Fruto da parceria da Biscoito Fino com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – Osesp, uma série de álbuns originalmente lançados em formato físico (CD) chegará às plataformas digitais, até o final do ano.
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O primeiro grupo de cinco álbuns lançado nas plataformas de música reúne obras do alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827), entre elas, a icônica ‘Nona Sinfonia’, em registros gravados na Sala São Paulo (SP), entre os anos de 2000 e 2008. Estas foram as primeiras gravações realizadas pela “nova Osesp”, visto que a Orquestra havia passado por uma grande renovação a partir de 1997, que culminou na inauguração de sua nova sede, a Sala São Paulo, em julho de 1999.
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O projeto de reestruturação do conjunto foi um desafio que envolveu várias ações: a renovação da Orquestra, a promoção de concursos para novos músicos, a conquista da sede própria, a realização de gravações e a estruturação de diversas iniciativas que pretendiam posicionar a Osesp junto às melhores orquestras do mundo. Nada mais lógico, então, do que começar com obras de um cânone da música clássica, que expandiu as estruturas musicais tradicionais e elevou a música de concerto a um novo nível de expressão, e cujas composições exploram uma vasta gama de emoções, da alegria à tristeza, da luta à vitória.
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As gravações reunidas nos volumes que chegam agora às plataformas digitais trazem a Osesp regida por três maestros. O primeiro deles é o carioca John Neschling, figura responsável pelo “renascimento” da Orquestra e que atuou como Diretor Artístico e Regente Titular da Osesp entre 1997 e 2009 — é ele quem está à frente de quase todas as Sinfonias de Beethoven. O segundo é o paulistano Roberto Minczuk,

Sobre a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – Osesp
Desde seu primeiro concerto, em 1954, a Osesp se tornou parte indissociável da cultura paulista e brasileira, promovendo transformações culturais e sociais profundas. A cada ano, a Orquestra realiza em média 130 concertos para aproximadamente 150 mil pessoas. Thierry Fischer tornou-se Diretor Musical e Regente Titular em 2020, tendo sido precedido, de 2012 a 2019, por Marin Alsop. Seus antecessores foram Yan Pascal Tortelier (2009-2011), John Neschling (1997-2009), Eleazar de Carvalho, Bruno Roccella e Souza Lima. Além da Orquestra, há um coro profissional, grupos de câmara, uma editora de partituras e uma vibrante plataforma educacional. A Osesp já realizou turnês em diversos estados do Brasil e também pela América Latina, Estados Unidos, Europa e China, se apresentando em alguns dos mais importantes festivais da música clássica mundial, como o BBC Proms, e em salas de concerto como o Concertgebouw de Amsterdam, a Philharmonie de Berlim e o Carnegie Hall, em Nova York. Mantém, desde 2008, o projeto “Osesp Itinerante”, promovendo concertos, oficinas e cursos de apreciação musical pelo interior do estado de São Paulo. É administrada pela Fundação Osesp, uma Organização Social de Cultura, desde 2005.

EIS, OS 5 ÁLBUNS:
- Osesp – Ludwig van Beethoven – Sinfonia nº 3 em Mi Bemol Maior, Op. 55 – Eroica / Rei Estêvão, Op. 117: Abertura (2011)
- Osesp – Ludwig van Beethoven – Sinfonia nº 5 em Dó Menor, Op. 67 / Sinfonia nº 7 em Lá Maior, Op. 92 (2006)
- Osesp – Ludwig van Beethoven – Abertura Coriolano, Op. 62 / Sinfonia nº 1 em Dó Maior, Op. 21 / Sinfonia nº 4 em Si Bemol Maior, Op. 60 (2005)
- Osesp – Ludwig van Beethoven – Abertura Egmont, Op. 84 / Sinfonia nº 2 em Ré Maior, Op. 36 / Sinfonia nº 8 em Fá Maior, Op. 93 (2005)
- Osesp – Ludwig van Beethoven – Sinfonia nº 9 em Ré Menor, Op. 125 (2005)

Disco ‘Beethoven – Sinfonia nº 3 – Eroica / Rei Estevão: abertura • Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) • Selo Biscoito Fino • 2011/2025
Música/ compositor
Ludwig van Beethoven (1770-1827)
John Neschling – regente
Sinfonia nº 3 em Mi Bemol Maior, Op.55 – Eroica
1. Allegro con brio [16’08”] BR-PUI-10-00886
2. Marcha fúnebre – adagio assai [14’57”] BR-PUI-10-00887
3. Scherzo: allegro vivace [05’36”] BR-PUI-10-00888
4. Allegro molto [10’48”] BR-PUI
Ludwig van Beethoven (1770-1827)
Yan Pascal Tortelier – regente
– Rei Estêvão, Op.117: Abertura [07’03”] BR-PUI-10-00890
– ficha técnica –
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo | Sinfonia nº 3 – Eroica – Regente: John Neschling; Spalla: Emmanuele Baldini | Rei Estêvão, Op.117: Abertura – Regente: Yan Pascal Tortelier; Spalla: Cláudio Cruz | Produtor de gravação, mixagem, edição e masterização: Ulrich Schneider | Assistentes de gravação: Maria Rosa Cangelle Lopes e Luciana Souza Campos (Tukasom), Daniel Andozia e Mauro Santiago Gois | Texto de encarte: Rodolfo Coelho de Souza | Editor: Manuel da Costa Pinto | Tradução: Izabel Murat Burbridge | Capa/arte: Sérgio Fingermann, Sem-Título, 2005 (Óleo sobre tela, 180 x 180 cm) | Gravado em março de 2008 (Sinfonia nº 3 – Eroica), e novembro de 2009 (Rei Estêvão: Abertura) na Sala São Paulo | Assessoria de imprensa Fundação Osesp: Fabio Rigobelo e Pedro Fuini | Uma realização Biscoito Fino 2011 – Direção geral: Kati Almeida Braga; Direção artística: Olivia Hime; Coordenação de projetos: Joana Hime; Produção: Maiara de Paula e Raquel Deleuse; Adaptação de arte: Eduardo Moreira; Assessoria de imprensa: Belinha Almendra / Coringa Comunicação | Selo: Biscoito Fino ‘clássicos’ | Formato: CD físico (2011) / digital (2025) | Lançamento digital: 31 de julho 2025 | ♪Ouça o álbum: clique aqui.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – SINFONIA Nº 3 EM MI BEMOL MAIOR, OP.55 – EROICA
— por Rodolfo Coelho de Souza —
Parte do público aceita, sem pestanejar, o pressuposto de que existe uma conexão inexorável entre o estado de alma do compositor, revelado por sua biografia, e a obra produzida em determinado momento existencial. Muitas vezes isso está longe de ser verdade. Há casos exemplares, como o de um concerto de esfuziante alegria escrito por Mozart na mesma semana em que, imerso em sentimento de luto, relata em carta ao pai o falecimento de sua mãe, que o acompanhava numa viagem. Como nasceu tal concepção? Desde a Antiguidade grega, teorizou-se repetidamente sobre a conexão entre a música e as emoções humanas. Mas essas teorias davam conta primordialmente da recepção da música, isto é, do efeito provocado sobre os ouvintes. A hipótese de que a música seria capaz de transmitir, com fidelidade, o estado de alma do compositor no momento da criação só foi advogada pelo Romantismo, a partir do pressuposto da subjetividade defendida pela estética do movimento. Sob quase todos os pontos de vista, a música de Beethoven partilha os ideais do Classicismo vienense. Entretanto, intencionalmente ou não, Beethoven acabou sendo o principal responsável pela sedimentação do mito da subjetividade do discurso musical, e por isso foi considerado por diversos musicólogos como o iniciador do Romantismo na música. O momento chave dessa construção ideológica, arquitetada pela posteridade, coincide com a composição da Terceira Sinfonia. Em 1802, Beethoven atravessou uma profunda crise pessoal. Os indícios de surdez incurável e progressiva começavam a se avolumar. Todo o projeto de vida do compositor, comprometido então pela deficiência auditiva, parecia desmanchar-se sob seus pés, colocando em risco a reputação conquistada em Viena. Quem em seu tempo poderia conceber um pintor cego ou um músico surdo? Em desespero, Beethoven teria cogitado cometer suicídio. Pelo menos foi isso que os primeiros biógrafos concluíram a partir de uma carta deixada pelo compositor, alcunhada de Testamento de Heiligenstadt, em homenagem à cidade em que a escreveu. Nessa carta, destinada a seus irmãos, Beethoven relata o drama vivido naqueles anos. O testemunho culmina com a decisão de se afastar do convívio social para ocultar a surdez. Todavia, análises recentes do documento dão conta de um possível jogo de cena de Beethoven para a posteridade. Por que a suposta carta nunca foi enviada e permaneceu entre os papéis encontrados após sua morte? Por que aquele manuscrito parece passado a limpo, trazendo poucas rasuras e uma caligrafia sem os costumeiros desleixos? Por que espaços em branco são deixados onde deveria figurar o nome de um dos irmãos? O musicólogo Claus Canisius acredita ter decifrado o enigma ao identificar que certas passagens do Testamento são paráfrases de trechos do Werther, de Goethe, romance publicado em 1774, no qual o personagem central comete suicídio. Como escreveu Fernando Pessoa, “o poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente.” A Sinfonia Eroica foi composta ao longo de 1803, ano seguinte, portanto, ao do Testamento. Qual seria o sentido de subjetividade transmitido por ela? Ora, a despeito de uma expressividade invulgar, certos aspectos da Eroica parecem intrigantemente antissubjetivos, caracterizando-a como um primor de ousadia formal e arquitetura musical objetiva. Se o drama pessoal de Beethoven de fato implicou uma depressão capaz de conduzi-lo ao suicídio, somente a marcha fúnebre do segundo movimento parece dar conta desse sentimento, ainda assim estilizado e em perfeita sintonia com as convenções de época para o gênero elegíaco. Em última instância, portanto, o sentido a ser interpretado é o de uma subjetividade reativa: aparentemente vergado pela tragédia, o herói não se entrega, mas reage pela sua força de vontade para superar o próprio destino. Nessa equação, o herói mítico passa a ser um alterego do próprio compositor enfrentando a surdez. A famosa anedota de uma suposta dedicatória a Napoleão, riscada num