sexta-feira, julho 25, 2025

O silêncio das ideias, por Paulo Baía

O país sem estrelas: o apagamento dos intelectuais no Brasil
Há algo de assombroso pairando sobre a cena pública brasileira: o silêncio das ideias. Um silêncio que não é ausência de palavras, mas ausência de vozes com densidade, com coragem, com envergadura intelectual. Vozes que iluminem. Que desestabilizem certezas. Que nos lancem de volta à vertigem do pensamento. Não há mais estrelas visíveis no firmamento da vida nacional. Ou, talvez, estejamos olhando para um céu artificial, saturado de luzes falsas, de mediocridades histriônicas e de saberes domesticados. O jornalista Luiz Carlos Azedo, em sua leitura aguda e inquieta do Brasil contemporâneo, soou o alarme: vivemos uma época rarefeita de intelectuais à altura dos nossos dilemas históricos. E isso deveria nos ferir como uma revelação incômoda, inadiável.
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O problema, no entanto, é muito mais profundo do que a simples escassez de nomes de impacto. O que enfrentamos é um colapso estrutural das condições de emergência do pensamento crítico. A vida intelectual no Brasil foi sendo moldada, ao longo das últimas décadas, por forças que, embora travestidas de modernização, profissionalismo e méritos mensuráveis, acabaram por sufocar aquilo que sempre foi sua essência mais vital: a ousadia, a liberdade e a imaginação criadora. A institucionalização excessiva, a racionalização tecnocrática, o produtivismo compulsório e a hipercompetição entre pares corroeram os espaços possíveis da criação.

A exigência constante por pontuação, a obsessão pela quantificação da relevância, a estetização burocrática dos currículos e a vigilância simbólica dos pares formaram uma engrenagem de controle que transformou o pensamento crítico em um sistema de prestação de contas. E não há ciência humana viva sob vigilância contábil. Onde antes habitavam pensadores que escreviam com o corpo inteiro, com o espírito em combustão, com uma dose inegociável de desobediência intelectual, hoje proliferam burocratas do saber. Especialistas do óbvio. Intérpretes do já sabido. A rebeldia passou a ser confundida com indisciplina. A criatividade, com desvio. E o pensamento indisciplinado, com ameaça.
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Os estudos das áreas de ciências humanas, por sua vez, passaram a seguir um formato padronizado, insosso, de leitura árida e não convidativa. Escritas repetitivas, frias, sem inventividade. Textos que parecem ter sido gerados por algoritmos, não por seres humanos em carne viva. E o que se vê é uma estética empobrecida, onde a forma segue os protocolos do aceitável acadêmico, mas não arrisca, não respira, não seduz. A imaginação morreu nos rodapés das normas da ABNT. O ensaio foi sufocado pelo artigo. O livro foi encurralado pelo paper. E a subjetividade foi considerada uma ameaça à objetividade institucionalizada.

Os Qualis e os Rankings, que deveriam ser instrumentos de avaliação e incentivo à qualidade, tornaram-se clubes fechados de iguais. Formaram castas e geraram desigualdades hierárquicas fundadas não na qualidade do pensamento, mas na capacidade de adequação a protocolos cada vez mais estritos e autorreferentes. Tornaram-se o dispositivo mais eficiente de exclusão simbólica e epistemológica de toda forma de pensamento que desafia o formalismo. A criatividade passou a ser penalizada. E a ousadia, invisibilizada. Criou-se um ecossistema em que o valor de uma ideia depende mais de sua forma do que de seu conteúdo. O resultado é a domesticação do pensamento.
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Mas há exceções. Ainda bem. A literatura, o teatro e o cinema, mesmo duramente atravessados por crises e censuras, ainda escapam dessa estatização da mesmice. Ainda conservam a fagulha do incômodo, da beleza, da experimentação, do risco. São territórios onde a palavra ainda pode arder. Onde o gesto pode ainda ser um grito. Onde a linguagem resiste à planilha. São esses os lugares onde, muitas vezes, os poucos intelectuais ainda genuinamente críticos do nosso tempo têm encontrado abrigo, interlocução e fôlego. São espaços onde os escritores continuam a fazer o que sempre fizeram: pensar sentindo. Sentir pensando. Insistir em dizer o que não convém, com palavras que doem.

O apagamento das estrelas não é, portanto, um acidente. É uma operação contínua, silenciosa, persistente e profundamente perversa. E talvez a mais cruel de suas estratégias seja o pacto tácito de mediocridade que se estabelece entre os pares. Uma cumplicidade sem palavras, em que se apaga o brilho dos outros por medo de que a própria opacidade seja revelada. Muitos dos que poderiam brilhar foram desencorajados. Outros foram ridicularizados. E alguns, simplesmente, se exilaram em silêncio. As poucas estrelas que ainda brilham o fazem apesar disso tudo. Brilham como resistência. Brilham como desvio. Brilham como insubordinação. Mas pagam caro por sua luz.
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A figura do intelectual público, aquele que atravessa os muros da academia, que se arrisca no debate público, que enfrenta os poderes com a força das ideias, foi substituída por analistas de comportamento previsível, por comentaristas da repetição, por acadêmicos domesticados. Há uma intelligentsia emudecida no Brasil de hoje. Alguns foram cooptados pelos governos. Outros se perderam nos jogos de vaidade acadêmica. Muitos desistiram. Há também os que resistem. Mas seus espaços de fala são cada vez mais rarefeitos. Marginais. Solitários.

E o que se vê, por fim, é uma sociedade que deixou de valorizar o pensamento como instrumento de transformação. Preferimos economistas de planilha, influenciadores de frases feitas, tecnocratas da obviedade. O Brasil, que já teve seus intérpretes maiores, seus pensadores corajosos, seus escritores insurgentes, hoje parece satisfeito com a superficialidade dos discursos prontos. Em tempos de aceleracionismo digital, de redes sociais estridentes, de fake news e performatividade, o saber reflexivo se tornou um artigo fora de catálogo. Não interessa mais o que inquieta, mas o que confirma.
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O desaparecimento das estrelas não é um fenômeno astronômico. É um fenômeno político. Cultural. Epistemológico. Enquanto não compreendermos que sua ausência nos condena à repetição do mesmo, sob a tirania dos burocratas do saber e dos algoritmos da ignorância, seguiremos nesse deserto iluminado por holofotes vazios. O Brasil ainda tem quem pense. Ainda há aqueles que escrevem com sangue e lucidez. Mas falta quem brilhe. E falta, sobretudo, quem permita que o brilho floresça, sem ser imediatamente apagado por um sistema que teme a luz porque se habituou, irremediavelmente, à escuridão. Essa escuridão chamada burocracia indolor e opaca.
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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