Cada alma dança no seu ritmo. Michel Misse dançava todos. Não havia fronteira entre o compasso da ciência e o balanço do samba, entre o rigor da teoria e a suavidade da roda de choro. Ele dançava na vida como quem compreende que cada instante é um salão aberto, um convite a mover-se entre mundos distintos. Sua trajetória foi a prova de que o cotidiano pode ser ao mesmo tempo tese e improviso, sala de aula e avenida, conferência e bloco de carnaval.
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Como jogador no Primavera Clube de Bola, corria leve, com o olhar de quem vê no passe a promessa de um gol e no gol o início de outra partida. O campo, para ele, era como uma sala de aula a céu aberto. Mais tarde, como ritmista e cantor no Cantinho da Fofoca em Botafogo, tocava e cantava nas Feijoadas da Portela, na Quadra da Mangueira, no Bloco do Clube do Samba de João Nogueira. Vivia em bares, festas, passeatas, manifestações. Entre uma batida de pandeiro e outra, mergulhava nas pesquisas de campo, dialogava com atores sociais, desmontava e reconstruía teorias sociológicas, antropológicas e políticas.
Era um inventor de cotidianos e de grandes teses. Um intelectual público de elegância rara, que transitava com o mesmo tom, cordial e firme, nos salões das universidades, nas praças públicas, nos sindicatos, nas favelas, nas periferias do Brasil. Sua presença não se limitava a observar, ele participava, ajudava a construir, oferecia caminhos e alternativas. Nas universidades e nos blocos, nas marchas alegres e nas salas de reunião, sua figura combinava escuta e ação, erudição e calor humano.
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Concentrou sua vida na UFRJ e no IFCS, onde foi um dos principais reconstrutores da área de Ciências Sociais. Reconstruiu não com tijolos, mas com diálogo, perguntas afiadas, rigor de método e generosidade de pensamento. Criou pontes entre o erudito e o popular, entre o quadro negro e o passo de dança, entre o artigo acadêmico e a conversa de botequim.
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A vida de Michel foi uma composição exagerada de conexões e afetos. E só o exagero dá conta de quem conseguia dançar todos os ritmos. Só o exagero explica a generosidade que sustentava seus gestos, a naturalidade com que se movia entre a sociologia e o samba. No campo da ciência, na quadra da escola, na tribuna acadêmica ou no bloco de carnaval, estava sempre pronto para responder com alegria, afeto e curiosidade.
Nos encontros acadêmicos, conduzia as discussões com elegância. Não se impunha pela cátedra, mas pela presença. Falava para todos como quem conversa com um amigo próximo, seja no salão nobre, seja na rua. Era milagre e revolução, dança e pensamento, teoria e afeto. Estar ao seu lado era aprender que a sociologia pode ser festa, a antropologia pode ser dança, a filosofia pode ser samba, a história pode ser roda de conversa e a política pode ser roda de sambistas.
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Michel Misse nasceu em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, filho de imigrantes libaneses. Chegou ao Rio de Janeiro adolescente, em 1967, trazendo nos olhos a inquietude de quem sabe que a vida não se limita às fronteiras da cidade natal. Na UFRJ, formou-se em Ciências Sociais em 1974. Ali encontrou seu campo de jogo definitivo, um campo onde a bola era o pensamento, o passe era a pergunta e o gol era a resposta que abria outras questões.
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Foi mestre e doutor em Sociologia pelo IUPERJ, professor titular da UFRJ por quatro décadas, vice-diretor e diretor do IFCS, chefe do Departamento de Sociologia, também do Departamento de Ciências Sociais. Fundou e dirigiu o Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana, o NECVU, laboratório de ideias e estatísticas, de etnografia e análise, de dados e interpretações que ajudaram a iluminar as zonas de sombra da vida urbana. Sua pesquisa se fez tanto nos arquivos quanto nas ruas, nas delegacias, nos tribunais, nas comunidades.
Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas, Professor Visitante na Universidade de Lille. Recebeu o título de Pesquisador 1-B do CNPq, foi Cientista do Nosso Estado pela FAPERJ. Orientou mestrados, doutorados e pós-doutorados, formando gerações de pesquisadores. Era desses orientadores que não apenas corrigem textos, mas oferecem visões inteiras de mundo.
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Entre seus livros e artigos, despontam Malandros, marginais e vagabundos, Crime e violência no Brasil contemporâneo, O inquérito policial no Brasil. Obras que atravessaram departamentos, quebraram fronteiras disciplinares, influenciaram políticas públicas, dialogaram com o jornalismo, com a justiça, com a sociedade civil. Sua voz aparecia nas entrevistas e debates públicos com a mesma limpidez com que surgia na banca de defesa de um estudante.