acesso de raiva do compositor, quando o imperador coroou a si próprio, seria outro gesto teatral a corroborar a autorreferência. Se Beethoven foi de fato um compositor pioneiro na tentativa de impregnar o discurso musical de intenções pessoais, também é certo que as condicionou a um completo e rigoroso controle formal, domando o que poderia ser entendido como uma tendência ao maneirismo arbitrário. Nesse sentido, ele é um compositor essencialmente clássico, e não romântico. Por outro lado, a segunda fase de Beethoven, consolidada exatamente pela Sinfonia Eroica, é tão inovadora que rótulos redutivos como Classicismo ou Romantismo pouco ajudam na elucidação de sua originalidade. Uma característica dessa sinfonia, aliás pouco frequente em Beethoven, é que sua gênese está diretamente ligada a obras anteriores. O tema principal do “Finale” já aparecera em três outras peças: na sétima das Contradanças Alemãs WoO 14, no balé As Criaturas de Prometeu e nas Quinze Variações e Fuga em Mi Bemol, Op.35, escritas no ano anterior à Terceira. Sem dúvida, o balé Prometeu constitui o elo hermenêutico fundamental para a Eroica, embora as Variações também representem um gigantesco painel de ensaio para ela. Isso porque os quatro movimentos da sinfonia seguem um plano formal muito semelhante ao do balé, numa sequência de cenas que representam luta, morte, renascimento e apoteose. Mas não é só no aspecto simbólico extramusical que a Eroica realiza uma unificação sem precedentes dos quatro movimentos. Associações na estrutura, nas relações rítmicas, na orquestração e no caráter dos materiais e de seus desenvolvimentos implicam a existência de uma narrativa musical intrínseca que não depende de um programa externo, mas está fundamentada no texto musical em si. Portanto, se a Terceira Sinfonia não pode ser considerada uma expressão direta das vivências e sentimentos do compositor, por outro lado ela de fato busca a expressão do sentido universal de heroísmo, concentrado na ideia de que a confrontação com a adversidade pode conduzir, no final, a uma renovação das potencialidades criativas do homem. Aliás, podemos reconhecer essa mesma narrativa paradigmática como uma obsessão que ressurge, com muitas variantes, até as últimas obras de Beethoven. A duração inusitadamente longa da Terceira Sinfonia também foi objeto de grandes controvérsias entre os contemporâneos de Beethoven. Certamente o compositor imaginou que, para alcançar uma adequada expressão do tema do heroísmo, a obra deveria comportar uma nova concepção de monumentalidade sinfônica. A recepção do público, em todas as grandes cidades em que foi ouvida pela primeira vez, foi de estupefação. Em Paris, cogitou-se que o compositor havia enlouquecido. Cada um dos movimentos parecia prolongar-se indefinidamente, sem aparentar uma lógica ancorada nas tradições do gênero. Ainda assim, era impossível negar a tremenda força expressiva da obra e o assombro estético que despertava. Hoje se diz que a disciplina da análise musical nasceu justamente naquele momento, para tentar explicar a perplexidade perante o descompasso entre a clareza expressiva, que a intuição é capaz de captar nessa música, e a aparente irracionalidade de seu discurso. Para detalhar a extensa lista de inovações formais dessa nova concepção de monumentalidade, seria necessário um espaço que não dispomos aqui. Lembremos, porém, que somente na Nona Sinfonia Beethoven superaria a si mesmo no que diz respeito às dimensões de uma obra sinfônica. Dada a fama imbatível da Nona, creio que a comparação ajuda a dimensionar a importância extraordinária da Eroica no conjunto das obras do compositor.
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LUDWIG VAN BEETHOVEN – ABERTURA REI ESTÊVÃO, OP.117
— por Rodolfo Coelho de Souza —
Por volta de 1810, o ambiente musical do Sacro Império Romano-Germânico, que abrangia Áustria, Hungria e partes dos países vizinhos, é seduzido por uma nova moda. Na esteira da secularização que floresce após a Revolução Francesa e as guerras napoleônicas, desenvolve-se ali um mercado financeiramente recompensador para composições que não têm pretensão de fazer grandes voos artísticos, mas visam cair rapidamente nas graças do público por meio de efeitos orquestrais, virtuosismo superficial e discurso previsível. Não estranharíamos hoje associar essa tendência a compositores do segundo escalão como Pleyel, Clementi e Kozeluch, mas somos surpreendidos quando constatamos que nomes de primeira grandeza como Haydn e Beethoven também aderiram a tal moda. Entretanto, presciente de seu papel na história da música, Beethoven procurou demarcar com clareza a diferença entre suas composições “sérias” e as peças utilitárias, destinadas ao consumo imediato, que escreveu naquele período. Sua obra mais conhecida, como paradigma absoluto dessa segunda categoria, é a abertura A Vitória de Wellington. A abertura Rei Estevão também se encaixa nesse nicho, ainda que não incorra nas mesmas concessões absurdas. Em 1811, ocorreu a inauguração solene de um novo teatro imperial em Budapeste. Programarase para aquela ocasião a encenação de duas peças teatrais de August von Kotzebue, que levavam os títulos Rei Estevão e Ruínas de Atenas. O imperador Francisco II encomendou então a Beethoven a composição de música incidental para ambas. O assunto da primeira encenação é a vida de Santo Estevão, primeiro rei da Hungria, que viveu entre 970 e 1038, e foi responsável pela disseminação da fé cristã no Império Húngaro. A despeito do desprezo da crítica, que relegou essa abertura ao quase esquecimento, há que se reconhecer que a partitura de Beethoven mantém uma elegante dignidade. Ainda que não almeje o mesmo nível de complexidade das sinfonias e concertos que imortalizaram seu nome, é possível reconhecer nela o traço estilístico indelével de Beethoven. Podemos até destacar que o segundo tema prenuncia materiais que seriam retrabalhados na Nona Sinfonia, assim como aparecem ecos da Terceira Sinfonia no desenvolvimento do primeiro grupo temático, que presta homenagem à cultura húngara com referências a canções folclóricas do país.
— Rodolfo Coelho de Souza —
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Disco ‘Beethoven – Sinfonia nº 5 e 7 • Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) • Selo Biscoito Fino • 2006 /2025
Música/ compositor
Ludwig van Beethoven (1770-1827)
Sinfonia nº 5 em Dó Menor, Op.67
1. Allegro con brio [07’32’’] BRPUI-06-00137
2. Andante con moto [10’11’’] BRPUI-06-00138
3. Allegro (attaca) [05’51’’] BRPUI-06-00139
4. Allegro [11’11’’] BRPUI-06-00140
Sinfonia nº 7 em Lá Maior, Op.92
5. Poco sostenuto/vivace [14’49’’] BRPUI-06-00141
6. Allegretto [08’39’’] BRPUI-06-00142
7. Presto [07’56’’] BRPUI-06-00143
8. Allegro con brio [9’22’’] BRPUI-06-00144
Total 75’42’’
– ficha técnica –
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo | Diretor artístico e regente titular: John Neschling; Spalla: Emmanuele Baldini | Engenheiro de gravação, mixagem e masterização: Jakob Andreas Haendel | Texto de encarte: Rodolfo Coelho de Souza | Tradução: Marion Mayer | Fotos: João Musa | Projeto gráfico: Kiko Farkas / Máquina Estúdio | Gravado nos dias 22, 23 e 24 de setembro de 2005 na Sala São Paulo | Arte/capa: Sérgio Fingermann, Sem-Título, 2005 (Óleo sobre tela, 180 x 180 cm) | Assessoria de imprensa Fundação Osesp: Fabio Rigobelo e Pedro Fuini | Uma realização Biscoito Fino – Direção geral: Kati Almeida Braga; Direção artística: Olivia Hime; Coordenação de produção: Renata Mindlin; Assessoria de imprensa: Belinha Almendra / Coringa Comunicação | Selo: Biscoito Fino ‘clássicos’ | Formato: CD físico (2006) / digital (2025) | Lançamento digital: 31 de julho 2025 | ♪Ouça o álbum: clique aqui.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – SINFONIA Nº 5 EM DÓ MENOR, OP.67
— por Rodolfo Coelho de Souza —
Beethoven começou a escrever sua Quinta Sinfonia em 1805, imediatamente após o
término da Terceira. Entre as duas há uma óbvia afinidade expressiva, um sentimento de exaltação impossível de definir em palavras, mas usualmente descrito pelo termo ‘heróico’ que, por isso mesmo, Beethoven associou à Terceira. A ideia central da Quinta é tão poderosa e avassaladora que é difícil entender como Beethoven conseguiu interromper a composição e deixá-la de lado durante todo o ano de 1806, para só retomá-la em 1807. Felizmente, no início de 1808 a obra estava pronta e foi dedicada ao conde Razumovsky e ao príncipe Lobkowitz, dois dos principais mecenas do compositor na fase intermediária de sua carreira. O que teria levado Beethoven a interromper a composição da Quinta? Não temos informações concretas mas podemos fazer algumas especulações. A primeira constatação é que ele parou a Quinta para escrever a Quarta, uma obra mais leve e bem humorada. Então, parece ter havido alguma interferência externa, algum evento na vida de Beethoven que distraiu sua atenção. A mais óbvia possibilidade é seu envolvimento afetivo com a condessa Theresa Brunswick, ocorrido justamente naquele ano. O compromisso entre os dois parece ter afastado Beethoven dos sentimentos dramáticos da Quinta e induzido a uma fase de bons humores, da qual a Quarta seria testemunha. Uma outra possibilidade é que ele precisava compor sinfonias aos pares, com climas expressivos alternados: uma dramática alternada com uma mais leve. Simplesmente seria assim que sua cabeça funcionava: como se cada sinfonia representasse o contraste entre o primeiro e o segundo temas de uma vasta obra em forma de sonata, independentemente do que estivesse ocorrendo à sua volta. É ainda possível que Beethoven tivesse realmente hesitado sobre os caminhos aos quais a Quinta o estariam levando. Essa