assim, sobreviveram. Mesmo assim, cantaram baixinho para que a memória não fosse assassinada junto com o corpo.
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Estão lá também os afrodescendentes, filhos e filhas desses escravizados, que aprenderam a rir com a boca ferida e a dançar para que o corpo não esquecesse que estava vivo. Aprenderam a transformar o luto em festa, a saudade em batuque, a opressão em resistência. Herdaram não apenas o sangue, mas o gesto insistente de existir num mundo que jurou apagá-los. E com eles estão várias etnias indígenas que foram massacradas, em especial a Funi-ô de Pernambuco, violentadas, expulsas, expropriadas, levadas a carregar na memória a língua cortada e a terra arrancada das mãos, obrigadas a existir como se sua própria existência fosse um incômodo. Estão lá também os italianos paupérrimos, miseráveis e analfabetos, expulsos de uma Europa branca e escravista que soube fabricar luxo e poder à custa da fome alheia, que não hesitou em transformar seus pobres em sobras exportáveis. E junto deles, os portugueses famintos, filhos de uma terra espremida pelo tempo e pela escassez, que atravessaram o oceano com sonhos amarrados em trouxas de pano e o olhar perdido na linha do horizonte.

Sou o que restou e o que renasceu disso tudo. Sou a síntese de violências e resistências, de encontros forçados e afetos improváveis, de abraços que salvaram e de mãos que feriram. Sou mestiço. Carrego no rosto e no corpo a geografia de todas essas travessias. Digo que sou negro porque é na negritude que encontro minha dignidade política, minha força ancestral, minha raiz mais funda, mas meu DNA é um mapa embaralhado, um mosaico de todos e todas que me antecederam, um retrato vivo do que o tempo não conseguiu separar. Cada fio da minha história foi tecido por mãos de origens distintas, algumas dadas com afeto, outras impostas pela necessidade ou pela brutalidade.
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A miscigenação que me trouxe até aqui não nasceu de um poema idílico sobre diversidade e harmonia. Foi, muitas vezes, o resultado de estupros, de casamentos sem consentimento, de relações atravessadas pela fome e pela desigualdade. O amor existiu, sim, mas também existiu o medo. Existiu o gesto cúmplice, mas também existiu a força que oprimia. Sou filho de um país que nasceu misturado à força e que ainda hoje tenta se reconhecer no espelho sem desviar o olhar. Sou a carne e o sangue de um pacto silencioso entre sobrevivência e resistência.

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Johann Moritz Rugendas – Batuque (1822-1825)

Atrás de mim há vozes que me empurram para frente. A vida passou através deles até chegar a mim e, em honra a eles, eu a viverei plenamente. Plenamente não é ingenuamente. Plenamente é com consciência. É saber que o sangue que corre em mim é o mesmo que irrigou plantações sob o sol cruel do meio-dia, que defendeu aldeias na mata, que atravessou oceanos em porões infectos, que resistiu à febre e à fome e ainda encontrou forças para criar filhos. É o mesmo sangue que viu a morte de perto e, ainda assim, insistiu em parir, em alimentar, em ensinar, em sonhar.
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Quando me olho no espelho não vejo apenas um indivíduo. Vejo um território inteiro. Vejo o sertão e o porto, a aldeia e a fábrica, a senzala e a vila operária. Vejo o Brasil que não cabe nos livros de história porque é feito de histórias que não foram escritas, mas que sobrevivem na pele, na música, na comida e no jeito de falar. Vejo os pés descalços nas ruas de barro, o silêncio pesado dos que atravessaram oceanos, o olhar desconfiado dos que viram a promessa de futuro virar dívida eterna. Vejo as correntes arrebentadas, mas não esquecidas. Vejo o tambor que atravessou séculos, a capoeira que camuflou luta em dança, o canto que atravessou o Atlântico e encontrou eco no meu peito.

Sou o resultado de um tempo que não acabou porque as desigualdades que criaram meus ancestrais ainda moldam as ruas que caminho. E talvez viver plenamente, para mim, seja exatamente isso: honrar quem veio antes sem romantizar o que os feriu. É reconhecer que a minha existência é, ao mesmo tempo, um milagre e uma denúncia. É entender que, se estou aqui, é porque eles resistiram, e que a minha vida só tem sentido se continuar essa resistência.
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Vivo, portanto, como quem carrega uma chama herdada. Não deixo que o vento da indiferença apague o fogo que me foi entregue. Sigo com o corpo ereto e o coração atento, porque atrás de mim não há apenas um passado. Há um mundo inteiro que insiste em caminhar comigo. E esse mundo traz o cheiro da terra molhada e da maresia, o gosto salgado do suor e do choro, o som grave dos tambores que não param de bater. Eu caminho, mas não caminho só. Eu respiro, mas respiro junto com eles. Eu sou, mas sou porque eles foram. E se minha voz ecoa hoje é porque, mesmo acorrentados, eles nunca deixaram de cantar.
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[Cabo Frio/RJ, 13 de agosto de 2025]
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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