Mariana Filgueiras (O Palma) entrevista o poeta e músico Adiel Luna sobre o sumiço do maracatu e outras manifestações e folguedos

Músico, poeta, violeiro, cordelista, “coquista” e mestre de maracatu de baque solto, Adiel Luna é um dos artistas pernambucanos mais dedicados à história da cultura do estado. Há cerca de 5 anos, começou a notar que muitos folguedos estavam desaparecendo. Adiel foi a campo pesquisar e chegou a tristes conclusões: muitos mestres dos folguedos tinham desistido de “brincar”, como se diz por lá, tanto por omissão do Estado quanto pelo fato de os seus mestres terem se convertido a religiões que não veem as manifestações culturais de elementos sagrados e profanos com bons olhos. Instigado, Adiel está buscando ajuda para não deixar que os “brinquedos” desapareçam — nem do estado, nem deste grande parque de diversões que é o Brasil.

Quando você começou a fazer esta pesquisa?
Em 2012, trabalhei na Secretaria de Cultura do Estado de Pernambuco e tive a oportunidade de conhecer mais intimamente as manifestações culturais da Mata Sul do estado — como o Guerreiro e o Samba de Matuto. Não há maracatus nesta região, à exceção de um único, em Vitória de Santo Antão. A manifestação é típica da Mata Norte e existem alguns grupos na região metropolitana do Recife. Mas foi há uns dois anos, quando fui convidado para participar do festival “Usina de Arte”, que acontece em Santa Terezinha, na parte sul do estado, numa usina desativada de cana de açúcar, que eu mergulhei de fato nesse universo, pois a comunidade local tinha deixado de brincar. Quis entender a razão.

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Adiel Luna – foto: Camila Leão

Por que você decidiu começar?
Nasci no ambiente da poesia popular. Minha avó era cantadeira de casa de farinha, meu pai e tios são cantadores de viola. Esse tema me fascina e é sob o qual me debruço profissional e afetivamente. Quanto mais eu conheço as nossas manifestações, mais entendo que elas possuem — além das suas particularidades específicas — fortes conexões entre si. E isso é muito instigante para mim: ver que a poesia de improviso do maracatu rural, do coco de roda ou do repente (manifestações da Mata Norte) dialogam profundamente com a poesia do Guerreiro, do Reisado e do Samba de Matuto (da Mata Sul).

Em Santa Terezinha eu vi que poderia atuar tanto colaborando com o festival — formando turmas de jovens e crianças e provocando a renovação dos brinquedos que existiram ali e que estavam sem atividade —, quanto obtendo um retorno riquíssimo de saberes e fazeres junto aos mestres que ainda moram por lá. Meu papel nessa engrenagem tem sido de fio condutor, de (re)conexão entre essas gerações. Porque as regiões de monocultura tendem a acabar com a cultura.

Como assim?
A monocultura reduz de forma rigorosa as experiências dos trabalhadores a ela associados: o peso da labuta, a sazonalidade do emprego, a escassez de oportunidades. Ela não é “poli”, é “mono” — já começa daí. Historicamente esses trabalhadores desempenharam um papel sofrido e restrito nesse processo. Na Mata Norte, as manifestações culturais que sobreviveram ao rolo compressor da indústria açucareira apresentam um lado cênico sarcástico e crítico a essa relação entre o empregador e seus empregados — quase como uma catarse dos brincantes. Se você prestar atenção, o Mamulengo e o Cavalo Marinho representam isso. É quando o trabalhador “dá o troco” no senhor, zomba dele — o que não pode ser feito na vida real, é interpretado na arte. Aliás, não somente há a inversão dos papéis de destaque entre patrão e trabalhador, mas também dos papéis do negro e do branco. Nesses brinquedos, o negro é o esperto e está sempre “dando uma volta” no branco. Era possível, por exemplo, o negro colocar o branco no tronco.

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Mestre Salustiano – foto: Geyson Magno

E na Mata Sul?
Foi diferente. Essa força não se manteve e a monocultura praticamente dizimou as manifestações da região. Onde há 50 anos havia coco de roda, repentistas, pastoris religiosos e profanos, hoje não se encontra mais nada ou quase nada. No máximo, histórias e memórias dos mais antigos (que são verdadeiros tesouros). A isso eu associo também uma omissão do Estado, que priorizou politicamente a Mata Norte em detrimento da Sul. O fluxo entre região metropolitana do Recife e cidades da Mata Norte era mais intenso do que entre os da Mata Sul — mais isolados geograficamente. Além disso, os municípios da Mata Norte souberam usar esse contexto cultural a seu favor e explorá-lo. A Mata Sul foi relegada e, portanto, atrofiada culturalmente.

