“Comecemos por desmistificar o maior engano quando o tema é Patativa do Assaré: o poeta não foi o iletrado, o analfabeto, que o censo comum propaga. Antônio Gonçalves da Silva nasceu no dia 5 de março de 1909, na Serra de Santana, distante 18 km de Assaré, cidade da região do Cariri, interior do Ceará. Filho de pequenos proprietários rurais. Perde – em decorrência de uma enfermidade e de não haver, naquela época, médico na cidade de Assaré – a visão do olho direito então com quatro anos de idade. É tentadora a analogia com Camões e Homero, que também perderam a visão e que foram leituras importantes para Patativa. Mas a comparação para por aqui. A inserção contextual de cada poeta frente a sua terra e a seu povo é, sobremaneira, unilateral. Semelhança maior há com o afamado violeiro-cantador cearense Cego Aderaldo (1878–1967), já que além de conterrâneos e contemporâneos (obstante Aderaldo ser 31 anos mais velho), Patativa do Assaré, antes de se tornar poeta, foi violeiro-cantador. Em 28 de março de 1917, seu pai falece. O menino Antônio está então com 8 anos de idade. Passa desde então a trabalhar na terra deixada pelo pai que mais tarde seria dividida entre os irmãos. Seu trabalho na lavoura é concomitante com sua criação poética. Trabalhando o solo enraizava também sua poesia, daí impossível sair da serra de Santana, onde plantou sua roça até os 70 anos. Aos 12, passando poucos meses na escola, – e ainda dividindo as atividades escolares com o trabalho na roça –, é alfabetizado. Aprendera a ler na cartilha de Felisberto de Carvalho, editada por 67 anos (1892-1959) pela livraria Francisco Alves, e que foi muito usada nas escolas públicas de todo o país. Da cartilha da escola, apaixonou-se pela leitura, tornando-se um autodidata e um leitor contumaz. Leu com voracidade os poetas românticos, elegendo Castro Alves seu predileto, justamente por sua poesia de denúncia e protesto. Questões sociais que também demarcaram a poesia de Patativa. Leu o Tratado de versificação de Olavo Bilac e Guimarães Passos, o que o ajudou na concepção de poesias na forma culta…”
– Cláudio Portella, trecho inicial do prefácio ‘Seu Dotô me dê licença: Patativa do Assaré’. Do livro ‘Melhores Poemas’/Patativa do Assaré. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012

Seleta de poemas do Poeta Pássaro
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UM GRANDE POETA
Carregou da miséria o grande fardo,
Foi a pobreza sua companhia,
Esta andrajosa mãe da poesia
Nunca negou-lhe da tortura o dardo.
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E assim de olhar pedinte e passo tardo
Fora do mundo a lamentar vivia.
Hoje repousa sob a terra fria,
Já ninguém fala do indigente bardo.
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Eu, que na vida não gozei de nada,
Vou palmilhando aquela mesma estrada
Tendo por ele um sentimento nobre.
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Foi meu colega, foi meu grande amigo,
Autor do livro, Cantos de um mendingo,
Foi tão poeta que morreu de pobre.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
NANÃ
É triste a flor que desabrocha sem carinho
E sem carícia do sereno da manhã…
Assim nasceu, lá no sertão, minha Nanã,
Sem uma luz que iluminasse o seu caminho.
.
Com o pobre pai a morar num tosco ninho,
A desventura foi a sua negra irmã,
Enquanto a sorte protegia a cortesã,
A desdita lhe dava um pão magro e mesquinho.
.
Depois veio a seca cruel e assoladora,
Contra aquela linda florzinha encantadora
E a coitada morreu, mirrada pela fome.
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Hoje, um poeta chora triste esta saudade
E as aves cantam a chamar na solidão:
Nanã! Nanã! Nanã! seu doce e belo nome.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
CIÚME
Tal qual a ave noturna quando agoura
Que até faz a criança apavorar,
O ciúme lhe fez não me entregar
O soneto que eu fiz à professora.