sinfonia parece-nos hoje tão familiar que não nos damos conta da novidade que ela representou no seu tempo. A Quinta Sinfonia revoluciona o modo como os temas deste gênero eram concebidos. De acordo com a fórmula desenvolvida por Haydn, que Beethoven adotou com poucas variações nas obras anteriores, uma sinfonia deve começar com uma introdução lenta, criando uma expectativa para a apresentação do primeiro tema, revelado então na forma de uma melodia, mais ou menos extensa, mais ou menos cantabile, que deveria deixar uma marca na memória, para que pudesse ser desenvolvida posteriormente. Uma tradição alternativa, oriunda do legado operístico, recomendava que a sinfonia começasse com uma barulhenta fanfarra para chamar atenção à entrada do primeiro tema. A Quinta de Beethoven rompe com essas convenções: não há introdução lenta, nem fanfarra de abertura. Começamos in media res, em plena ação dramática, com a fanfarra de abertura transfigurada em puro pathos, num gesto que cumpre a dupla função de brevíssima introdução e de material temático para o desenvolvimento de toda a Sinfonia. Essa ideia de conformar a Sinfonia às exigências do drama não vem da tradição de Haydn, para quem a forma era uma questão de equilíbrio arquitetônico. Tal intenção aparece pela primeira vez nas últimas sinfonias de Mozart. Beethoven levou esse princípio mais longe do que Mozart teria sonhado. Lembremos que Beethoven era um leitor assíduo da dramaturgia teatral e suas diversas aberturas programáticas testemunham esse interesse. Shakespeare era um dos seus autores favoritos. Podemos até dizer que o tema inicial da Quinta está para a Música, assim como o monólogo “Ser ou não Ser” do Hamlet de Shakespeare está para o Teatro. O motivo inicial da Quinta é provavelmente a ideia musical mais conhecida de toda a história. A despeito das anedotas já contadas, como a história das ‘batidas do destino’ na porta do compositor, pode-se dizer que a sua teatralidade é abstrata e não há qualquer propósito em vinculá-la a significados extra-musicais, eventualmente passados pela mente do compositor quando a concebeu. A beleza dessa poderosa interjeição musical cresce na proporção direta de sua ambiguidade. É curioso notar que, apesar de veemente, a orquestração em uníssono abstém-se de todo o potencial sonoro disponível ao compositor. Nesta obra, Beethoven utiliza pela primeira vez três trombones em suas sinfonias. Não obstante o poder desses instrumentos, escolhe usar apenas cordas e clarinetes na abertura e reserva os trombones para um clímax posterior. Entretanto, o verdadeiro ‘ovo de Colombo’ do compositor foi perceber que esse motivo conciso, uma vez submetido a sucessivas transformações, prestar-se-ia à construção de um discurso musical inteiramente baseado na sua repetição obsessiva. Em última instância, é plausível dizer que tudo nessa Sinfonia pode ser reduzido ao motivo gerador. Realiza-se aqui, em sua plenitude, o ideal de Haydn da organicidade do discurso musical, preconizador da ideia de que os elementos de uma música devessem ser gerados a partir de uma célula-mater. Aliás, não só o primeiro movimento provém do motivo inicial, mas, a rigor, todos os quatro. Embora o impacto inicial fique indelevelmente fixado na nossa memória, o ponto culminante da obra está no último movimento, que também utiliza uma derivação ternária do ritmo original. Dentre os quatro, é o mais longo e o mais elaborado, o que apresenta as sonoridades mais poderosas. Schumann foi o primeiro a reconhecer na Quinta de Beethoven a influência da música francesa. Em Paris, no período posterior à revolução, as manifestações musicais em praça pública, com forte conotação política, criaram um novo estilo musical caracterizado pelas marchas para fanfarras de sopro e percussão. Esse novo estilo ganhou forma na ópera francesa pós-revolucionária, chamada de ópera de resgate, a qual retrata a jornada do herói romântico das trevas para a luz. Esse modelo narrativo, de drama que acaba em happy-end, foi inicialmente usada nas obras de Méhul e Cherubini, as quais, por sua vez, tiveram forte influência sobre Beethoven. A Quinta Sinfonia, assim como a Terceira anteriormente, é baseada nesse paradigma. O primeiro movimento em dó menor expressa o sentimento de conflito e luta, enquanto os seguintes progridem gradativamente para sua superação, culminando no sentimento de exultação e vitória do final em Dó maior.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – SINFONIA Nº7 EM LÁ MAIOR, OP.92
— por Rodolfo Coelho de Souza —
A figura de Beethoven que hoje prevalece em nosso imaginário é a de um compositor temperamental, sujeito a ataques repentinos de raiva. Essa imagem pode ter correspondido à realidade em certos períodos de sua vida, mas os documentos históricos indicam não ser a representação do quadro completo de sua personalidade. Embora pareça paradoxal, muitos de seus contemporâneos descreveram Beethoven como um ‘brincalhão’. A imagem do Beethoven permanentemente angustiado era, na verdade, uma persona criada pelos ideólogos do romantismo, que utilizaram sua figura para gerar um mito que lhes interessava. De certa forma, o lado alegre e jocoso de sua personalidade contrabalançava os aspectos antissociais. Na correspondência informal dirigida aos amigos, essa faceta aparece frequentemente. Mesmo nas cartas profissionais, ele deixava escapar trocadilhos e relatos pitorescos. Esse Beethoven bem-humorado muitas vezes passava dos limites das boas maneiras e demonstrava sua propensão ao humor rude e grosseiro. O clima expressivo da Sétima Sinfonia é um reflexo do lado excêntrico do temperamento do compositor. Richard Wagner chamou-a de “apoteose da dança” pela insistência com que usa ritmos obsessivos. Carl Maria von Weber, após ouvir a Sétima pela primeira vez, declarou que Beethoven estava “pronto para o manicômio”. Friedrich Wieck, pai de Clara Schumann, argumentou que a Sétima “só poderia ter sido composta por alguém em estado de bebedeira”. Nenhum dos três tinha razão. Não é música que pareça ter sido feita para balé, nem é fruto da loucura ou da embriaguez. É apenas uma peça cheia de brincadeiras musicais, identificáveis nos momentos de quebra da previsibilidade do discurso rítmico, nas transições caprichosas e mudanças súbitas de dinâmica, de caráter e de densidade de orquestração. A despeito dos aspectos cômicos, a Sétima transmite uma sutil impressão de grandeza, como se a escala temporal fosse maior do que a de qualquer das seis sinfonias que a precederam. Ainda assim ela não é a mais extensa, a mais veemente, nem a que traz as novidades formais mais importantes. Tal grandeza provém talvez da originalidade no tratamento dos materiais quase banais, da vivacidade do discurso, do poder de concentração expressiva e certamente da inesgotável propulsão rítmica. A Sétima foi terminada em 1812, portanto, com um intervalo de quatro anos após a composição da Pastoral. Beethoven passou o verão daquele ano no balneário de Teplitz, na companhia de amigos e intelectuais, dentre os quais o escritor Goethe, o ator Ludwig Löwe, o filósofo Fichte e o poeta Tiedge. Apesar do declínio progressivo da audição, Beethoven entreteu-se muito naquela temporada e voltou a Viena com a maior parte da composição da Sétima terminada, faltando apenas finalizar a orquestração. Há relatos de que ele chegou a tocar diversas passagens da obra para seus companheiros de férias, um comportamento incomum a um compositor que gostava de guardar segredo de suas obras até considerá-las prontas. A estreia da Sétima Sinfonia foi um acontecimento memorável que mobilizou toda a cidade de Viena. A apresentação, organizada por Maelzel, empresário que também era um engenhoso inventor de aparelhos musicais mecânicos, foi realizada na Grande Sala da Universidade, em dezembro de 1813, em benefício dos soldados feridos na batalha de Hanau contra as tropas napoleônicas. A elite musical vienense, movida pelo patriotismo, participou em peso do evento. Na orquestra tocaram os compositores Spohr, Salieri, Meyerbeer, Dragonetti, Hummel, Moscheles e o famoso violinista Schuppanzigh. Na plateia estava presente um jovem desconhecido de 15 anos, chamado Franz Schubert, que sempre se recordaria com emoção daquela estreia. Não é por acaso que as sinfonias de Schubert têm uma afinidade muito maior com a Sétima do que com todas as outras de Beethoven. Diferentemente das estreias das demais sinfonias de Beethoven, nas quais a ousadia causou estranhamento, a Sétima foi recebida com entusiasmo, merecendo inclusive um pedido de bis do allegretto. O próprio Beethoven regeu a orquestra. A surdez parcial dificultou mas não impediu a condução. O sintoma mais evidente de seus problemas auditivos era a dificuldade de controlar o tom da voz nas ocasionais interpelações aos músicos durante a execução. Alguns dos presentes relataram a impressão formidável que sua figura provocava, tanto pelos cabelos em desalinho, quanto pela gesticulação pouco ortodoxa que alternava contenção com movimentos bruscos e exagerados. Digna de atenção pela sua inusitada eficiência é a introdução ao primeiro movimento –um recurso formal herdado de Haydn, que Beethoven parecia ter abandonado após utilizá-lo nas duas primeiras e na quarta sinfonias. Note-se no terceiro movimento a repetição do trio, que faz a envergadura do scherzo ganhar proporções inauditas. Beethoven também já usara esse artifício na Quarta, mas aqui a solução parece ainda mais eficiente. Saliente-se, finalmente, o ímpeto formidável do finale: o júbilo tumultuoso do último movimento desloca o centro de gravidade da Sinfonia para o fim. Este é certamente um dos mecanismos que conferem à obra a impressão de grandeza por ela transmitida.
