Juleez Julie Borden - music
A música, mais do que arte, é sustento invisível da vida cotidiana. Penetra os poros da existência e se aloja silenciosamente onde a linguagem já não alcança. Com uma nota, um acorde, um arranjo, ela reconfigura o mundo interior e colore de sentidos aquilo que antes era apenas paisagem. É capaz de interromper o fluxo áspero do dia com a suavidade de um instante suspenso. Um instante que, embora breve, carrega a eternidade das emoções que o habita. A música nos devolve a nós mesmos, mas de uma forma recriada, repensada, renascida.
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Há algo profundamente sociológico no ato de ouvir música: trata-se de uma forma de socialização íntima e coletiva ao mesmo tempo. Quando uma melodia nos alcança, ela também nos conecta a um grupo, a uma época, a uma memória partilhada. É por isso que tantas músicas se tornam trilhas de histórias pessoais e coletivas. Ao tocar uma canção antiga, revivemos a juventude, os amores, os medos, os cheiros e os silêncios de outros tempos. A música é um elo entre sujeitos e suas biografias, entre gerações, entre mundos. Ela é testemunha sensível daquilo que fomos, do que somos e do que ainda desejamos ser.
Mas a música não é apenas memória. Ela é invenção do presente. Quando se ergue no ar, inventa um tempo novo, fundado na emoção que provoca. Nela, a experiência do agora ganha densidade e espessura. Ela produz um presente mais espesso que o real, pois contém passados e desejos embarcados em sua tessitura. Ao escutá-la, o mundo muda de forma. O olhar desacelera, o corpo responde, a alma se aquece. A música não apenas reflete a realidade. Ela a modifica.
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E ainda assim, sua força mais bonita talvez seja o acolhimento. Há uma ternura secreta em uma canção que nos alcança quando estamos tristes, confusos ou solitários. A música se oferece como abrigo, como uma casa possível em meio ao desamparo. Como se dissesse, sem palavras, que não estamos sós. É oração que não precisa de credo. É presença invisível que toca, envolve e protege. Há nela uma espiritualidade laica e poderosa, como se fosse benção antiga, gesto de cuidado, sopro divino nos tímpanos da existência. Uma oração laica, sim, mas também uma oração Beneditina, com sua profundidade na alma, com sua delicadeza austera, sua ética do silêncio, sua mística do essencial. Ela é silêncio que fala e som que ora.
Nos momentos mais duros da vida, a música é coragem. Não apenas consolo, mas impulso. Quantos já não encontraram força em uma canção, em uma letra que parecia escrita sob medida para os seus abismos? Há canções que são pontes. Outras, escadas. Algumas, chaves. A música é uma forma de resistência contra o silêncio que esmaga, contra a pressa que aliena, contra o medo que paralisa. Por isso, quando tudo desaba, ainda há quem coloque um fone de ouvido, feche os olhos e escute. E então levante.
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A música nos transforma porque transforma o tempo. É lembrança que projeta futuro, é sonho que organiza o caos. Ao nos fazer escutar, ela nos ensina também a sentir com mais profundidade, a imaginar com mais generosidade, a viver com mais intensidade. É estética e ética ao mesmo tempo. Não apenas decora os dias: ela os redimensiona. É por isso que, mesmo sem sabermos como ou por quê, seguimos buscando aquela canção que nos complete, aquela melodia que nos explique, aquele som que nos devolva, mesmo que por instantes, ao sentido de estar vivos. Porque ali, entre o início e o fim de uma música, habita uma centelha de eternidade.
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[17 de junho de 2025 em Cabo Frio/RJ]
* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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