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É bem livre e liberta a nossa loura
Como o pássaro que voa pelo ar,
Para a mesma prender e dominar
Tua força não é superiora.
.
Ciumento, egoísta, tenha calma
E não queira perder a sua alma,
É preciso saber que existe Deus.
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Se, com manhas, trapaças ou enredos,
Eu não quero saber dos teus segredos,
Não procure também saber dos meus.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
VACA ESTRELA E BOI FUBÁ
Seu dotô, me dê licença
Pra minha históra eu contá.
Se hoje eu tou na terra estranha
E é bem triste o meu pená,
Mas já fui muito feliz
Vivendo no meu lugá.
Eu tinha cavalo bom,
Gostava de campeá
E todo dia aboiava
Na portêra do currá.
Ê ê ê ê Vaca Estrela,
Ô ô ô ô Boi Fubá.
.
Eu sou fio do Nordeste,
Não nego o meu naturá
Mas uma seca medonha
Me tangeu de lá pra cá.
Lá eu tinha meu gadinho
Não é bom nem maginá,
Minha bela Vaca Estrela
E o meu lindo Boi Fubá,
Quando era de tardezinha
Eu começava a aboiá.
Ê ê ê ê Vaca Estrela
Ô ô ô ô Boi Fubá.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
INGRATIDÃO
Amai-vos uns aos outros, Ele dizia
Quando a santa doutrina apresentava
E aquela multidão que o escutava
Indiferente a voz do Mestre ouvia.
.
Além e mais além Ele seguia
E os exemplos de amor a todos dava,
Porém a humanidade sempre escrava
Do orgulho, da inveja e da anarquia.
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Morreu Jesus no topo do calvário,
Com o fim de remir o mundo vário
Foi seu sangue inocente derramado,
.
Mas, o mundo cruel e enfurecido
Em sequestros e bombas envolvido
Continua na lama do pecado.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
O POETA PATATIVA E A
SARIEMA DE TOTELINA
Totelina, minha amiga,
É preciso que eu lhe diga
Do que estou gozando aqui
Vale mais do que o cinema
O canto da sariema
Que você possui aí.
.
Logo que amanhece o dia
Procuro, com alegria,
No ouvido colocar
Meu aparelho auditivo
Para escutar, compassivo,
A sariema cantar.
.
No meu viver de poeta
Minha alegria é completa
Quando ela cantando está.
Sinto com muito carinho
Que estou vendo um pedacinho
Do sertão do Ceará.
.
Naquele ditoso dia
Que, com bastante alegria,
Você resolveu comprar
Este mimo de valor
Me fez um grande favor
Que só Deus pode pagar.
.
Vou lhe fazer um pedido
E espero ser atendido
Agora neste momento
Meu pedido é que você
Não venda nunca e nem dê
Este meu divertimento.
.
Para os versos terminar
Vou a verdade afirmar
Nesta terra de Iracema:
Todos três merecem viva!
O poeta Patativa,
Totelina e a sariema.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
SOU CABRA DA PESTE
Eu sou de uma terra que o povo padece
Mas nunca esmorece, procura vencê,
Da terra adorada, que a bela caboca
De riso na boca zomba no sofrê.
.
Não nego meu sangue, não nego meu nome,
Olho para fome e pergunto: o que há?
Eu sou brasilêro, fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.
.
Tem munta beleza minha boa terra,
Derne o vale à serra, da serra ao sertão.
Por ela eu me acabo, dou a própria vida,
É terra querida do meu coração.
.
Meu berço adorado tem bravo vaquêro
E tem jangadêro que domina o má.
Eu sou brasilêro, fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.
.
Ceará valente que foi munto franco
Ao guerrêro branco Soare Moreno,
Terra estremecida, terra predileta
Do grande poeta Juvená Galeno.
.
Sou dos verde mare da cô da esperança,
Que as água balança pra lá e pra cá.
