A travessia da existência não se dá com passos certos sobre solo firme. Dá-se com hesitações que desafiam o sujeito em sua inteireza. Os caminhos não são contínuos nem benevolentes. Muitas vezes, impõem a necessidade de um recolhimento ético, de um silêncio metodológico, onde se elabora o gesto de continuar. Há dias em que o mundo social, com suas exigências e violências simbólicas, impõe um cansaço que não se explica senão pelas estruturas que operam sobre os corpos e os afetos. Persistir, nesses dias, não é otimismo. É práxis cotidiana de resistência diante da banalidade do sofrimento.
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As estruturas do cotidiano, com seus ritmos acelerados, suas cobranças ininterruptas, suas máscaras de produtividade, frequentemente nos empurram ao colapso. A sociabilidade se fragiliza e o sujeito moderno experimenta, em si, a tensão entre o desejo de abandono e a imperiosa necessidade de permanecer. Os conflitos internos não são apenas dramas individuais; são expressões vivas da luta entre o campo das determinações sociais e o campo da autonomia. O que se chama resiliência, muitas vezes, é apenas o nome delicado da violência introjetada como norma.
A força, nesse contexto, não é monumental. É artesanal. Forja-se no entrelaçar das derrotas silenciosas e dos micro-recomeços que escapam às estatísticas e aos olhares apressados. Essa força é o que a sociologia dos afetos poderia chamar de “capacidade de recomposição da identidade ferida”. Esse movimento quase invisível de reconstrução do eu diante da fragmentação cotidiana. Não se trata de heroísmo. Trata-se da ética do possível: aceitar o incontrolável e encontrar, ainda assim, a delicadeza do gesto que resiste.
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Viver exige dureza, sim. Mas também exige uma habilidade quase poética de manter a ternura em meio ao concreto. As normas sociais exigem performances de vigor, de invulnerabilidade. Mas o que humaniza, o que nos preserva, é a suspensão provisória dessa dureza em nome de um afeto partilhável. Há uma pedagogia na leveza. Ela ensina que não se pode sobreviver apenas no imperativo da força. O que nos salva, frequentemente, são os desvios, os intervalos de doçura, os pequenos colapsos acolhidos com humanidade.
Essa leveza, portanto, não é fuga da realidade. É forma sofisticada de enfrentá-la. Ela emerge como gesto político. Manter viva a possibilidade do cuidado em um mundo saturado de competição e desumanização. A leveza é crítica: silenciosa, mas radical. Ao modelo hegemônico de sujeito que precisa ser eficaz, veloz, eficiente. Ela denuncia, por sua mera existência, a falência dessa lógica. E insinua, no interstício, a possibilidade de outras formas de viver o tempo, o afeto e a presença.
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Viver, no limite, é realizar a síntese entre a gravidade e o voo. É o que o pensamento sociológico entende como dialética da existência. O constante conflito entre estrutura e agência, entre opressão e liberdade, entre condição e possibilidade. Persistir é ato estético e político. É performar, dia após dia, a escolha de não se perder no automatismo dos dias. É buscar, mesmo que entre ruínas, a beleza que insiste, a esperança que ressurge, a humanidade que sobrevive. Com seus silêncios, suas fragilidades e sua ternura insurgente.
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Paulo Baía* em 14 de junho de 2025 em Cabo Frio/RJ
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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