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Mas sua biografia não se sustenta apenas no currículo. Ela pulsa na roda de samba, no tamborim, na cerveja gelada compartilhada, na gargalhada solta, na marcha alegre do carnaval carioca. Ele era catedrático nos corredores acadêmicos e também nas rodas de choro. Dançava com naturalidade a coreografia de quem sabe que pensar não exclui celebrar e que celebrar é também uma forma de pensar.
E havia nele uma arte rara, a de escutar profundamente. Nas reuniões do NECVU, nas assembleias da universidade, nos corredores do IFCS, nas esquinas do Rio, ele ouvia antes de falar. Quando falava, não oferecia respostas prontas, mas abria caminhos. Tinha a coragem de dizer “não sei” e, logo depois, a determinação de buscar junto a resposta.
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Nos blocos de carnaval, era presença segura. No Cantinho da Fofoca, na Portela, na Mangueira, nos bares de Botafogo ou no Centro, sua figura unia mundos. Era amigo de sambistas e de juízes, de jovens militantes e de professores eméritos, de jornalistas e de vendedores ambulantes. Com todos falava no mesmo tom, humano, próximo, claro.
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Na UFRJ, Michel Misse não apenas ensinou Sociologia, reinventou o sentido de estar em uma universidade pública. Fez do IFCS uma usina de debates vivos, em que a teoria se encontrava com a prática e a rua se tornava extensão natural da sala de aula. Sua ideia de ensino era inseparável da ideia de cidadania. Formar um estudante significava formá-lo para intervir no mundo, para entender a violência urbana, para decifrar o poder, para reconhecer as múltiplas vozes que compõem a cidade.
Sua sala de aula era território de pensamento e afeto. Ali se discutiam Bourdieu, Foucault, Goffman, mas também Cartola, João Nogueira e Candeia. Ali se analisava o inquérito policial e também o batuque da avenida. Não havia hierarquia que não pudesse ser questionada, nem silêncio que não pudesse ser preenchido por uma pergunta certeira. Michel acreditava que a sociologia tinha de ser útil, concreta e, ao mesmo tempo, aberta às perguntas que não têm resposta imediata.
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Como pesquisador, foi pioneiro ao formular o conceito de “mercados ilegais” no Brasil, mostrando como eles se estruturam, se relacionam com o Estado e se mantêm com o tempo. Ao lado disso, desenvolveu a noção de “acumulação social da violência”, desvendando as engrenagens pelas quais a violência se sedimenta na vida das pessoas e nas instituições. Essas ideias, discutidas em congressos, seminários e livros, ultrapassaram a academia e influenciaram políticas públicas e debates legislativos.
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Mesmo assim, jamais se deixou enclausurar pelo prestígio acadêmico. Sua vaidade era outra, ver um aluno encontrar sua própria voz, ver uma pesquisa de campo revelar algo novo, ver uma conversa na rua abrir uma pista de investigação. Não perdia a curiosidade, mesmo diante dos temas mais duros. Nem o encanto, mesmo diante das dores mais profundas.
Era também um criador de laços. Participava com entusiasmo das bandas e blocos de carnaval, Simpatia é Quase Amor, Banda de Ipanema, Maracangalha, como se cada cortejo fosse também um seminário, como se cada canção fosse um capítulo de livro ainda por escrever. Nas rodas de conversa ou de samba, transitava entre o anedótico e o analítico com a mesma maestria.
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Quando a doença o alcançou, não perdeu a delicadeza nem a disposição de estar com os outros. Partiu em agosto de 2025, deixando companheira, filhos, netos, amigos, alunos e colegas. Mas sobretudo deixando um modo de viver que não cabe nas linhas de um currículo, viver como quem dança todos os ritmos.
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Sua memória não é apenas lembrança, é presença. Está nas páginas dos livros, nas vozes dos ex-alunos, nos corredores do IFCS, nos becos e praças do Rio, nas estatísticas que ajudam a compreender o crime, nas letras de samba que celebram a vida. Michel Misse permanece na cidade como permanece naqueles que tiveram o privilégio de conhecê-lo, na escuta atenta, no riso aberto, no gesto generoso, na pergunta que move e no passo que convida.
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Cada alma dança no seu ritmo. Michel Misse dançava todos. E ensinou a muitos que dançar todos os ritmos é também uma forma de pensar, de viver e de transformar.
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* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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