Krenak aborda como os sonhos possibilitam fazer a conexão entre a realidade cósmica e a vida cotidiana
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Utilizando evidências e ironia, Ailton Krenak cria, com a sua linguagem, estratégias para estimular o pensamento crítico do leitor sobre como é viver em sociedade e a relação que as pessoas estabelecem com a natureza e com o planeta
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Em 2019, Ailton Krenak publicou, pela editora Companhia das Letras, o livro “Ideias para adiar o fim do mundo” e, em 2020, lançou “A vida não é útil“, da onde extraímos o texto a seguir:, comprem os livros, Krenak nos ensina muito!

Sonhos para adiar o fim do mundo, por Ailton Krenak
Quando pergunto se somos mesmo uma humanidade é uma oportunidade de refletirmos sobre a sua real configuração. Se ela convoca nossas redes e conexões desde a Antiguidade. Se a contribuição que aquele pessoal nas cavernas deu ao inconsciente coletivo — esse oceano que nunca se esgota — se liga com os nossos terminais aqui, nessa era distante. Se, em vez de olharmos nossos ancestrais como aqueles que já estavam aqui há muito tempo, invertermos o binóculo, seremos percebidos pelo olhar deles. Sidarta Ribeiro traz uma revelação muito interessante: que as cenas de caça nas pinturas rupestres podem não estar registrando apenas atividades cotidianas, mas falando de sonhos. Sempre fomos capazes de observar uma diferença entre a experiência desperta e o mundo dos sonhos, então decerto conseguimos trazer para a vigília histórias desse outro mundo.
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O tipo de sonho a que eu me refiro é uma instituição. Uma instituição que admite sonhadores. Onde as pessoas aprendem diferentes linguagens, se apropriam de recursos para dar conta com raiva, ora ofendidos. Nós acabamos nos constituindo como um terminal nervoso do que chamam de natureza. E a ciência daquele pajé, alertando toda uma geração que hoje está com cinquenta, sessenta anos de que seu território ficaria devastado e sem caça, se cumpriu de maneira absolutamente correta. O agronegócio invadiu o cerrado, o Xingu virou uma pizza. Uma pizza não, uma empadinha cercada de soja por todos os lados, com tratores cortando tudo. Desde aquela época, experiencio o sentido do sonho como instituição que prepara as de si e do seu entorno. O entorno de um caçador, por exemplo, é aquele que aparece nos desenhos das cavernas de 20 mil, 30 mil anos atrás. Os sonhos de alguém que está hoje preocupado com cataclismas, com a tragédia ambiental do planeta, podem ser mais parecidos com os de um pajé Xavante, como aquele que me chamou, quarenta anos atrás, na Serra do Roncador. Ali, próximo ao Xingu, na terra indígena Pimentel Barbosa, vivia um senhor chamado Sibupá. Um dia, esse ancião chamou seus sobrinhos de adoção — eu entre eles — e nos disse: “Eu tive um sonho em que o espírito da caça estava muito bravo e dizia que eu era um irresponsável, que eu não estava cuidando bem dos espíritos dos bichos, que os waradzu (os brancos) estavam predando tudo e logo acabaria a caça e as pessoas não teriam mais o que comer”. Na visão daquele pajé, que os jovens foram convocados a partilhar, a terra ficaria desolada.
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Foi ali que eu atinei que tinha algo na perspectiva dos povos indígenas, em nosso jeito de observar e pensar, que poderia abrir uma fresta de entendimento nesse entorno que é o mundo do conhecimento. Naquele tempo eu comecei a visitar as florestas do Acre, de Rondônia, e, por todos os lados, os pajés diziam: “Vocês precisam tomar cuidado porque o mundo dos brancos está invadindo a nossa existência”. Invadindo. Na época eu ouvia os velhos como um espectador. Até que comecei a ter os mesmos sonhos premonitórios ao olhar as estradas, os tratores e as motosserras chegando; o barulho delas derrubando as grandes árvores, a revolta dos rios. Passei a ouvir os rios falando, ora pessoas para se relacionarem com o cotidiano.
