Adriana Cavalcanti, de 29 anos, vive há 17 nas ruas de Campinas (SP) e ganhou notoriedade ao comentar a greve dos caminhoneiros na internet.
– por Fernando Evans, G1 Campinas e região

Acostumada a viver entre a invisibilidade e o preconceito, Adriana Cavalcanti, de 29 anos, encontrou nos livros uma paixão e a companhia para a solidão. Transexual, negra, nordestina e vivendo nas ruas de Campinas (SP) há 17 anos, ela conta que buscou em textos, poemas e músicas as explicações do “porquê é quem é, o porquê o Brasil é o Brasil”. Durante a greve dos caminhoneiros, em maio, um vídeo em que ela aparece ultrapassou dois milhões de visualizações. Nele, a moradora de rua mostra sua opinião sobre a paralisação e sua visão sobre a democracia.

Adriana vive no entorno de uma agência bancária, no bairro Ponte Preta, em Campinas (SP). Veja, abaixo, alguns pontos sobre o que ela contou. Na sequência, leia mais detalhes da entrevista:

– Adriana fugiu da casa de acolhimento para as ruas aos 12 anos
Desenvolveu a paixão pelos livros e teve até uma biblioteca itinerante;
– Na infância, sonhava ser cantora ou atriz;
– Quer sair das ruas e ter um lugar para os cães e livros.

“Na falta de com quem conversar, eu entendi que os livros falam. Eles estão sempre a falar”, diz.

Engajada em dar voz às pessoas que estão à margem da sociedade, ela diz que com a inesperada fama alcançada pelo vídeo que se espalhou pelas redes sociais quer mostrar aquilo que, define, “a cidade teima em não ver”.

“Se minha caneta for a língua, então que essa seja escritora das mais densas páginas em branco, para que outras pessoas possam com a caneta compor suas histórias”, afirma.

Saída das ruas

Esta busca coletiva, conta ela, caminha lado a lado com o sonho pessoal. Sonho de sair das ruas, realidade que conheceu desde quando tinha 12 anos, depois de fugir de uma casa de acolhimento e ser internada em unidades da Febem, atual Fundação Casa.

“Eu nunca fiz nada de mal para ninguém. Meu único crime foi roubar bolachas para me alimentar. Não estava roubando porque eu gostava. A fome é cruel”, diz.

Após o vídeo dela se multiplicar pela web, internautas organizaram um financiamento coletivo para tentar reunir recursos para dar condições iniciais para Adriana recomeçar a vida fora das ruas (veja mais detalhes abaixo).

Vítimas Algozes

Ela conta que ainda criança conheceu as dificuldades que as ruas reservam àqueles que vivem nelas. Para Adriana, a comunidade em situação de rua ou não é vista, ou é vista como vilã.

“É como mostra Joaquim Manoel de Macedo em ‘As Vítimas Algozes'”, fala em menção à obra que retrata os escravos como violentos e perigosos para defender, por meio do medo incutido nos barões, ideais abolicionistas no Brasil do final do século 19.

Referência

Ao comparar a realidade com a literatura, a transexual elege “Capitães da Areia”, de Jorge Amado, como uma bíblia para a própria vida. A obra que retrata crianças e adolescentes moradoras de rua em Salvador nos anos 1930, ela diz, norteia seus passos. “É uma história real”, afirma.

“Vestidos de farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro, eram, em verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus poetas”, escreveu Jorge Amado em um dos trechos do clássico.

Viralizou

Morando há um ano na região do Cemitério da Saudade, em Campinas (SP), Adriana cultivou amizades e inimizades naquele reduto. Há quem torça o olhar para ela e seus cachorros, mas tem quem pare para conversar ou oferecer ajuda.

Um dos amigos é o atendente Orlailson Araújo, de 29 anos, autor do vídeo da Adriana que circula pela rede. O rapaz conta que conheceu Adriana na região onde ele trabalha, no Cambuí, mas a aproximação se deu quando a transexual se mudou e fixou residência no atual endereço, na agência bancária que fica perto da casa dele.

“Eu comecei a conversar mais e me aproximei mais dela”, explica Orlailson. As visitas passaram de ocasionais para frequentes e culminou com a gravação do vídeo em maio deste ano.

“Estava no meio da greve e, do nada, deu a ideia de fazer o vídeo para perguntar o que a Adriana achava. Liguei o celular e pedi para meu namorado gravar”, lembra.

Para surpresa de Orlailson, o vídeo com Adriana espalhou-se pelo mundo. Só no perfil dele numa rede social, ultrapassou a marca de 2 milhões de views.

“Além de repercutir no Brasil todo, recebi mensagens dos Estados Unidos, Portugal, Angola”, conta.

Vaquinha

Um desses contatos pela internet veio de Chicago, nos Estados Unidos, onde mora a brasileira Jéssica Moreira-Spencer. Foi dela a ideia de criar, a partir do vídeo, uma campanha para tentar ajudar Adriana a sair das ruas.

