Em passagem pelo Brasil, historiador inglês defendeu o combate à desinformação e define o papel do intelectual hoje: ‘chocar com ideias novas’
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por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo
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Por mais de duas décadas, o historiador britânico Peter Burke, de 87 anos, investigou a origem do conhecimento e escreveu livros incontornáveis sobre o assunto, como “O polímata: uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag”. Até que enveredou pela agnotologia — neologismo que descreve o estudo da ignorância.
Em 2023, lançou “Ignorância”, no qual analisa os impactos da “ausência de conhecimento” nos mais diversos campos: da política à ciência, da religião aos negócios. Como epígrafe, o professor da Universidade de Cambridge escolheu uma frase do político brasileiro Leonel Brizola (1922-2004): “A educação não é cara. Cara mesmo é a ignorância.” E há vários exemplos de ignorância brasileira no livro: da destruição das florestas para plantar soja a políticos que não sabem o preço do pão. Sobre Jair Bolsonaro, o inglês escreve: “Sofre de ignorância em sua forma aguda, a de nem mesmo saber que ele nada sabe.”
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Burke conhece bem o Brasil. É casado com Maria Lúcia Pallares, também historiadora e professora de Cambridge, com quem escreveu um livro sobre o sociólogo Gilberto Freyre. Há quatro décadas, ele vem duas vezes por ano ao país. De passagem por São Paulo, conversou com o GLOBO sobre o que aprendeu por aqui, o combate à desinformação, o papel do intelectual e as suas próprias ignorâncias.

Por que estudar a ignorância?
Por mais de 20 anos, estudei a história do conhecimento. Quando você passa muito tempo trabalhando o mesmo assunto, é fácil estagnar. Procurando uma nova abordagem, virei o problema de ponta-cabeça e me desafiei a escrever uma história da ignorância. Defino a ignorância como ausência de conhecimento, o que me trouxe problemas metodológicos. Como escrever a trajetória de uma ausência?
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Um ditado diz que “saber é poder”. E a ignorância?
A ignorância dos que detêm o poder é perigosa por si só — e a do povo pode piorar as coisas. A ignorância fortalece regimes autoritários e enfraquece a democracia. Sem saber o suficiente sobre os problemas do país ou o que diferencia os partidos políticos, o eleitor pode fazer escolhas imprudentes e se arrepender depois.
Considerar adversários políticos ignorantes — como já foi dito tanto de eleitores de Lula quanto de Bolsonaro — mais atrapalha que ajuda?
É um perigo, com certeza. Por exemplo: supor que os eleitores de Trump sejam ignorantes não explica nada. Trump se apresenta como um homem do povo, que usa boné de beisebol, gosta de hambúrguer e vai reindustrializar o país. Muitos o veem como representante de seus interesses. Todos tendemos a votar segundo nossos interesses. Intelectuais têm o hábito de dizer que as pessoas fazem escolhas irracionais. É como desprezar quem consome um produto que você não acha bom.
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O senhor está na ativa há mais de cinco décadas. Viu o papel do intelectual mudar?
Desde sempre espera-se que um intelectual choque as pessoas. Agora, mais gente quer interpretar esse papel, mesmo sem qualificações. Não basta só chocar, é preciso apresentar novas ideias.
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Antes visto como “ignorância”, o conhecimento de povos não europeus tem ganhado espaço na academia. Como vê isso?
Gosto de falar em conhecimentos, no plural, para incluir diferentes culturas, conhecimentos acadêmicos e não acadêmicos. Admitir que quem é diferente tem tanto conhecimento quanto nós é uma lição de humildade para todos, não só para os intelectuais. É problemático alguém que sabe sobre uma coisa específica querer julgar outros tipos de conhecimentos.
A ignorância pode ser produzida?