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Essa instituição também se comunica com esferas mais domésticas. Sonhar é uma prática que pode ser entendida como regime cultural em que, de manhã cedo, as pessoas contam o sonho que tiveram. Não como uma atividade pública, mas de caráter íntimo. Você não conta seu sonho em uma praça, mas para as pessoas com quem tem uma relação. O que sugere também que o sonho é um lugar de veiculação de afetos. Afetos no vasto sentido da palavra: não falo apenas de sua mãe e seus irmãos, mas também de como o sonho afeta o mundo sensível; de como o ato de contá-los é trazer conexões do mundo dos sonhos para o amanhecer, apresentá-los aos seus convivas e transformar isso, na hora, em matéria intangível. Quando o sonho termina de ser contado, quem o escuta já pode pegar suas ferramentas e sair para as atividades do dia: o pescador pode ir pescar, o caçador pode ir caçar e quem não tem nada a fazer pode se recolher. Não há nenhum véu que o separa do cotidiano e o sonho emerge com maravilhosa clareza.
Existem muitos tipos de sonhos. Se alguém me chama para fazer uma viagem, eu espero sonhar com aquilo. Se eu não sonhar com a viagem ou com um convite para sair de onde estou, significa que eu não vou. Nunca sei o que vou fazer antecipadamente. É uma orientação que pode ser pensada como mágica, mas, na verdade, é o nosso modo de vida. Enquanto perseverarmos nele, vamos continuar sendo quem somos. Essa experiência de uma consciência coletiva é o que orienta as minhas escolhas. É uma forma de preservar nossa integridade, nossa ligação cósmica. Estamos andando aqui na Terra, mas andamos por outros lugares também. A maioria dos parentes indígenas faz isso. É só você olhar a produção dos mais jovens que estão interagindo com o campo da arte e da cultura, publicando, falando. Você percebe neles essa perspectiva coletiva. Não conheço nenhum sujeito de nenhum povo nosso que saiu sozinho pelo mundo. Andamos em constelação.
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Os Krenak são parentes dos Xavante, dos Krahô, dos Kaiapó, somos um povo Jê. Então digamos que nós somos caçadores, não agricultores. Creio que ainda persistem cosmovisões e mentalidades constituídas por povos caçadores-coletores, mesmo em situação adversa em que não há mais o que caçar nem o que coletar. Essas tradições ainda têm, na contemporaneidade, ligação direta com a nossa subjetividade, por isso os caçadores sonham de um jeito e os agricultores, outro. Tem uma história antiga do povo Krenak que diz que o Criador deixou uma humanidade aqui na Terra e foi para algum outro lugar do cosmos. Um dia ele se lembrou de nós e disse: “Ah, eu deixei minhas criaturas lá na Terra, preciso ver o que eles se tornaram”. Mas, enquanto fazia esse movimento incrível de vir até aqui nos ver, ele pensou: “E se eles tiverem se tornado algo pior do que eu posso conceber? O melhor seria não ter um encontro pessoal com eles. Vou fazer o seguinte: vou me transformar em uma outra criatura para ver as minhas criaturas”. Ele se transformou num tamanduá e saiu pela campina. Em certo momento, um grupo de caçadores, munidos de bordunas e laços, se encostaram numa paisagem, avançaram sobre ele, o prenderam e levaram pro acampamento com a intenção óbvia de comê-lo. Duas crianças gêmeas, que observavam a cena, evitaram que ele fosse levado para a fogueira. Ele então se revelou para os meninos, que, antes que os adultos descobrissem, acobertaram a sua fuga. Do alto de uma colina, os meninos gritaram: “Avô, o que você achou da gente, das suas criaturas?”. E Deus respondeu: “Mais ou menos”.
A ideia dos Krenak sobre a criatura humana é precária. Os seres humanos não têm certificado, podem dar errado. Essa noção de que a humanidade é predestinada é bobagem. Nenhum outro animal pensa isso. Os Krenak desconfiam desse destino humano, por isso que a gente se filia ao rio, à pedra, às plantas e a outros seres com quem temos afinidade. É importante saber com quem podemos nos associar, em uma perspectiva existencial mesmo, em vez de ficarmos convencidos de que estamos com a bola toda. Foi esse ponto de observação que me fez afirmar que nós não somos a humanidade que pensamos ser. É mais ou menos o seguinte: se acreditamos que quem apita nesse organismo maravilhoso que é a Terra são os tais humanos, acabamos incorrendo no grave erro de achar que existe uma qualidade humana especial. Ora, se essa qualidade existisse, nós não estaríamos hoje discutindo a indiferença de algumas pessoas em relação à morte e à destruição da base da vida no planeta. Destruir a floresta, o rio, destruir as paisagens, assim como ignorar a morte das pessoas, mostra que não há parâmetro de qualidade nenhum na humanidade, que isso não passa de uma construção histórica não confirmada pela realidade.