Eu sou brasilêro, fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.
.
Ninguém me desmente, pois, é com certeza,
Quem qué vê beleza vem ao Cariri,
Minha terra amada pissui mais ainda,
A muié mais linda que tem o Brasí.
.
Terra da jandaia, berço de Iracema,
Dona do poema de Zé de Alencá.
Eu sou brasilêro, fio do Nordeste,
Sou cabra da peste, sou do Ceará.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
.
Leia > Patativa do Assaré – o poeta do sertão
COISA ESTRANHA
Esta noite, já quase madrugada,
No silêncio melhor de toda gente,
Despertei do meu sono de inocente
Pelo doido ladrar da cachorrada.
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E fiquei a dizer: não devo nada,
Criminoso não sou, vivo contente.
Quem me vem perturbar, tão insolente,
O repouso feliz desta morada?
.
Me fugiram os pulsos, pois sou fraco
E lembrei-me de gato, de cassaco
E raposa, mexendo no poleiro.
.
Porém logo notei estranha coisa:
Nem cassaco, nem gato, nem raposa.
Era um vice-prefeito em meu terreiro.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—

MINHA IDADE E MINHA POESIA
[Ao amigo e colega Elói Telles]
.
Completei noventa anos
É idade bem comum,
Vou seguindo novos planos
Para os meus noventa e um,
Chegando aos noventa e dois
Procuro logo depois
O meu regime mudar,
Mudarei de refeição
Comendo feijão com pão
Para a saúde aumentar.
.
Quando mudar de comida,
Eu mudarei de atitude
Vou levando minha vida
Com poesia e saúde,
Sem faltar inspiração
Conhecendo com razão
Que o mundo foi Deus quem fez
E a vida não é sentença
Com a divina licença
Recito aos noventa e três.
.
Se a nossa vida é um drama
E este mundo é um teatro,
Conduzindo a mesma fama
Recito aos noventa e quatro,
Para mostrar o meu dom
Como sou poeta bom,
Com a poesia brinco
E mesmo neste absurdo
Cachingando, cego e surdo
Recito aos noventa e cinco.
.
Canto a Terra e o Infinito
Neste simples português,
Compondo verso bonito
Recito aos noventa e seis,
Cortando como gilete
Passo por noventa e sete
E vou aos noventa e oito,
Não há quem me desaprove
Que no meus noventa e nove
Rimo afoito com biscoito.
.
Mas quando completar cem,
Aí é dura a parada,
Não dou bolas pra ninguém
Nem quero saber de nada,
Vou todo cheio de ruga
.
Igualmente a tartaruga,
Com o pensamento fraco
Caducando lá num canto
Rimando diabo com santo
E careta com macaco.
.
Veja amigo esta verdade
Cheia de filosofia,
Isto aí é minha idade
Com a minha poesia.
.
Responda com brevidade
Dizendo se recebeu
A nossa velha amizade
Eu acho que não morreu.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
ACRÓSTICO ESPALHAFATOSO
[Acróstico espalhafatoso, obedecendo
o seguinte nome: Vicente Alencar]
.
Visão do bosque sedutora e crente
Incauto drama perpassando a vinda
Cortando a selva transviada e linda
Ecos doridos de um cantar dolente.
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No frio sopro do pampeiro quente
Tirita o nauta de expressões infindas
Entre as riquezas que o ladrão nos brinda
Agrilhoando o coração da gente.
Lamenta e chora o jubiloso triste
E a patavina que no mundo existe
No firme posto do legal papel,
.
Cortando a barba do velhinho infante
Acena e brada a repetir constante:
Roxo, rajado, confusão, babel.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
É PRECISO SABER
COMPOR SONETO
Poesia é um dom da natureza
Que nos enche de graça e de alegria
Mesmo o tema tratando de ironia,
De revolta, de choro e de tristeza.
.
Foi Olavo Bilac com certeza,
Com o Guima na sua companhia
Nos mostrando a maior filosofia
Versejando com muita realeza.
