terça-feira, junho 17, 2025

Lygia Santos: guardiã da memória negra, educadora do samba e voz ancestral da cultura brasileira

Lygia construiu pontes entre o morro e a universidade, entre o terreiro e o museu, entre a oralidade das rodas e o rigor da pesquisa

por Paulo Baía*
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Há pessoas que não morrem. Não por permanecerem biologicamente entre nós, mas por seguirem ecoando, transmutadas em voz de arquivo, em ritmo de terreiro, em verbo de resistência. Lygia Santos foi dessas. E se é forçoso empregar o pretérito ao seu nome neste momento de despedida, que ele seja logo seguido da eternidade dos substantivos que a definem: pesquisadora, museóloga, escritora, professora, militante, mulher negra e brasileira. Pois sua trajetória, construída com o rigor da intelectualidade e o pulsar da ancestralidade, desenha-se como uma linha de tambor que perpassa a história da cultura popular e do samba, inscrevendo no tempo a potência da memória social.
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Nascida filha do músico Donga, considerado autor do primeiro samba gravado, o célebre “Pelo Telefone”, e de Zaíra de Oliveira, cantora lírica de extraordinária sensibilidade, Lygia herdou de casa o que o mundo inteiro deveria ter aprendido nas escolas: que a cultura negra é o berço mais profundo da brasilidade. Sua formação inicial se deu no Instituto de Educação, onde se diplomou em magistério, mas seus estudos nunca estiveram apartados da vida e das ruas. Em plena ditadura militar, cursou Direito na Universidade Federal do Rio de Janeiro, talvez como forma de desafiar, com o saber jurídico, o cerco de opressões que sempre recaiu sobre as mulheres negras no Brasil. Mais tarde, concluiu sua graduação em Museologia na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, encontrando aí o campo onde sua paixão pela preservação da cultura e da memória ganharia força institucional.

Foi a partir daí que a obra de Lygia Santos passou a se entrelaçar com as engrenagens do patrimônio histórico brasileiro. Trabalhou no Museu da Imagem e do Som, no Museu do Primeiro Reinado, no Museu Villa-Lobos. Sua trajetória na gestão pública a levou aos mais altos postos da política cultural do Rio de Janeiro: foi Diretora Geral de Difusão Cultural da Secretaria Municipal de Educação e Cultura e também Diretora do Departamento de Dinamização de Museus da Fundação de Artes do Estado do Rio de Janeiro, a FUNARJ. Em todas essas instâncias, Lygia soube ser mais do que gestora: foi semeadora. Porque ela não apenas organizava acervos, ela os escutava. Sua escuta era instrumento de pesquisa e gesto de reparação.

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Lygia Santos – guardiã da memória negra

Autora do fundamental “Paulo da Portela: Traço de união entre duas culturas”, publicado pela Funarte em 1979, Lygia Santos ofereceu ao país muito mais do que uma biografia. Ela teceu um documento de alma, em que a trajetória do líder fundador da escola de samba Portela emerge como metáfora da tensão e do entrelaçamento entre o Brasil negro e o Brasil oficial. Ali, Paulo Benjamin de Oliveira, sambista, organizador, educador informal, reformador da estética e da ética do carnaval, é apresentado como figura arquetípica do elo entre as culturas afrodescendentes e o processo de modernização urbana da então capital federal. Lygia não apenas o narra: ela o restitui. E, ao fazê-lo, restitui também os sujeitos e saberes historicamente silenciados por uma historiografia que, por tanto tempo, preferiu os arquivos coloniais às vivências populares.
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Como professora, foi presença marcante nas Universidades Estácio de Sá e UniCarioca. Na primeira, fundou o Instituto do Carnaval, onde tratou de articular o ensino acadêmico à vivência da avenida, transformando o desfile em objeto de estudo e campo de reconhecimento epistemológico. Pois Lygia compreendia, com lucidez sociológica, que o carnaval não é espetáculo, é território. Um território simbólico e real, onde se produzem identidades, memórias, saberes e insurgências. Sua atuação como comentarista na TV Manchete e na TV Educativa, bem como sua longa participação no júri do “Estandarte de Ouro”, promovido pelo jornal O Globo, ampliaram ainda mais seu alcance como intérprete crítica da maior manifestação popular do Brasil.

