terça-feira, agosto 5, 2025

Alma que dança, por Paulo Baía

Há um instante em que o corpo se desprende da lógica do mundo. Nem sempre sabemos nomear esse instante, mas ele existe. Ele pulsa em silêncio, lá onde a palavra já não alcança. É quando os pés já não tocam o chão da mesma maneira, mas flutuam com o peso exato da leveza. Ali, não se trata mais de acertar o compasso ou decorar os gestos. Trata-se de incendiar o ar com o que vibra dentro.
.
Há quem passe a vida ensaiando o passo certo, o tempo certo, o movimento que agrade e impressione. Decoram coreografias como quem decora orações vazias. Repetem com perfeição, mas com a alma ausente. E por mais que o palco aplauda, falta algo que não se aprende nos espelhos nem nos salões. Falta o sagrado: aquela entrega que não se ensina, só se sente.

A dança que toca é a que rasga. A que rompe as amarras do corpo e deixa o coração gritar sem pedir licença. É quando os olhos se fecham não por timidez, mas por excesso de mundo dentro. É quando os braços se erguem não por técnica, mas por necessidade de voo. Não é o ritmo que comove. É o descompasso da coragem.
.
E o coração dessa coragem bate em muitos cantos da cidade. Na Praça Tiradentes, por exemplo, entre as luzes gastas do centro do Rio, o Salão da Gafieira Estandina Musical sobrevive como um templo de paixões cadenciadas. Ali, os casais se formam no primeiro olhar e se desfazem no último acorde, mas o que permanece é o calor. Um calor que não se explica, apenas se vive.
.
Aos sábados, quando o sol ainda escorre pelas esquinas da Zona Norte, o Clube Helênico abre suas portas para o ritual da dança com feijoada. É um cheiro de feijão com samba, um tempero de abraço e suor. Dança-se de barriga cheia, e mesmo assim leve. Ali não há julgamento. Há risos, há reencontros, há lembranças. Há histórias que se contam com os pés, sem uma palavra sequer.
.
E na quarta-feira, quando o mundo parece já ter esquecido o sentido da semana, o Salão do Clube Municipal reluz com outro brilho. É a noite dos resistentes. Dos que dançam por dentro e por fora. Dos que chegaram do trabalho, do cansaço, do cotidiano cinza e colocaram sua alma para girar no compasso de um bolero, de um samba-canção, de um forró. Há algo ali que desmente a tristeza do tempo.

E como negar a eternidade que vibra entre as lonas do Circo Voador, quando a dança explode em liberdade? Ali não há teto que prenda nem parede que contenha. É como dançar sob estrelas inventadas pelo próprio desejo. A cidade pulsa diferente quando a música ecoa entre os arcos e os gritos de alegria se misturam à respiração da pista. Cada passo ali é também protesto, invenção, desobediência feliz.
.
Há noites em que o som da Orquestra Tabajara conduzida pelo maestro Severino Araújo parece trazer de volta um tempo encantado. A música entra pelos poros como perfume antigo e transforma qualquer salão em nave. O corpo, então, se curva e se lança com uma nobreza que nenhum ensaio alcança. Porque quando a orquestra toca, o mundo se curva diante da delicadeza. A dança nasce como um raio e se eterniza como memória.
.
Cada salão é um universo. Estandina, Helênico, Municipal, Circo Voador. Nomes que se misturam aos nomes dos que ali vivem suas histórias. Uma costureira viúva, um ex-jogador de futebol de praia, uma bibliotecária aposentada. Todos têm sua dança guardada e, ao mesmo tempo, oferecida. A cidade se revela nos corpos desses anônimos que brilham por dentro.

O Rio dança mesmo quando chora. Dança como quem resiste. Como quem se reinventa a cada acorde. Como quem sabe que a felicidade, por vezes, não está em durar, mas em vibrar com intensidade por poucos minutos. Os salões são refúgios. E neles o mundo se transforma.
.
E no fim, quando o corpo para, ainda há uma luz acesa no olhar. Uma centelha que insiste. Porque a dança verdadeira nunca termina. Ela permanece vibrando, invisível, como um segredo partilhado entre a alma e o infinito. Uma promessa muda: enquanto houver paixão, haverá dança. Mesmo que em silêncio. Mesmo que sozinha. Mesmo que só por dentro.
.
[6 de abril de 1994, no bairro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro]
——–

revistaprosaversoearte.com - Alma que dança, por Paulo Baía
Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
———————
** Leia outros artigos e crônicas do autor publicados na revista. clique aqui
.
Leia também:


ACOMPANHE NOSSAS REDES

ARTIGOS RECENTES