— Rodolfo Coelho de Souza —
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Disco ‘Beethoven – Sinfonia nº 1 e 4 e Abertura Coriolano • Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) • Selo Biscoito Fino • 2005 /2025
Músicas / compositor
Ludwig Van Beethoven (1770-1827)
Abertura Coriolano, OP. 62
1. Allegro con brio [8’27’’]
Sinfonia nº 1 em Dó Maior, Op. 21
1. Adagio molto – allegro con brio [8’11’’]
2. Andante [9’44’’]
3. Menuetto [3’22’’]
4. Adagio – allegro molto vivace [5’58’’]
Sinfonia nº 4 em Si Bemol Maior, Op. 60
1. Adagio – allegro vivace [11’19’’]
2. Adagio [10’39’’]
3. Allegro vivace [5’56’’]
4. Allegro ma non troppo [6’42’’]
TOTAL 70’22’’
– ficha técnica –
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo | Diretor artístico e regente: John Neschling | Produção musical e engenheiro de gravação, mixagem e masterização: Jakob Andreas Haendel | Produção: Osesp | Texto do encarte: Rodolfo Coelho de Souza | Tradução: Marion Mayer | Fotos da Orquestra e do regente: João Musa | Projeto gráfico: Kiko Farkas / Máquina Estúdio | Pintura/capa: Sergio Fingermann; foto do quadro: Sergio Guerini | Gravado ao vivo nos dias 27 e 29 de abril de 2000, na Sala São Paulo | Uma realização Biscoito Fino – Direção geral: Kati Almeida Braga; Direção artística: Olivia Hime; Coordenação de produção: Pedro Seiler; Assessoria de imprensa: Belinha Almendra | Selo: Biscoito Fino ‘clássicos’ | Formato: CD físico (2005) / digital (2025) | Lançamento digital: 31 de julho 2025 | ♪Ouça o álbum: clique aqui.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – ABERTURA CORIOLANO, OP. 62
— por Rodolfo Coelho de Souza —
Beethoven precisava de uma nova abertura de concerto para uma apresentação pública que planejava para 1807. A música incidental composta para o balé As Criaturas de Prometeu, que utilizara anteriormente para esse fim, estava desgastada pelo uso e, além do mais, seguia o estilo clássico do qual ele se distanciava rapidamente. A história de Coriolano, o herói de Plutarco, que Shakespeare transformara numa famosa tragédia, forneceu a inspiração de que Beethoven precisava para compor a nova abertura. Porém não foi na tragédia de Shakespeare que Beethoven se baseou, e sim no drama sobre o mesmo tema que o dramaturgo austríaco Heinrich von Collin havia recentemente criado. Beethoven encontrou na tragédia de Coriolano um farto material ideológico de ressonância com a retórica heróica da sua música deste período. Na busca de renovação estilística, Beethoven havia se deixado influenciar pelo estilo heróico e grandiloqüente da música praticada na França por Gossec, Grétry, Kreutzer, Méhul e principalmente Cherubini. A afinidade da Abertura Coriolano com a música parisiense do período pós-revolução francesa foi reconhecida já no tempo de Beethoven pelo famoso crítico E.T.A. Hoffmann que apontou a influência de Cherubini nos materiais usados nesta obra. Na Abertura Coriolano, diferentemente de outras obras do período heróico de Beethoven, como a Abertura Egmont e a Quinta Sinfonia, o desfecho não é redentor. O tom desafiador do personagem e sua energia passional, expressos ao longo da obra por uma inexorável propulsão rítmica, acabam cedendo lugar no final às conotações de morte e pesar. Isso é expresso na coda pela fragmentação progressiva do material temático e pela dissolução do impulso rítmico, indicando o fim trágico do protagonista. É interessante observar que já na Cantata para a Morte de Joseph II, obra de ocasião para as exéquias do imperador, escrita na juventude em Bonn, Beethoven criara um certo inventário de figuras musicais que, desde então, passaram a representar para ele o sentimento de morte. Elas reaparecem tanto na Abertura Coriolano quanto na marcha fúnebre da Sinfonia Eroica e na Abertura Egmont. A Abertura Coriolano acabou sendo estreada naquele mesmo ano de 1807, num concerto no palácio de um de seus patronos, o Príncipe Lobkowitz. Beethoven ainda fez figurar no mesmo programa a Quarta Sinfonia e o Concerto nº 4 para Piano e Orquestra, dando uma demonstração inequívoca da impressionante energia criativa que o animava naquele período.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – SINFONIA Nº1 EM DÓ MAIOR, OP. 21
— por Rodolfo Coelho de Souza —
Quando chegou a Viena, em fins de 1792, o objetivo primeiro de Beethoven era estudar com Joseph Haydn. Mas as aulas, para desagrado de Beethoven, restringiram-se a tediosas lições de contraponto ao estilo antigo e duraram apenas um ano, porque nessa época Haydn viajou para Londres. Apesar disso, o contato com Haydn parece ter sido proveitoso: tomando as obras do professor como modelo para as primeiras composições vienenses, Beethoven absorveu rapidamente as características do que hoje é chamado de ‘estilo clássico’. Viena, àquela época e ainda por muito tempo, seria um dos principais centros de produção musical da Europa, rivalizado apenas por Paris. Ao mudar-se de uma pacata cidade da Alemanha, (Bonn), para Viena, a suntuosa capital do Império Austro-Húngaro, Beethoven já trazia uma formação musical bastante sólida e uma bagagem com diversas obras escritas para diferentes formações. Mas foi como pianista que Beethoven atraiu inicialmente a atenção do público vienense. Sua estratégia para conquistar um espaço ao sol foi dedicar-se aos gêneros em que ele não precisava competir com Haydn e Mozart – este já então falecido. Por isso, antes de ousar escrever quartetos de cordas, óperas e sinfonias, Beethoven concentrou-se em sonatas para instrumentos solo ou em formação de duo com piano. Foi o meio ideal para que encontrasse seu espaço, uma vez que as composições de Haydn e Mozart para teclado nunca chegaram a utilizar o potencial idiomático do novo instrumento. Naquele período, Beethoven publicou dez sonatas para piano solo, e outras tantas peças para outros instrumentos e piano, além de dois Concertos para Piano e Orquestra. Em 1800, quase oito anos após sua chegada a Viena, Beethoven tinha adquirido suficiente confiança em sua habilidade de escrever para orquestra e quarteto de cordas. Naquele ano deu por terminada a composição de sua Primeira Sinfonia, assim como dos primeiros quartetos, agrupados no opus 16. Custou-lhe bastante esforço completar esses trabalhos. Cinco anos antes ele começara a escrever uma sinfonia que nunca terminou. Daquele material restará no projeto definitivo da Primeira Sinfonia apenas o esboço como primeiro movimento, reaproveitado no quarto movimento. Repete-se frequentemente a anedota do desconcerto que a introdução da sinfonia teria causado nos ouvintes da época. Iniciando-a com um acorde dissonante que remete a uma tonalidade diferente da tonalidade da sinfonia, Beethoven excede a ousadia das sinfonias londrinas de Haydn que eventualmente começam fora da tonalidade da obra, mas nunca com dissonâncias. Porém, uma leitura atenta das críticas da época revela que algo mais contribuiu para desconcertar o público: a instrumentação inusitada que utiliza um bloco maciço de instrumentos de sopros. A referência foi inteligível: os críticos reconheceram que se tratava do estilo das bandas militares, de sopros e percussão, que a Revolução Francesa fazia ouvir frequentemente nas praças públicas de Paris, em demonstrações de fundo político que ecoavam até a cidade de Bonn onde Beethoven crescera, tão perto da fronteira francesa. Não passou, portanto, despercebido o sentido veladamente ameaçador daquela abertura, que anunciava à nobreza e à burguesia vienenses o perigo iminente das ideias libertárias vindas da França. Isso certamente foi mais provocativo do que uma dissonância colocada em lugar ‘errado’. Dali para a frente, será justamente a importância inusitada que Beethoven concede aos sopros e à percussão um dos traços distintivos que marcam o estilo de sua música orquestral. Afora o impacto da abertura, o primeiro movimento transcorre sem maiores surpresas. A preocupação maior do compositor parece ser demonstrar domínio das convenções da sinfonia clássica. Nada das excentricidades que Beethoven já se permitira nas sonatas para piano, aparece nesta sinfonia. O compositor curva-se à expectativa de que o gênero requer disciplina arquitetônica e controle da imaginação. Ainda assim, aqui e ali, como na coda que ameaça um desenvolvimento inesperado, há uma centelha de rebeldia que aponta para o Beethoven que está por vir. Mas isso só se reconhece de trás para frente, ouvindo o eco desses gestos reprimidos nas sinfonias que ainda não tinham sido compostas. O segundo movimento é cativante, mas algo convencional. Apresentando-se no lugar do movimento lento esperado, revela um caráter dançante, que presta tributo à elegância do estilo galante do passado. Em alguns momentos, a dramatização do tema ou um episódio contrapontístico rompe qualquer possível previsibilidade. No terceiro movimento reconhece-se a assinatura original de Beethoven. Se no andante Beethoven atendera simultaneamente a duas expectativas da tradição da sinfonia, fundindo lirismo e graça dançante num só movimento, no espaço tradicionalmente previsto para um minueto, ele pode brincar com o humor estilístico, antecipando o caráter inovador dos scherzos que escreverá para suas sinfonias subsequentes. Beethoven conserva no último movimento a forma clássica de sonata, em vez da forma habitual de rondó, ou mais usualmente o rondó-sonata, que Haydn empregava nas suas sinfonias. A Primeira Sinfonia de Beethoven é, no entanto, cautelosa. A despeito da crescente reputação que estava conquistando com suas obras para piano, em se tratando de sinfonia, Beethoven começa caminhando na sombra projetada por Haydn e Mozart, gênero em que ambos, cada um à sua maneira, havia brilhado como ninguém até aquele momento. Mas a fundação da plataforma de lançamento para vôos mais ambiciosos estava construída.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – SINFONIA Nº 4 EM SI BEMOL MAIOR, OP. 60
— por Rodolfo Coelho de Souza —