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Donga e Clementina de Jesus no Teatro Opinião, em 1972. No canto, à esquerda, Lygia Santos – foto: acervo Arquivo Nacional

Mas sua militância não se restringiu à cultura. Lygia foi presença combativa no movimento negro. Atuou com vigor em projetos de valorização da identidade afro-brasileira, com atenção especial às mulheres e aos idosos. Participou do Clube da Maior Idade, entidade fundada pelo então senador Sérgio Cabral Filho, para defender os direitos da população acima de 50 anos. Nesse espaço, Lygia foi voz que conciliava política pública com afeto intergeracional, conectando a sabedoria dos mais velhos com a luta contra o etarismo e a invisibilização.
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Nos últimos anos, sua trajetória foi celebrada com justiça. Em 2002, prestou um belíssimo depoimento ao documentário O seu nome não caiu no esquecimento, dirigido por Dermeval Netto, sobre Paulo da Portela. Em 2003, foi homenageada no Espaço Cultural Pedra do Sal, lugar sagrado da diáspora africana no Rio, onde o samba nasceu entre rodas e terreiros. Em 2004, participou do simpósio sobre carnaval promovido pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura, levando sua experiência para o debate sobre políticas educacionais.

Na soma de sua vida, Lygia Santos foi arquiteta da memória e sacerdotisa do samba. Sua produção intelectual e sua atuação política são testemunhos de uma consciência crítica profundamente ligada à realidade brasileira, marcada por um racismo estrutural persistente, por uma exclusão histórica da população negra e por um descaso sistemático com os patrimônios imateriais do povo. E, no entanto, Lygia construiu pontes. Pontes entre o morro e a universidade, entre o terreiro e o museu, entre a oralidade das rodas e o rigor da pesquisa.
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A morte de Lygia é, ao mesmo tempo, uma ruptura e uma convocação. Rompe-se uma presença física que tanto nos ensinou. Convoca-se uma geração para que continue o trabalho que ela começou: o de garantir que os nomes e os feitos dos grandes da cultura popular brasileira jamais sejam esquecidos, apagados, caricaturados ou transformados em produto sem alma. Convoca-se também a academia para que reconheça, com a devida reverência, os saberes que brotam da experiência vivida, das ruas, das escolas de samba, dos quilombos e das favelas.
 
Na tessitura das ciências humanas, Lygia Santos representa o ponto de entrelaçamento entre história e memória, entre sociologia e afeto, entre política e cultura. Ela nos ensinou que preservar não é apenas guardar, mas lutar para que o que foi vivido possa continuar sendo vivido, com dignidade, com beleza, com justiça.
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Que seu nome, como o de Paulo da Portela, não caia no esquecimento. Que sua obra continue sendo lida, estudada, cantada e vivida. Que sua memória inspire novas gerações de pesquisadores e militantes a compreenderem que a cultura negra brasileira não é apenas objeto de estudo, é um projeto de mundo.
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Lygia vive. Nos livros, nos desfiles, nas aulas, nas vozes do povo. Vive no sopro das cuícas, na precisão das agogôs, nas palavras que resgatam e nos gestos que não se curvam. Vive em cada tambor que se recusa ao silêncio. Vive e viverá.
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Cabo Frio/RJ, junho de 2025
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Paulo Baía – Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

* Paulo Baía é sociólogo, cientista político e professor aposentado do Departamento de Sociologia da UFRJ. Suburbano de Marechal Hermes, é torcedor apaixonado do Flamengo e portelense de coração. Com formação em Ciências Sociais, mestrado em Ciência Política e doutorado em Ciências Sociais, construiu uma trajetória acadêmica marcada pelo estudo da violência urbana, do poder local, das exclusões sociais e das sociabilidades periféricas. Atuou como gestor público nos governos estadual e federal, e atualmente é pesquisador associado ao LAPPCOM e ao NECVU, ambos da UFRJ. É analista político e social, colunista do site Agenda do Poder e de diversos meios de comunicação, onde comenta a conjuntura brasileira com olhar crítico e comprometido com os direitos humanos, a democracia e os saberes populares. Leitor compulsivo e cronista do cotidiano, escreve com frequência sobre as experiências urbanas e humanas que marcam a vida nas cidades.
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** Leia outros artigos e crônicas do autor publicados na revista. clique aqui
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