“Eu descobri sobre a Adriana por um vídeo que apareceu na minha timeline que dois amigos compartilharam. E fiquei com ele na cabeça, fui dormir pensando nela. Aí, no dia seguinte, tive a ideia de buscar quem a entrevistou. Conversei com o Orlailson e disse que poderíamos fazer algo para ajudá-la”, conta.

A vaquinha online busca R$ 5 mil, mas o valor, claro, não é suficiente para conseguir uma moradia para Adriana.

“[O dinheiro] vai ajudá-la. Mas estamos nos organizando, com outras pessoas na internet, na tentativa de conseguir um terreno e uma casa contêiner para a Adriana”, diz o atendente.

A possibilidade enche de esperança a moradora de rua, que hoje divide uma pequena barraca de camping com quatro cachorros, “seus parentes das ruas”, diz.

“Imagina se eu consigo um terreno qualquer, um terreninho que seja, que eu consiga me estabelecer, ter espaço para deixar meus cães, meus livros”.

Paixão pelos livros

Adriana conta que desenvolveu a paixão pelos livros graças aos professores de português que teve na infância, ainda nas casas de acolhimento e durante as passagens pela antiga Febem. A leitura, segundo ela, foi um refúgio para lidar com o preconceito.

“Eu comecei na minha solidão, isolamento, a conversar com os livros. Foi quando descobri Jorge Amado, Aluísio Azevedo, Tobias Barreto, Joaquim Manoel de Macedo”, lembra.

Nas ruas, acumulou tantos livros que chegou a montar uma espécie de biblioteca itinerante, onde emprestava títulos para outros moradores de rua ou quem demonstrasse interesse. A iniciativa, no entanto, acabou repentinamente. “Os guardas levaram com a justificativa da operação cata-treco”, diz.

Se muitos livros se foram, os ensinamentos dos escritores ficaram, e ajudaram no que Adriana define como “compreensão de mundo”. Questionada quais seriam os títulos inesquecíveis ou essenciais, ela tratou de listar alguns:

– Capitães de Areia, de Jorge Amado
– As Vítimas Algozes e A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo
– O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco
– Poemas de Cruz e Souza
– Composições de Vinícius de Moraes

Sua atual leitura é o “O Cortiço”, romance escrito por Aluísio Azevedo e um clássico da literatura brasileira. Protegida do frio apenas por uma barraca fina, Adriana devora com tanta paixão o livro que chama a atenção de quem passa pelo banco.

“Um rapaz chegou e me disse que na escola ele era obrigado a ler esse livro. Perguntei se ele se sentia obrigado a ler esse livro, e disse que sim. Que era um ‘livro chato’. Aí, depois que eu li três páginas, ele disse: ‘nossa, mas é bonito, hein?’ Expliquei: ‘não, bonito é a maneira que você o enxerga, e a maneira que eles te oferecem'”, conta Adriana, que completa.
“Nada do que você é obrigado a fazer é bonito. Tudo que você por prazer faz é maravilhoso. Agora, ele quer o livro emprestado”.

Vida nas ruas

Adriana conta que fugiu de uma casa de acolhimento com três colegas, todos já mortos. Relembra que, enquanto tinha de lidar com a fome, frio e medo, foi apresentada às drogas. Passou pela cola, maconha e chegou ao crack, que utiliza “às vezes”, avisa.

“A droga é uma válvula de escape para o inferno que se vive nas ruas”, diz. O uso do crack, conta, serve como um apoio para os momentos difíceis. “Sem sair de si e da realidade”, fala.
“Eu gasto mais tempo com livro do que com crack. Eu gasto mais tempo com pessoas como eu do que com crack. Não sou uma nóia, mas lógico que vou usar, sim. Quero saber quem é o ser humano que ia conseguir passar a noite sem dar uma ‘pauladinha’ sabendo que poderia morrer no dia seguinte”.

A morte, aliás, já passou próxima de Adriana pelo menos quatro vezes em 17 anos nas ruas de Campinas.

“Eu já sofri de hipotermia quatro vezes. Já coloquei a mão na frente da boca e expirei ar gelado. Eu já perdi os sentidos, eu já morri!”

Adriana diz ter tirado lições até destes momentos mais extremos. “Para quem morreu e continuou por aqui, graças a esse trote de Deus, então eu passei a aproveitar a vida. Meu sonho quando era criança não era ser nóia, não era ser moradora de rua. Meu sonho era ser artista, cantora…”

“O mundo já está te condenando. Se você continuar se condenando quanto o mundo de condena, tá f….. Se o mundo tá de condenando, se absolva. Se o mundo te priva, se permita.”

 

*Assista aqui o vídeo com à entrevista concedida ao G1

 

Fonte: G1/Campinas







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