E de que forma esse contexto cultural foi aproveitado?
Desde a década de 60 passam a existir movimentos culturais na capital que procuram beber dessa fonte (o Movimento de Cultura Popular, o Movimento Armorial e, posteriormente, o Manguebeat são exemplos). É neste período também que figuras como o Mestre Salustiano empenharam-se em pacificar e agregar os grupos de maracatu e de Cavalo Marinho, através das Associações. Esse esforço foi muito importante para transformar a maneira como o Estado enxergava os brinquedos populares — antes perseguidos administrativa e policialmente. Mestre Salu foi quem começou a fazer uma ponte entre o universo popular e figuras como Hermilo Borba Filho, Leda Alves e Ariano Suassuna. A abertura desse canal mudou essa relação. Dessas conexões surgiram frutos. É importante, no entanto, ressaltar aqui que não foi nem o Estado nem esses pesquisadores que respaldaram a cultura do brincante popular. A cultura do maracatu, do cavalo marinho, do mamulengo e de tantas outras manifestações existe independente e apesar desse universo da capital.

Como é, hoje, a relação entre o maracatu e a religião dos participantes?
As religiões praticadas dentro do Maracatu são substancialmente de origem negra e indígena (Candomblé, Umbanda, Catolicismo Popular e Jurema). A concepção do brinquedo é baseada em sincretismos e em rituais dessas fés: oferendas a orixás, mestres e caboclos; defumações; aguaceiros; resguardos sexuais e outras práticas. Geralmente cada grupo tem um padrinho ou madrinha espiritual que conduz os ritos, além dos guias espirituais encantados que orientam os brincantes. Consequência de anos de perseguição religiosa, alguns grupos têm vergonha e receio de falar abertamente sobre esse processo. Outros, não. O fato é que a brincadeira tradicional tem esse cenário religioso, mas nada impede que um folgazão se apresente no cortejo sem ser praticante dessas fés. Conheço emboladores evangélicos e grupos de igreja que tocam Baque Virado… O poeta improvisador vai agregar ao verso dele o que ele acredita e não mais loas do candomblé. É necessário que haja minimamente uma abertura para entender essa adaptação. Já vi acontecer, mas pouquíssimo. No levantamento, soube de pelo menos quatro brinquedos de Samba de Matuto que não aconteciam mais porque seus mestres haviam se convertido a religiões que não aprovavam a brincadeira tradicional.

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Adiel Luna – foto: Eric Gomes

Qual a gravidade, para você, do fim desses folguedos em determinada região?
Eu acredito que é impossível o maracatu se acabar aonde ele existe. Se você passar pelas cidades da Mata Norte vai escutar em quase toda esquina alguma referência à manifestação. É impressionante como se trata de uma cultura viva, pulsante e atual. A quantidade de criança fazendo manobra e arriscando verso denuncia esse entranhamento. Quanto ao fim dos outros folguedos, como o Samba de Matuto na Mata Sul, é uma possibilidade concreta. Hoje existe somente um único grupo em atividade em Pernambuco e outro em Alagoas. Esses grupos acabando, acaba de vez a manifestação e some todo o conjunto de uma tradição. Ao longo da História, várias expressões desapareceram, modificaram-se, adaptaram-se ou deram vez a outras práticas… Acontece que na contemporaneidade esse processo de extinção das práticas populares que têm origens negras, indígenas e de outros grupos “marginalizados” vem se tornando mais assustador e veloz. E a homogeneização da cultura pode ser algo muito perigoso porque você destrói os vestígios e testemunhos de grupos sociais que também contribuíram diretamente com a formação da nossa sociedade. A preocupação em preservar essas vozes é uma tentativa de equilibrar essa balança e garantir uma construção mais democrática e inclusiva.

Acabando esse tipo de manifestação, finda uma maneira de se deixar a história contada?
A maneira de contar a nossa história sofre mais um golpe, definitivamente. E sobretudo pelo o que apontei acima: uma parte importante e significativa da nossa memória se perde.

Fonte: Originalmente publicado em O Palma, em 17 janeiro de 2017.







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