É quase inacreditável que durante os anos de 1895 a 1897 Beethoven tenha conseguido compor tantas obras-primas simultaneamente. Ele havia iniciado a composição de uma sinfonia em dó menor –que viria a ser sua Quinta Sinfonia, Op.67– quando, não se sabe bem porque, interrompeu aquela composição e iniciou outra sinfonia, que terminaria primeiro, publicando-a como sua Quarta Sinfonia, Op.60. Paralelamente trabalhou no Concerto nº 4 para Piano, Op. 58, no Concerto para Violino, Op.61, nos três Quartetos de Cordas, Op.59 – Rasumovsky e na Abertura Coriolano, Op.62. Tal exuberância criativa deve ser associada à plena maturação das adaptações que Beethoven fazia no estilo clássico herdado de Haydn e Mozart para ajustá-lo à sua personalidade. A Terceira Sinfonia havia representado um gigantesco passo nesse sentido, abrindo caminho em direção ao futuro. Assim como ela, a maioria das obras dessa fase –chamada de ‘Período Heróico’– exulta em exuberância expressiva. Pisando em terreno seguro, porque confiava que o público assimilara plenamente os modelos do classicismo antecedente, Beethoven prosseguia na expansão e modificação dos limites claros e concisos da forma da sinfonia herdada de Haydn, levando-a a patamares imprevisíveis de monumentalidade. Entretanto, o tremendo peso dramático da Terceira e da Quinta parece ter exigido uma pausa para que o compositor desse vazão, por meio da composição da Quarta Sinfonia, ao lado mais leve e jocoso de sua personalidade. Não devemos todavia tomar a alegre luminosidade da Quarta como sinal de despretensão. Na superfície, comparando as proporções excessivas e as ousadias formais da Terceira e da Quinta, com a bonomia da Quarta, poderia parecer que Beethoven teria retrocedido aos padrões de equilíbrio clássico da sinfonia de Haydn. Mas uma observação cuidadosa demonstra que há nela muita invenção. Entenda-se, portanto, que experimentação, para Beethoven, não foi sempre sinônimo de excesso dramático. As renovações formais da Quarta estão em perfeita simbiose com seu caráter sereno. O primeiro movimento começa com uma longuíssima introdução lenta, à maneira de Haydn, o que poderia ser lido como um índice do mencionado retrocesso, exceto pela sua inusitada extensão. Mas há uma bipolaridade claro-escuro entre a introdução e o corpo do primeiro movimento, resultado de uma unidade quase imperceptível de materiais em comum, que não tem precedente em Haydn. A técnica de exposição dos temas é personalíssima. Se comparadas à extensão do movimento, as ideias musicais são propostas com brevidade e os materiais são fugidios e instáveis. A sensação prevalente é de constante dinamismo, de propulsão adiante. A ênfase se desloca dos temas estáveis para as constantes transições. As ideias afirmativas são curtas, mas os percursos de um ponto a outro são longos e tortuosos, cheios de contrastes dinâmicos. Esta é a retórica característica do período heróico de Beethoven, ainda que o caráter da Quarta não pareça remeter-nos às mesmas conotações de heroísmo da Terceira e da Quinta. Este novo tipo de discurso beethoveniano é viabilizado, paradoxalmente, pela redução substancial da velocidade de mudança das harmonias, em relação ao padrão utilizado por Haydn e Mozart, que por sua vez haviam usado ritmos harmônicos ainda mais lentos que os de Bach e Händel. Embora já se tenha acusado injustamente Beethoven de ser um melodista inferior, é preciso reconhecer que, no estilo que criara, o desenvolvimento de motivos curtos é muito mais eficiente do que a expansão lírica de melodias mais extensas, como as de Mozart. Por isso Beethoven utiliza padrões rítmicos que, a cada obra, se tornam mais pessoais e originais, os quais lhe agrada repetir por longos trechos, produzindo um extraordinário efeito de intensificação da linguagem herdada de seus antecessores. Digno de destaque é o originalíssimo uso do tímpano no primeiro movimento que, assumindo o papel de solista em certas passagens, cria efeitos inusitados. Um deles ocorre na transição do desenvolvimento para a recapitulação do primeiro tema. Sustentando um rufo de tímpano sobre um enigmático pianíssimo da orquestra, primeiro intermitentemente, depois sobre um pedal de tônica por 23 compassos, a transição do desenvolvimento para a recapitulação é feita quase que imperceptivelmente, sem nenhuma cadência, em desrespeito ao padrão clássico que estipulava uma longa preparação enfática sobre um pedal de dominante. No segundo movimento a questão da inventividade das figurações de Beethoven é ainda mais evidente. Suportado por singelas melodias de encantadora ternura, este longo andante consegue manter seu interesse graças a uma grande diversidade de variações nos desenhos melódicos e a um hábil manejo da palheta das cores orquestrais. No terceiro movimento, um scherzo, Beethoven dá uma nova interpretação à antiga prática do minueto e trio. A duração do movimento é estendida pelo retorno de uma variante do trio central, que faz o movimento adquirir um certo sentido de rondó. Em outras palavras, a forma clássica ternária é alterada para um minueto – trio – minueto – trio – minueto. Para compensar um possível alongamento temporal excessivo, o andamento é acelerado. Frases ondulantes ascendentes e descendentes são interpoladas a trechos de intrincada fragmentação rítmica. As articulações são constantemente variadas, simulando movimentos que parecem enrolar e desenrolar as frases do discurso de modo imprevisível. É certamente um dos scherzos mais fascinantes que Beethoven escreveu. O quarto movimento, embora tenha um caráter insistente, quase obsessivo, que poderia ter justificado a utilização da forma de rondó, na verdade emprega a forma clássica de sonata. Pode-se cogitar que este é o movimento que mais padece da velocidade assombrosa com que as ideias fluíam na cabeça de Beethoven naquele período. Exceto pela inventividade das passagens com caráter de moto continuo, este é o movimento mais previsível dentre todos desta sinfonia. Os materiais utilizados –brilhantes figurações virtuosísticas em contratempo e progressões vertiginosas, de estilo rossiniano– ainda que interessantes, não chegam a ser explorados em grande profundidade, talvez como índice da urgência com que esta sinfonia foi concluída, para que o compositor pudesse retornar à composição de sua Quinta Sinfonia. Entretanto, ainda que menos notável, nada neste singelo último movimento é indigno da assinatura de Beethoven.
— Rodolfo Coelho de Souza —
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Disco ‘Beethoven – Sinfonias 2 e 8 + Abertura Egmont • Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) • Selo Biscoito Fino • 2005 /2025
Músicas / compositor
Ludwig van Beethoven (1770-1827)
Abertura Egmont, Op. 84 [7’55’’]
Sinfonia nº 2 em Ré Maior, Op. 36
1. Adagio molto – allegro con brio (alla breve) [11’53’’]
2. Andante cantabile con moto [12’26’’]
3. Menuetto: allegro molto e vivace [3’33’’]
4. Finale: adagio, allegro molto e vivace [6’28’’]
Sinfonia nº 8 em Fá Maior, Op. 93
1. Allegro vivace con brio [10’32’’]
2. Allegretto scherzando [4’19’]
3. Tempo di minueto [5’38’’]
4. Allegro vivace (alla breve) [7’52’’]
TOTAL 70’40’’
– ficha técnica –
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo | Diretor artístico e regente: John Neschling | Produção musical e engenheiro de gravação, mixagem e masterização: Jakob Andreas Haendel | Produção: Osesp | Texto do encarte: Rodolfo Coelho de Souza | Tradução: Marion Mayer | Fotos da Orquestra e do regente: João Musa | Projeto gráfico: Kiko Farkas / Máquina Estúdio | Arte/capa: Sérgio Fingermann, Sem-título, 2005 (Óleo sobre tela, 180 x 180 cm); foto do quadro: Sergio Guerini | Gravado nos dias 18 e 20 de março (Segunda), 13 e 15 de maio (Egmont e Oitava) de 2004 na Sala São Paulo | | Assessoria de imprensa Fundação Osesp: Fabio Rigobelo e Pedro Fuini | Uma realização Biscoito Fino – Direção geral: Kati Almeida Braga; Direção artística: Olivia Hime; Coordenação de produção: Pedro Seiler; Assessoria de imprensa: Belinha Almendra / Coringa Comunicação | Selo: Biscoito Fino ‘clássicos’ | Formato: CD físico (2005) / digital (2025) | Lançamento digital: 31 de julho 2025 | ♪Ouça o álbum: clique aqui.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – ABERTURA EGMONT, OP. 84
— por Rodolfo Coelho de Souza —
No verão de 1812 Beethoven deixou Viena e viajou para o balneário de Karlsbad, na Boêmia. Essa viagem teve uma motivação especial, além do descanso na aprazível estância. Lá Beethoven finalmente concretizou um ansiado encontro pessoal com o grande escritor Johann Wolfgang von Goethe. O que terá acontecido quando finalmente os dois gênios se encontraram? Não se sabe. Nenhum deles deixou um relato do encontro e nem se sabe de outra pessoa que o tivesse testemunhado. Dois anos antes, Beethoven passara pelo auge de seu interesse pelos escritos de Goethe e compusera, além da música incidental para a tragédia Egmont, diversas canções sobre poemas do autor. Uma amiga em comum, Betina Brentano, tentara aproximá-los, enviando ao escritor as músicas que Beethoven compusera, mas o encontro foi protelado. A composição da música incidental para o drama Egmont de Goethe ocupou Beethoven durante toda a primeira metade do ano. Lutando contra seu perfeccionismo, Beethoven desdobrou-se para que a obra ficasse pronta para a estréia da peça em junho. O esforço foi recompensado e Egmont acabou como um dos mais bem sucedidos empreendimentos do compositor no gênero. Esta abertura demarca o auge do seu período heróico, que se inicia em 1803 com a Terceira Sinfonia, quando a surdez ainda não se abatera integralmente sobre ele, e que se prolongaria até os eventos de 1812 acima mencionados. Apesar de momentos nebulosos, os fatos que cercam o encontro entre Beethoven e Goethe nos deixam vislumbrar algumas informações curiosas. Beethoven, que algumas vezes foi caracterizado como um músico obcecado pelo seu ofício e desinteressado de tudo mais na vida, aqui aparece como um ávido leitor dos grandes escritores da poesia, dramaturgia e filosofia do seu tempo, nutrindo grande admiração por Goethe, Schiller e Schelling. Mais surpreendente é a notícia de que, por sua parte, Goethe pouco compreendeu da genialidade de Beethoven ao colocar em música suas poesias. Goethe declarava francamente que, quando se tratava de seus textos, preferia as composições singelas, de caráter popularesco –talvez pelo fato de tais autores, pouco criativos, acabassem por valorizar mais seus textos ao manter a música num plano subalterno. A exacerbação da dimensão mítica e simbólica da música de Beethoven nesse período serviu magnificamente à composição de uma peça que inclui elementos narrativos e descritivos. O drama de Egmont trata da história de um conde flamengo que orgulhosamente aceita sua condenação à morte, em decorrência de um frustrado levante contra os espanhóis, como um sacrifício pessoal em troca da liberdade de seu povo. Beethoven certamente encontrou nessa história ecos de sua determinação em superar o drama pessoal da surdez por meio da dedicação integral à música. Exemplo de uma linguagem embriã, um momento frequentemente comentado ocorre quando o corte abrupto da frase lírica dos violinos, seguida de pausa, simboliza a morte de Egmont pela lâmina do algoz. Diversas outras passagens, de calculado simbolismo, fazem desta obra um dos mais efetivos exemplos da história da música programática.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – SINFONIA Nº 2 EM RÉ MAIOR, OP.36