Sociólogos usam a expressão “produção da ignorância”. Concordo com o conceito, mas não com o exemplo que dão para explicá-lo, que é o das empresas de tabaco que escondiam a relação entre cigarro e câncer. Como o público não sabia dessa relação, prefiro dizer que ele foi mantido na ignorância. Há séculos se discute como as elites mantiveram os trabalhadores ignorantes. O protofeminismo do século XVII falava sobre como os homens mantinham as mulheres ignorantes para controlá-las. Governos fazem isso ainda hoje.
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Quais são as raízes históricas das fake news?
É a expressão deste século, mas as fake news existem desde que os homens aprenderam a falar. Na Grécia Antiga já se debatia se Heródoto era um historiador confiável. O que mudou foram os meios usados para divulgar notícias falsas, como as redes sociais, que espalham mentiras mundo afora com velocidade nunca vista.
Como combater o problema?
A proliferação de mentiras sempre foi combatida com os mesmos meios que as espalhavam. Hoje, é preciso enfrentar as falsas notícias nas próprias redes sociais. A luta é sem fim.
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Como usar as redes sociais para combater fake news se os algoritmos parecem privilegiá-las?
Os governos devem pressionar as plataformas para checarem os fatos, suspenderem contas de quem espalha fake news e puni-las se não fizerem isso. A longo prazo, o remédio está na educação, no pensamento crítico treinado desde cedo. Sempre que recebemos uma mensagem, precisamos perguntar quem a está enviando e com qual interesse.
Como exemplo de ignorância nos negócios você cita a destruição das florestas brasileiras para plantar soja. Agora, o governo quer explorar petróleo na Foz do Amazonas. Como combater a ignorância que destrói o meio ambiente?
Isso não é simples ignorância, é escolher não saber, é um tipo de negacionismo muito comum na História. Quando vim pela primeira vez ao Brasil, em 1986, me surpreendeu a falta de interesse geral pelo meio ambiente. Isso, é claro, mudou dramaticamente. Hoje há um grupo muito consciente da situação tentando acabar com a destruição e um outro que finge não saber nada e segue destruindo. Os mais velhos podem se dar ao luxo de fingir porque não vão viver as consequências. Quem vai pagar pelos erros deles são as novas gerações.
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Como o Brasil o influenciou?
Vejo o Brasil com olhos ingleses e passei a ver a Inglaterra com olhos brasileiros. Os ingleses são melhores na vida pública, onde há menos corrupção, mas os brasileiros são melhores na vida privada. Não temos o mesmo sentido de família que vocês. Aqui, há muita injustiça, mas as relações pessoais entre diferentes raças e classes sociais são mais fáceis. Na falta de igualdade, há mais fraternidade.
Acreditou que a internet pudesse ser uma arma contra a ignorância?
Sou uma pessoa tecnologicamente ignorante, só comecei a mandar e-mail no ano 2000 e preferia ter seguido com os meios de comunicação que eu conhecia. Cada novo meio de comunicação vem com a promessa de um futuro maravilhoso. Muito desse futuro não acontece. Em certa medida, acontece o contrário quando grupos tomam o controle desse novo meio.
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O senhor cita C.S. Lewis no livro: “Talvez cada novo conhecimento crie um lugar para si mesmo dando origem a uma nova ignorância”…
O conhecimento que temos como Humanidade aumentou, mas em nível individual, não. No meu tempo, uma pessoa de classe média tinha um conhecimento razoável sobre Antiguidade Clássica. Hoje, se menciono Virgílio num livro, preciso dizer que se trata de um poeta romano. Num mundo altamente especializado, aprendemos sempre à custa daquilo que deixamos de aprender. Como disse Mark Twain: “Somos todos ignorantes, só que sobre coisas diferentes.”
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O senhor é ignorante sobre o quê?
Tanta coisa! Nunca aprendi a dirigir, nem a andar de bicicleta. Não sei consertar nada elétrico, sei pouco sobre ciências naturais… Tive que fazer escolhas. Espero ter escolhido bem.
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* Originalmente publicado em O Globo.