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O século XX, com todas as suas guerras, demonstra bem isso. Foi preciso fazer uma espécie de armistício, porque nos armamos a tal ponto que seríamos capazes de destruir o planeta — várias vezes. Se nossa técnica nos levou a isso, de fato já demos prova suficiente de nossa desqualificação, de nosso abuso dos outros seres: todos estão ofendidos com a nossa grosseria. Se estamos envergonhados com o que aconteceu no nosso país, na biosfera há milhões de seres olhando a nossa baixaria e perguntando: “O que esses humanos estão fazendo?”. Estamos vivendo uma tragédia global. Mesmo que alguns coletivos humanos pensem para além da linha-d’água, são apenas uma amostra grátis dessa humanidade. Precisamos evocar, do meio disso, alguma visão para sairmos desse pântano.
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Isso que as ciências política e econômica chamam de capitalismo teve metástase, ocupou o planeta inteiro e se infiltrou na vida de maneira incontrolável. Se quisermos, após essa pandemia, reconfigurar o mundo com essa mesma matriz, é claro que o que estamos vivendo é uma crise, no sentido de erro. Mas, se enxergarmos que estamos passando por uma transformação, precisaremos admitir que nosso sonho coletivo de mundo e a inserção da humanidade na biosfera terão que se dar de outra maneira. Nós podemos habitar este planeta, mas deverá ser de outro jeito. Senão, seria como se alguém quisesse ir ao pico do Himalaia, mas pretendesse levar junto sua casa, a geladeira, o cachorro, o papagaio, a bicicleta. Com uma bagagem dessas ele nunca vai chegar. Vamos ter que nos reconfigurar radicalmente para estarmos aqui. E nós ansiamos por essa novidade, ela é capaz de nos surpreender. Terá o sentido da poesia de Caetano Veloso na música “Um índio”: nos surpreenderá pelo óbvio. De repente, vai ficar claro que precisamos trocar de equipamentos. E — surpresa! — o equipamento que precisamos para estar na biosfera é exatamente o nosso corpo.
Alguns povos têm um entendimento de que nossos corpos estão relacionados com tudo o que é vida, que os ciclos da Terra são também os ciclos dos nossos corpos. Observamos a terra, o céu e sentimos que não estamos dissociados dos outros seres. O meu povo, assim como outros parentes, tem essa tradição de suspender o céu. Quando ele fica muito perto da terra, há um tipo de humanidade que, por suas experiências culturais, sente essa pressão. Ela é sazonal, aqui nos trópicos essa proximidade se dá na entrada da primavera. Então é preciso dançar e cantar para suspendê-lo, para que as mudanças referentes à saúde da Terra e de todos os seres aconteçam nessa passagem. Quando fazemos o taru andé, esse ritual, é a comunhão com a teia da vida que nos dá potência.
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Suspender o céu é ampliar os horizontes de todos, não só dos humanos. Trata-se de uma memória, uma herança cultural do tempo em que nossos ancestrais estavam tão harmonizados com o ritmo da natureza que só precisavam trabalhar algumas horas do dia para proverem tudo que era preciso para viver. Em todo o resto do tempo você podia cantar, dançar, sonhar: o cotidiano era uma extensão do sonho. E as relações, os contratos tecidos no mundo dos sonhos, continuavam tendo sentido depois de acordar. Quando pensamos na possibilidade de um tempo além deste, estamos sonhando com um mundo onde nós, humanos, teremos que estar reconfigurados para podermos circular. Vamos ter que produzir outros corpos, outros afetos, sonhar outros sonhos para sermos acolhidos por esse mundo e nele podermos habitar. Se encararmos as coisas dessa forma, isso que estamos vivendo hoje não será apenas uma crise, mas uma esperança fantástica, promissora.
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Do livro “A vida não é útil“. Ailton Krenak. [pesquisa e organização de Rita Carelli; capa Alceu Chiesorin Nunes]. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
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SAIBA MAIS SOBRE O AUTOR
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