— por Rodolfo Coelho de Souza —
Czerny, aluno dileto de Beethoven e um dos mais famosos pianistas da história, relata em seus escritos que, em 1801, seu mestre teria declarado ao amigo Wenzel Krumpholz, “estar pouco satisfeito com suas obras anteriores e que daí para a frente tomaria um novo caminho”. Confirmando essa intenção, Beethoven apresenta no ano seguinte diversas novas composições de grande inventividade, entre elas a Segunda Sinfonia em Ré maior, Op.36. A despeito do empenho de Beethoven nesta obra, a Segunda acabou ficando à sombra da monumental Terceira Sinfonia. As vicissitudes da recepção da Segunda remontam à sua estreia em Viena, em abril de 1803. Sem renegar a tradição herdada, Beethoven pela primeira vez deu plena vazão à sua imaginação no tratamento da orquestra sinfônica, ultrapassando o legado de Haydn e Mozart. A envergadura do primeiro e do último movimentos surpreendeu os ouvintes da época. O crítico de uma revista vienense considerou-a “uma monstruosidade grosseira, um dragão ferido que, contorcendo-se hediondamente, recusa-se a expirar e, mesmo esvaindo-se em sangue no finale, ainda ataca furiosamente a própria cauda ”. O primeiro movimento começa com uma introdução por demais extensa para ser justificada pelo modelo herdado das últimas sinfonias de Haydn. Portanto não é com a visão arquitetônica de Haydn, como acontecera até então, que devemos imaginar Beethoven dialogando. É com uma nova concepção, da sinfonia como drama, inaugurada pela Sinfonia Praga de Mozart, que Beethoven se defronta. De fato, a semelhança de figuras em uníssono já no início do adagio molto remete-nos imediatamente àquela obra de Mozart. Outros tantos paralelismos ao longo da sinfonia permitem recuperar um possível percurso de citações e referências como parte da sua gênese. A elaboração motívica da introdução do primeiro movimento da Segunda Sinfonia é admirável e prenuncia o que se seguirá. Nunca antes materiais de uma introdução haviam sido relacionados tão consistentemente com o desenvolvimento do corpo do movimento. Essa profunda organicidade da composição, que busca consistência desde a primeira nota colocada na partitura, é um dos aspectos fundamentais do “novo caminho” anunciado por Beethoven ao amigo. A propulsão dinâmica, o contraste entre energia rítmica e frases de caráter íntimo, assim como outros elementos estilísticos, não deixam dúvidas quanto à assinatura do compositor. Destaque-se ainda que, ao final da recapitulação, quando Haydn teria considerado concluída a forma do primeiro movimento, Beethoven surpreende o ouvinte, estendendo o movimento com uma longa coda de 57 compassos. Na época acusaram-no de excêntrico, mas o compositor tinha seus justos motivos: a coda contrabalança formalmente a longa introdução. Do ponto de vista biográfico esta Sinfonia é um duro golpe nas teses que defendem uma conexão direta entre vida e obra do compositor. Quem ouve esta obra vibrante, quase jubilosa, jamais presumiria que sua composição coincide com uma das fases mais difíceis da vida de Beethoven. Ela foi escrita em Heiligenstadt, um vilarejo nas cercanias de Viena, na mesma época em que Beethoven escreveu o famoso testamento em que discute o suicídio como alternativa para a perspectiva de surdez iminente. Sob a luminosidade da sua superfície, a composição desta sinfonia deve ter custado enorme esforço emocional ao compositor. Um indício de que ela deixou em Beethoven uma marca indelével é que, anos depois, no período negro em que a surdez total finalmente se abateu, ele resgata diversos fragmentos desta Sinfonia como materiais de partida para a composição da sua Nona. O segundo movimento, em andamento lento, também é invulgarmente extenso. Haydn já ousara aumentar o peso dos movimentos internos da sinfonia, como por exemplo na Sinfonia ‘O Relógio’. Para tanto, aprendera a adaptar o dinamismo da forma sonata como ferramenta de controle das longas digressões melódicas das seções lentas. Beethoven além de seguir os passos do predecessor, antecipa o futuro. Neste movimento a estrutura harmônica do material temático e suas engenhosas variantes rítmicas antecipam a linguagem de Schumann e Brahms que encontraram aqui uma inesgotável fonte de inspiração. Também no terceiro movimento Beethoven inova ao substituir, pela primeira vez em suas sinfonias, o minueto convencionado por um scherzo. Assim, deste movimento aparentemente despretensioso, emerge a solução paradigmática do scherzo beethoveniano que se tornará uma das marcas registradas de suas sinfonias. Mas é no quarto movimento que os musicólogos de forma unânime reconhecem que a obra alcança seu ponto mais alto de inventividade. Apropriando-se das técnicas humorísticas de Haydn, Beethoven alterna tiradas de espírito com dramatismos teatrais emprestados da ópera bufa. Na coda, que deixou seus contemporâneos perplexos, desponta, em toda sua excentricidade, o espírito inventivo de Beethoven. Ao carregar nas tintas do humor grotesco e na retórica teatral cheia de surpresas, ele inventou, nesta passagem, algumas das características estilísticas fundamentais do seu ‘novo caminho’.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – SINFONIA Nº 8 EM FÁ MAIOR, OP. 93
— por Rodolfo Coelho de Souza —
Considerando a estima de que gozam hoje em dia, é difícil entender porque as sinfonias da maturidade de Beethoven, particularmente a Oitava, mas também a Sétima, foram inicialmente rejeitadas pelos críticos da época. Para aqueles ouvidos elas eram muito longas, debatiam-se em contrastes excessivos e padeciam de uma expressividade por demais veemente. Essas características, que hoje nos parecem contribuir na medida exata para as virtudes dessas obras, decorrem de uma fina concepção de comédia em música, cujas raízes estilísticas remontam, em Beethoven, à sua Segunda Sinfonia. Naquela obra ainda pode-se creditar a Haydn a receita de misturar elementos emprestados da ópera bufa, com tiradas de espírito referenciadas ao próprio estilo, uma das marcas registradas do classicismo vienense. Na Oitava porém, empregando a tonalidade de Fá maior que ele habitualmente associava ao sentido de humor ou a ambientações pastorais, Beethoven exibe um completo e inimitável domínio da técnica de misturar o trágico, o cômico, o sério e o trivial, manipulados como que por um malabarista que salta de um nível para outro, quase sem precisar de conexões. Um importante foco do humor da Oitava se concentra no retorno voluntário aos padrões das formas clássicas que Beethoven usara intensivamente na fase inicial de sua carreira, e dos quais havia gradativamente se distanciado, na busca de caminhos inovadores. Na Oitava encontramos Beethoven revisitando, com o olhar abrangente e crítico de quem contempla um objeto à distância, a questão da obediência à forma da sinfonia clássica, para com ela se divertir. Por isso a Oitava parece revelar tão poucos pensamentos e sentimentos íntimos do compositor. Mas de modo algum esta sinfonia é superficial. Tal como Haydn em seus melhores momentos, Beethoven consegue aqui conciliar profundidade expressiva com absoluta objetividade. Essa capacidade para focalizar-se integralmente no objeto fica ainda mais intrigante quando se sabe que Beethoven compôs esta sinfonia convivendo, às turras, com uma cunhada que ele detestava. A atmosfera de hostilidade que aborrecia a vida quotidiana do compositor não transparece na sinfonia, que transpira um clima de comédia, algo pesada, mas ainda assim bem humorada. Os esboços que Beethoven fez para essa sinfonia sobreviveram num dos cadernos que ele usou para anotar ideias preliminares. Tais apontamentos revelam que a exposição inicial foi primeiramente pensada como um ritornello de abertura de um concerto para piano. Não se sabe porque Beethoven mudou de ideia, mas ele não hesitou em usar esse material, quase sem mudanças, como início do primeiro movimento da Oitava Sinfonia. Como consequência, a textura transparente da exposição parece se opor, com mais ênfase do que habitualmente, ao caráter do desenvolvimento. Este, por sua vez, saturado de motivos repetitivos e síncopas sustentadas é seguido pelo surpreendente retorno do primeiro tema nos graves da orquestra, em meio a um tutti fortíssimo, criando para os regentes um difícil problema de balanceamento da dinâmica orquestral. Pode-se presumir que essa improvável falha de orquestração na verdade faça parte de uma estratégia do compositor para diluir os contornos das seções, brincando com a ambiguidade da forma. Uma prova disto seria que o mesmo material retorna a seguir, numa passagem das madeiras indicada como dolce, que esclarece tratar-se de fato da recapitulação, mas com uma ênfase deliciosamente reduzida. Os jogos formais com que Beethoven se divertiu nesta sinfonia podem parecer, para muitos de nós, uma obscura linguagem indecifrável. Mas seu reconhecimento, se não condiciona o prazer da audição, acrescenta mais um nível de significações, que atesta em Beethoven uma capacidade invulgar de escrever ao mesmo tempo para o expert e para o ouvinte comum. Isso fica evidente no movimento final que apresenta uma das mais memoráveis exibições de inventividade do compositor no trato da forma sinfônica. Haydn criara a forma sonata-rondó, combinando o poder estruturador da forma sonata com os traços leves e divertidos da forma rondó. Ao fazê-lo, ele reforçara a envergadura do último movimento, tradicionalmente leve e inconsequente, para balanceá-lo em relação ao primeiro, equilibrando assim a monumentalidade arquitetônica da sinfonia como um todo. Porém foi necessária a imaginação de Beethoven para que todo o potencial da sonata-rondó se concretizasse, como no finale da Oitava. Ampliando a forma imaginada por Haydn, Beethoven acomoda dois desenvolvimentos e duas recapitulações numa complexa trama de reorquestrações de materiais, aparentemente desconectados a princípio, mas que, no momento certo, revelam seu sentido e iluminam a forma através da reinterpretação de sua função. Em outras palavras, se na Sexta Sinfonia, a Pastoral, Beethoven flertara com o programático, na Oitava ele realiza, mais plenamente do que nunca, uma síntese entre formalismo e sublime comédia.
