Ana Maria Gonçalves - foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Ana Maria Gonçalves é mais que uma escritora. É um oráculo moderno que fala por vozes ancestrais, que escreve com o rigor da historiadora e a delicadeza da artista, que se levanta como uma cidadã plena da República das Letras e da democracia dos oprimidos. Sua eleição para a Academia Brasileira de Letras como a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira é um evento tão simbólico quanto definitivo. Um gesto que sacraliza a ancestralidade escravizada e celebra a persistência de um povo que sobreviveu à dor com beleza, à opressão com dignidade e ao silêncio com palavra. Neste gesto está contido o grito milenar das vozes que nunca deixaram de falar. O som das senzalas. O som das mães pretas. O som dos batuques interditos. O som dos corpos açoitados transformado agora em letra imortal.
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Sua obra mais conhecida, Um Defeito de Cor, é ao mesmo tempo um romance de formação, um tratado histórico e um ato de resistência literária. Com mais de 900 páginas, Ana Maria Gonçalves recria a história do Brasil do século XIX a partir da travessia atlântica de Kehinde, uma menina iorubá escravizada que percorre oceanos, continentes, línguas, exílios e afetos em busca de liberdade e reencontro. A personagem é inspirada na figura lendária de Luísa Mahin e constrói, ao longo da narrativa, uma biografia inventada e verossímil. Um corpo ficcional onde a história se dobra diante da literatura e a literatura se ajoelha diante da memória. É um livro monumental. Um romance-espaço. Um romance-tempo. Um romance-ritual. Escrito com meticulosidade de arquivo e alma de griot.
O texto de Ana Maria Gonçalves é envolvente. Ela domina a língua com sedução e propósito. Há beleza na descrição da dor. Há precisão na tessitura da tragédia. Há política na construção do afeto. Seu texto seduz porque é sincero. E choca porque é verdadeiro. A sua escrita é uma convocação ao pensamento, um alerta ético, uma denúncia sem panfleto. Há em sua voz uma universalidade que não esconde a particularidade negra, feminina, brasileira. Pelo contrário, a exalta. Sua linguagem transborda a beleza da oralidade africana, a dor da diáspora, a força da resistência. Ana Maria Gonçalves é universal porque é radicalmente pontual. É escritora do mundo porque escreve desde o fundo de sua história. E quem escreve desde o fundo não escreve para agradar, escreve para libertar.
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Nascida em Ibiá, Minas Gerais, em 1970, Ana Maria Gonçalves formou-se em Comunicação Social. Atuou no jornalismo e na publicidade antes de se entregar inteiramente à literatura. Viveu em Salvador. Viajou pelos Estados Unidos como escritora residente em Stanford, Tulane e Middlebury. Ministrou cursos. Publicou artigos. Roteirizou. Atuou como dramaturga. Colaborou com veículos como The Intercept Brasil. Sua trajetória é marcada por uma presença ativa e consciente nos debates raciais, educacionais, culturais e feministas do país. Mais que uma escritora, Ana é uma intelectual pública que não se esconde no êxito da ficção. Ela assume sua negritude como lugar de fala e de luta. E transforma seu ativismo em narrativa e sua narrativa em transformação.
A eleição de Ana Maria Gonçalves para a Academia Brasileira de Letras é um evento que ultrapassa os limites da consagração literária. É um gesto de reparação histórica. É um ato político da mais alta grandeza simbólica. É um movimento tectônico dentro de uma instituição que, por mais de um século, excluiu as vozes de quem fundou este país com sangue e suor. Ana senta-se agora entre os imortais. Mas não está só. Ao seu lado está Luísa Mahin. Estão os quilombos calados. Estão os cantos dos terreiros. Estão as mãos que apanharam para que o Brasil tivesse pão. Estão os que morreram analfabetos sem nunca terem sido ignorantes. Estão os que resistiram no silêncio e agora falam na sua voz.
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Este é um festival de alegria. Uma celebração que rompe com a tristeza das estatísticas e se ergue como monumento à vida. Os negros, os pardos, os mestiços, os invisíveis, os herdeiros da exclusão, todos temos o direito de nos sentir representados nesta vitória. Cada letra escrita por Ana Maria Gonçalves é também uma carta aberta à memória. Cada linha é uma oferenda aos que vieram antes. Cada parágrafo é um gesto de amor àqueles que foram transformados em mercadoria e hoje voltam em forma de verbo. Sua presença na ABL é como um tambor que ressoa nos mármores do Petit Trianon. E esse som é novo. É antigo. É ancestral.
É impossível ler Ana Maria Gonçalves sem ser tocado. Sem repensar. Sem se indignar. Sem se emocionar. Sua literatura é feita com precisão cirúrgica e febre poética. Ela reconstrói o Brasil a partir do avesso. Não do avesso da mentira. Mas do avesso da exclusão. Do avesso das versões oficiais. Sua obra é, por isso mesmo, reparadora. Ela não reescreve a história. Ela liberta a história de seus cárceres. O que está em jogo em seu trabalho é o direito de existir narrativamente. De existir com complexidade. De existir com memória. De existir com orgulho.
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Ana Maria Gonçalves é uma escritora que desperta amor pela língua e respeito pela luta. Seu ativismo ético e estético se entrelaçam com uma técnica rigorosa. Ela pesquisa, levanta arquivos, mergulha em documentos, estuda línguas, geopolítica, etnografia. Seu texto nasce da junção entre suor e inspiração. E por isso ele se impõe com autoridade. Mas nunca com arrogância. Há humildade na grandeza de Ana. Há uma espécie de doçura revolucionária. Um compromisso com a beleza como forma de cura. Um pacto com a verdade como forma de afeto.
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Sua eleição para a Academia Brasileira de Letras não fecha um ciclo. Abre caminhos. Torna possível o que era inimaginável. Seu ingresso inaugura um tempo novo. Tempo em que a negritude não será exceção. Em que a literatura não será território da elite branca. Em que a imortalidade será negra, feminina, feminista, mestiça. Ana não entrou sozinha. Trouxe uma multidão com ela. E nesta multidão estamos nós. Leitores. Cúmplices. Amantes das palavras que nos curam.
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Salve Ana Maria Gonçalves. Que sua presença imortal na Casa de Machado seja também a presença viva de todos os que ousaram sonhar com um país onde a palavra pertence a todos. E onde a literatura seja, enfim, território de justiça.
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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