Sabe o que precisamos agora, Zé? De metáforas. Precisamos desesperadamente de metáforas. Ficamos literais demais, meu amigo, perdemos as nuances. Nada mais perigoso que a perda de nuances. É como a perda de uma delicadeza. Ficamos concretos, duros, rígidos. Impenetráveis. Eu nunca soube ser rígida, Zé. Olha esse copo, olha bem esse copo, ele tem tão pouco sentido se for só um copo. Mas eu vejo através do copo, então ele também é uma lente, e que lente turva, ou a cerveja é turva, ou sou eu que sou turva, acho que sou eu. O que eu quero dizer é que quando as palavras se tornam proibidas precisamos inventar outras. A gente presta atenção demais às palavras e pouco ao sentido. O sentido está nas metáforas. E por isso que nunca pode ser proibido. Eu agora vou mudar o sentido do copo para aquela árvore e vou beber árvore o que vai ser engraçado mas não vai me impedir de ficar bêbada. A gente se apegou tanto às palavras e agora nada faz sentido. Eu sinto que já disse tudo isso antes, mas de outro jeito, deve ser por isso que você não lembra. Você nunca prestou muita atenção mesmo. Você gosta demais de palavras. E de coisas concretas. As palavras estão entre as coisas concretas para mim. Ao menos do jeito que você fala. É tudo duro. É um grande isso, um grande aquilo. Mas e agora, você também não pode nem falar mais as suas palavras. Do que adiantou ser tão rígido. Agora você vai ter que se render às minhas metáforas, Zé. Ou ficar calado. Mas ficar calado sufoca. Não fique não. Vamos falar do copo. Larga, deixa eu pegar o copo. Tá meio cheio? Tá meio vazio? Quanta filosofia barata. O que importa é que quando eu olho da metade cheia eu te vejo de um jeito e da metade vazia eu te vejo de outro. Você nunca quis encher o copo de verdade né? Eu achei que você queria, mas você não encheu. Você tentou. Você tentou? Se eu te olho da metade cheia eu diria que…. Não, não balança a mesa, não parece que tá mais cheio porque você balançou. Só tem espuma. Odeio espuma. Me empresta o copo, deixa eu tentar uma coisa. Para de me explicar a consistência do vidro. Eu não preciso entender isso agora. Eu sei que que ele foi feito pro corte. Ai, olha, a gente quebrou o copo, Zé, a gente quebrou o copo. E esse sangue no vidro, ele é a única coisa que não é metáfora. Ele é meu. Ele é sangue. Por que sangue é tão literal, Zé? A gente afia palavras, a gente afia sentidos. mas o corte é sempre na carne. Eu sei que eu devia estar fazendo um poema disso tudo, mas eu só consigo fazer poemas que vejam e eu não tô vendo nada. Está tudo tão embaralhado. Eu nem consigo te ver direito, você tá embaralhado, você tá se vendo? Você tá me vendo? Eu tô tão perdida. Mas eu acredito nas metáforas. E ainda um pouquinho em você. E bastante em mim. Mas eu só te vejo com poemas.

É isso, Zé, precisamos de poemas como óculos. E de mais um copo.

* Mariana Imbelloni Braga, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em História pela UFF, em Direito pela PUC-Rio e mestranda em Direito pela PUC-Rio, dedica-se desde 2009 aos estudos de gênero nas duas áreas.

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