— Rodolfo Coelho de Souza —
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Disco ‘Beethoven – Sinfonias 9 • Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) + Coros • Selo Biscoito Fino • 2005 /2025
Ludwig van Beethoven (1770-1827)
Sinfonia nº 9 em Ré Menor, Op.125 – Coral
1. Allegro ma non tropo, um poco maestoso [15’35’’]
2. Molto vivace [13’40’’]
3. Adagio molto e cantabile [15’56’’]
4. Presto – allegro assai [6’33’’]
5. Recitativo – allegro assai vivace (alla marcia) – andante maestoso – adagio
non troppo ma divoto – allegro energico e sempre ben marcato – allegro ma non tanto – presto – maestoso – prestissimo [18’31’’]
TOTAL 70’17’’
– ficha técnica –
Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo – Regente: Roberto Minczuk | Soprano: Rène Théorin | Contralto: Luisa Francesconi | Tenor: Johnny Van Hal | Baixo: Geert Smits | Coro da Orquestra Osesp – Regente: Naomi Munakata | Coral Paulistano – Regente: Mara Campos | Diretor artístico Osesp: John Neschling | Produção musical e engenheiro de gravação, mixagem e masterização: Jakob Andreas Haendel | Produção: Osesp | Texto do encarte: Rodolfo Coelho de Souza | Tradução: Marion Mayer | Fotos da Orquestra e do regente Minczuk: João Musa | Projeto gráfico: Kiko Farkas / Máquina Estúdio | Arte/capa: Sérgio Fingermann, Sem-título, 2005 (Óleo sobre tela, 180 x 180 cm); foto do quadro: Sergio Guerini | Assessoria de imprensa Fundação Osesp: Fabio Rigobelo e Pedro Fuini | Gravado nos dias 4, 5 e 6 de março de 2004, na Sala São Paulo| Uma realização Biscoito Fino – Direção geral: Kati Almeida Braga; Direção artística: Olivia Hime; Coordenação de produção: Pedro Seiler; Assessoria de imprensa: Belinha Almendra / Coringa Comunicação | Selo: Biscoito Fino ‘clássicos’ | Formato: CD físico (2005) / digital (2025) | Lançamento digital: 31 de julho 2025 | ♪Ouça o álbum: clique aqui.
LUDWIG VAN BEETHOVEN – SINFONIA Nº 9 EM RÉ MENOR, OP. 125 – CORAL
— por Rodolfo Coelho de Souza —
A Nona Sinfonia de Beethoven é, entre muitas outras coisas, uma obra paradoxal.
Ao mesmo tempo que futurística, porque expandiu as proporções da sinfonia a uma
escala gigantesca, nunca antes imaginada, é também uma obra retrospectiva, uma síntese de referências ao passado. Entenda-se como passado, neste caso, não só as obras de grande envergadura de Händel e Haydn, mas, principalmente, as do próprio Beethoven. Esse propósito de síntese não implica porém que Beethoven quisesse que esta fosse sua última sinfonia –apesar de isto ter acontecido– uma vez que sobreviveram esboços de uma Décima. Uma causa plausível para esse retorno ao passado nas obras do fim da vida pode ser atribuída à surdez, que tornara-se total. Nos anos de juventude, Beethoven, antes de ser reconhecido como compositor, conquistara considerável fama com suas extraordinárias improvisações ao piano, cheias de invenção e explosiva energia. A capacidade de improvisação como pianista virtuoso certamente contribuiu para a formação do compositor. As Sonatas para Piano foram o laboratório onde Beethoven realizou as experiências que lhe permitiram forjar seu estilo pessoal. Com o passar dos anos, o avanço da surdez limitou o papel da percepção auditiva no seu processo criativo e ela foi sendo progressivamente substituída pela audição interna e pela memória, que o aproximou do passado. As referências a outras obras podem ser encontradas já no princípio da Nona Sinfonia. O tema principal do primeiro movimento, um allegro ma non troppo, un poco maestoso, toma emprestado um fragmento da Segunda Sinfonia. Ali trata-se de uma breve passagem dramática em ré menor, que aparece na introdução e não retorna jamais. O desenrolar do movimento exibe um caráter predominantemente alegre, em Ré maior. Na Nona, porém, o gesto em ré menor torna-se o material central e desenvolve todo seu potencial dramático. Inicialmente ele aparece dissolvido em hesitações, para, em seguida, emergir da bruma como uma grandiosa proclamação. O olhar analítico revela que esse material nada mais é do que um arpejo ritmado do acorde de ré menor. Tal é a arte suprema de Beethoven: extrair o máximo de expressão de materiais ínfimos que, em última instância, confundem-se com o próprio arcabouço do sistema tonal. Podemos conjecturar as razões que levaram Beethoven a retomar esta passagem fugaz da sua Segunda Sinfonia. Tais motivos prender-se-iam ao contexto traumático em que a Segunda foi concebida. Aquele foi o momento em que ele teve consciência de que estava condenado à surdez progressiva. Numa carta a seus irmãos, conhecida como o Testamento de Heiligenstadt, escrita nessa época, outubro de 1802, mas nunca enviada, Beethoven revela que, em desespero com a perda do sentido fundamental para sua arte, pensou em suicídio. Apesar disso, o clima da Segunda é bem humorado. Mas ao compor a Nona, a surdez não era mais uma mera ameaça: havia se instalado completamente. Por isso ele recuperou da Segunda justamente a passagem dramática que se insinuara naquele movimento alegre como uma breve perturbação, logo esquecida, mas que agora não podia mais ser afastada. É um mistério que esta sinfonia monumental, a maior e mais influente de todas as nove, pudesse ter sido escrita por um compositor imerso em completa surdez. A Nona representa a essência do pensamento de Beethoven na fase final de sua carreira, em que as obras escasseiam em número, refletindo a redução das suas capacidades físicas, mas em compensação concentram-se em ideias originais e crescem em ambição artística. A composição da Nona Sinfonia ocupou Beethoven durante todo o ano de 1823. Uma sinfonia de duração inusitadamente longa como a Nona, em que todos os movimentos excedem tudo o que já havia sido empreendido antes, necessitava algumas estratégias também inusitadas para garantir a unidade da obra. A mais importante delas é a recorrência de antecipações e reminiscências de materiais temáticos ao longo da Sinfonia. As melodias e motivos dos diversos movimentos se inter-relacionam sutilmente e, em última instância, apontam todos para o movimento final, a “Ode à Alegria”, em que são explicitamente trazidos de volta à cena. Essa habilidade de lidar com as grandes formas musicais é um dom extremamente raro. Mesmo compositores geniais como Schubert e Schumann ficaram devendo quando tentaram dominar a arquitetura das obras de larga escala. Na Nona, uma combinação de talento natural e esforço infatigável permitiu a Beethoven erguer o conceito de monumentalidade da sinfonia a um patamar insuperável para as próximas gerações. Costuma-se atribuir ao último movimento, devido ao uso de solistas vocais, coro e orquestra ampliada, a responsabilidade de ter tornado excepcional esta sinfonia. Na verdade, todos os movimentos mantém-se em proporções grandiosas. Já mencionamos o papel dramático desempenhado pelo primeiro tema do primeiro movimento, mas também a segunda área temática, na tonalidade da submediante, apresenta uma fascinante justaposição de frases líricas e dramáticas que cria um efeito sem paralelo na literatura do período clássico. Tudo mais no primeiro movimento é portentoso. Desenvolvimento e coda relacionam-se entre si, fazendo da coda uma recapitulação do desenvolvimento. A recapitulação da patética exposição inicial não é uma mera repetição do que já foi ouvido, mas uma recomposição do material para dar-lhe um novo sentido heroico e redentor. Enfim, tanto em larga escala, como no mínimo detalhe, Beethoven esmera-se em tecer uma intrincadíssima malha de relações. O segundo movimento, indicado molto vivace, é um scherzo que aparece em posição trocada com o habitual segundo movimento lento. O objetivo dessa inversão talvez fora o de criar um efeito direto de paródia, por meio da justaposição deste movimento ao primeiro. A progressão em quintas que abre o primeiro movimento é reinterpretada aqui humoristicamente, em ritmo ternário, frequentemente interrompido por explosões do tímpano. O material melódico usado é muito simples, o interesse se desloca inteiramente para o aspecto rítmico. Este scherzo é uma das mais engenhosas composições baseada em estruturas rítmicas jamais escritas. Indicações na partitura do próprio Beethoven, como “Ritmo de tre (e quattro) battute”, demonstram que ele usou conscientemente conceitos como hipermetro, manipulação métrica e intensificação rítmica, estranhos para a teoria musical de sua época. Em meio ao scherzo, Beethoven introduz, à guisa de trio, uma adorável dança camponesa que ilumina em tons suaves a parte central do movimento e nos faz recordar sua Sinfonia Pastoral, criando outra daquelas referências a que aludimos anteriormente. Parodoxalmente, a despeito das intenções jocosas e parodísticas deste movimento, ele apresenta incontáveis passagens imitativas e fugatos que exploram técnicas caracteristicamente contrapontísticas. Uma das marcas distintivas importantes das obras da última fase de Beethoven é esse recurso intensivo ao contraponto. Em toda a Nona aparecem, com frequência, não só fugatos e imitações, mas todo tipo de contraponto, inclusive extensas variações em contraponto duplo e triplo. Para Beethoven, o estudo do contraponto teria sido a pedra mais difícil de remover no seu caminho de aprendiz. Na juventude ele tinha sido apresentado ao Cravo bem Temperado de Bach como o ideal da perfeição composicional. Ao mudar-se para Viena para estudar com Haydn, foi novamente o estudo do contraponto a receita prescrita pelo professor ao aluno rebelde. Não contente com as aulas de Haydn, Beethoven procurou Albrechtsberger, um grande teórico da época, para aulas particulares. Mas o pedante Albrechtsberger, após um ano de tentativas, dispensou-o, sentenciando, “ele não aprendeu nada e nunca fará coisa alguma com propriedade”. No fim da vida, retornando aos desafios do passado, Beethoven mantinha sempre à mão o Gründliche de Albrechtsberger, o tratado de fuga que estudara à exaustão. Como se quisesse provar a si mesmo o engano do vaticínio do professor, em diversas obras da última fase Beethoven esmera-se em usar todas as possíveis estratégias contrapontísticas, até esgotá-las. Mas a essa altura outras duas razões talvez justificassem também esse interesse. Primeiro a própria surdez. O tipo de pensamento abstrato requerido pelo contraponto coaduna-se bem com a audição interior, a única alternativa de percepção que restara ao compositor. Ao mesmo tempo, tanto para Beethoven quanto para a recepção da crítica do seu tempo, o uso de contraponto era sinônimo de intenções artísticas sérias. Como a ambição das derradeiras obras excede tudo o que fora antes almejado, era pertinente que Beethoven recorresse ao contraponto em busca da validação de seus objetivos. No terceiro movimento, indicado adagio molto e cantabile, encontramos um Beethoven sereno, entregue à meditação, que nos confidencia a expressão mais refinada de sua espiritualidade. A forma utilizada são variações sobre dois temas, um procedimento incomum em Beethoven mas frequente em Haydn, o que sugere mais uma referência a acrescentar às inúmeras que esta sinfonia celebra. As melodias vão e voltam enriquecidas por elaborações figurativas, e não há desenvolvimento propriamente dito, pois o movimento conserva uma atmosfera contemplativa quase até o final. Entretanto, quebrando o encanto, o fluxo em direção à cadência final é interrompido e protelado duas vezes por fanfarras de metais e percussão, seguidas de um clima apreensivo que prepara o ouvinte para o impacto de um evento catastrófico que se anuncia para o início do movimento derradeiro. Chegamos então ao quarto movimento que, por si só, tem a dimensão de uma nova sinfonia. Por quarenta minutos solistas e coro esperaram seu momento de atuar. Por que fazê-los sentar esse tempo todo à vista da audiência? O motivo imediato é a impossibilidade de uma longa pausa entre terceiro e quarto movimentos. A tensão final do terceiro movimento prepara as terríveis dissonâncias da Schreckensfanfare, a ‘fanfarra aterrorizante’ que abre o quarto movimento. A pausa tem que ser breve para que se entenda essa relação. Uma longa procissão de coralistas e solistas destruiria o efeito. Mas há muitos outros possíveis sentidos simbólicos naquelas pessoas à espera do último movimento, além do crescimento da expectativa que faz a atenção convergir para o movimento final. A gênese do último movimento precedeu, e bastante, a da sinfonia como um todo. Pode-se dizer que a sinfonia foi escrita de trás para a frente, porque cada ideia dos movimentos anteriores representa uma referência a algo que acontece no movimento final. A intenção de colocar em música o poema “An die Freude” de Schiller foi um projeto acalentado desde a juventude. Em 1815, pensando numa viagem a Londres, talvez em busca do sucesso que Haydn lá obtivera décadas atrás, Beethoven planejou escrever duas novas sinfonias. Naturalmente veio-lhe à mente a imagem de Händel, um de seus compositores favoritos, outro germânico que fizera fama e fortuna em Londres. O passo seguinte foi imaginar um projeto que condensasse o impacto das sinfonias londrinas de Haydn com a grandiosidade dos oratórios de Händel. Dessa mistura de gêneros nasceu o projeto da Nona Sinfonia. Numa carta de 1824, Beethoven reconhece que o último movimento faz referências a duas obras anteriores: sua Fantasia coral, Op.80, escrita em 1808 (não só a evidente recorrência de temas entre as obras mas principalmente a técnica de recriação de materiais vocais em forma instrumental seria o aspecto relevante dessa referência) e a Missa Solemnis, Op.123, também escrita na tonalidade de Ré, em que Beethoven renovou seu repertório de soluções para o tratamento da relação entre coro e orquestra. Apesar de, à primeira impressão, o movimento final sugerir uma estrutura divagante, à maneira de fantasia, diversas outras interpretações de sua forma são possíveis. A recriação instrumental das partes vocais, à maneira de dupla exposição, é um procedimento típico do concerto com solista. O tratamento do tema da ‘Alegria’ faz-se em variações características, que oscilam entre os extremos expressivos do sublime, na dupla fuga entremeada pelos gritos “Alegria, alegria!” do coro, ao ridículo, na variação em que se intromete uma marcha de banda militar (cujas conotações extra-musicais relacionadas à maçonaria e à ameaça turca têm sido estudadas num contexto interpretativo que está irremediavelmente perdido no passado para as audiências contemporâneas). Fantasia, concerto, forma de sonata, encadeamento de variações, sinfonia em quatro movimentos encapsulados em um único, tudo isso é possível enxergar nesse movimento. Ainda assim o grande artifício da obra nasce da escolha de um tema belo, mas simplíssimo, que responde ao chamado do poema “milhões, eu vos abraço!”, e estabelece de imediato uma ponte de comunicação direta com todos os ouvintes, sofisticados ou leigos. Esse desejo de passar conteúdos que beiram o panfletário poderia implicar no risco de resvalar para o kitsch. Em outras peças escritas para celebrações ocasionais, como A Vitória de Wellington e a cantata O Momento glorioso, Beethoven caiu nessa armadilha, aliás voluntariamente, porque os rendimentos financeiros e de prestígio foram compensadores. Mas na “Ode à Alegria” Beethoven conseguiu manter-se num certo distanciamento crítico das afirmações ideológicas, colocando-as na condicional. O horizonte de uma realização possível não inteiramente ao nosso alcance adicionou um ingrediente preservativo que conservou o frescor significante da obra, a despeito de sua utilização em comerciais de cerveja, festas de olimpíadas e comemorações políticas.
— Rodolfo Coelho de Souza —
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JOHN NESCHLING – regente
Nascido no Rio de Janeiro, John Neschling formou-se regente em Viena com Hans Swarovsky e Reinhold Schmid, e aperfeiçoou-se em Tanglewood com Leonard Bernstein e Seiji Ozawa. Venceu importantes concursos internacionais de regência como o de Florença (1969), o da Sinfônica de Londres (1973) e o do Teatro Alla Scala, de Milão (1976).
O talento e a vocação para a música destacam-se no histórico da família de Neschling, que é sobrinho-neto do maestro Arthur Bodanzky e do compositor Arnold Schoenberg. Na década de 80, assumiu a direção dos teatros municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Na Europa, dirigiu o Teatro São Carlos, de Lisboa; o Teatro St. Gallen, na Suíça; o Teatro Massimo, de Palermo; a Ópera de Bordeaux, e atuou como regente residente na Ópera de Viena. Em 1996, conduziu Il Guarany, de Carlos Gomes, na Ópera de Washington, com Plácido Domingo no papel de Peri. Foi regente titular e diretor artístico da Osesp de 1997 a 2008. Neschling compõe para teatro, cinema e televisão, contabilizando mais de 60 títulos. É membro da Academia Brasileira de Música desde 2003, casado com a escritora Patrícia Melo e vive em São Paulo.
YAN PASCAL TORTELIER – regente
Nascido em uma família musical, filho do violoncelista Paul Tortelier, Yan Pascal Tortelier iniciou os estudos de piano e violino aos quatro anos de idade e, aos 14, venceu o primeiro concurso de violino no Conservatório de Paris. Após estudar música com Nadia Boulanger, estudou regência com Franco Ferrara em Siena, Itália. Desde então, sua carreira como regente inclui apresentações com as principais orquestras da Europa, América do Norte, Japão e Austrália. Em reconhecimento ao seu trabalho como regente titular da Filarmônica da BBC entre 1992 e 2003, Tortelier recebeu o título de regente laureado e continua a trabalhar com a Orquestra regularmente. Nos últimos anos, tem regido importantes orquestras como a Sinfônica de Londres, Philharmonia e Filarmônica de Londres; Orquestra de Paris; as Filarmônicas de São Petersburgo, de Oslo, entre outras. Entre 2005 e 2008, foi nomeado principal regente convidado da Orquestra Sinfônica de Pittsburgo. Desde 2010 é o regente titular da Osesp.
ROBERTO MINCZUK – regente
Roberto Minczuk é o diretor artístico do Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão. Já regeu as orquestras filarmônicas de Nova York e Los Angeles, Orquestra da Filadélfia; sinfônicas de St. Louis, Atlanta, Baltimore, Detroit, Houston, Toronto e Ottawa, dentre outras. Na Europa, regeu a Filarmônica de Londres, Hallé, Orquestra Nacional de Lyon e Royal National Scottish. Estreou nos Estados Unidos à frente da Filarmônica de Nova York em 1998 e em 2002, foi convidado a assumir o posto de regente associado, cargo pela última vez ocupado por Leonard Bernstein. Em 2001 recebeu o Prêmio Martin Segall, concedido ao jovem talento de maior destaque do Lincoln Center; em 2004, ganhou o Grammy Latino na categoria Melhor Álbum Clássico com o seu primeiro CD, Jobim Sinfônico e o Emmy pelo programa New York City Ballet – Lincoln Center Celebrates Balanchine 100 na categoria Destaque de Programa de Classe Especial, transmitido ao vivo para todos os Estados Unidos. Com a Filarmônica de Londres, gravou pela Naxos obras de Ravel, Piazzolla, Martin e Tomasi.
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Série Memória: Discografia Brasileira / Música instrumental / Música clássica / álbuns.
* Publicado por ©Elfi Kürten Fenske