.
Eu nasci inspirado sertanejo
Com a lira na mente tudo vejo
Um só erro no verso não cometo.
.
Pois conheço a ciência bem completa
Para o cara provar que é bom poeta
É preciso saber compor soneto.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
FUGA DE VÊNUS
Veja a verdade que lhe conto agora;
Deus com a sua grande majestade,
Em tudo mostra prova de verdade,
Não é na praça que a verdade mora.
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No meu sertão eu conheci outrora,
Lá no recanto duma soledade,
Bonita jovem duma qualidade
Muito mais linda do que a deusa Flora.
.
Aquela meiga e rude camponesa,
Era dotada da maior beleza,
Com simpatia de fazer sorrir.
.
Era atraente, tão simpática e bela
Que contemplar a formosura dela,
Vênus não pôde, teve que fugir.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
O QUE É FOLCLORE?
Posso lhe afirmá também:
Folclore é superstição,
O medo que você tem
Do canto do corujão.
Folclore é aquele instrumento
Para o seu divertimento
Que chamamos berimbau;
E também a brincadeira
Ritmada e prazenteira
Chamada Maneiro-Pau.
.
Folclore, meu camarada,
Ouvimos a toda hora,
É históra de alma penada,
De lobisome e caipora.
Preste atenção e decore,
Pois, com certeza, folclore
Ainda posso dizer
Que é aquele búzio de osso
Que você põe no pescoço
Do filho pra não morrer.
.
É o aboio magoado
.
Do vaqueiro na amplidão.
É o festejo animado
Da debulha do feijão,
Carro de boi e gaiola
E desafio, à viola,
Do cantador popular
E também a toadinha
Da Ciranda-Cirandinha
Vamos todos cirandar.
.
Eu e você que vivemos
No nosso pobre sertão
Muitas coisas inda temos
Da popular tradição:
Além de outras, o girau
E a carrocinha de pau,
Em vez de bonito carro.
Que prazer, satisfação,
A gente comer pirão
Mexido em prato de barro!
.
E agora, prezado irmão,
Estes versos lhe dedico.
Lhe dei alguma noção
Do nosso folclore rico.
Não posso continuar,
Pois nada pude estudar,
De dentro do tema saio.
O resto lhe dirá tudo
Romão Filgueira Sampaio,
Mainá e Câmara Cascudo.
.
De conservar o folclore
Todos têm obrigação,
Para que nunca descore
A popular tradição.
Os homens de grande estudo,
Como Mainá e Cascudo,
Guardam sempre nos arquivo
Populares tradições,
Cantigas, superstições
E costumes primitivos.
.
Você, caboclo, que cresce,
Sem instrução nem saber,
Escuta, mas não conhece
Folclore o que quer dizer:
O folclore é um pilão,
É um bodoque, um pião,
Garanto que também é
Uma grosseira cangalha,
Aparelhada de palha
De palmeira ou catolé.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
Leia > Patativa do Assaré – o poeta do sertão
MINHA REZA
A fome é o maior martírio
Que pode haver neste mundo.
Ela provoca delírio
E sofrimento profundo,
Tira o prazer e a razão.
Quem quiser ver a feição
Da cara da mãe da peste,
Na pobreza permaneça,
Seja agregado e padeça
Uma seca no Nordeste.
.
A fome é fera homicida,
Destrói a nossa matéria
E elimina a nossa vida.
De tudo quanto é miséria,
A fome tem uma dose,
É mãe da tuberculose
E da sepultura irmã:
Provoca tanta anarquia
Que o devoto contraria
A oração da manhã.
.
A Divina Providência
Sei que há de me perdoar,
Pois, quem vive na indigência,
Sem almoço e sem jantar,
Perde a esperança e a crença,
Em alegria não pensa
Nem quer saber de cantiga.
Aquele que está com fome
Se esquece do próprio nome,
Só se lembra da barriga.
.
No ano cinquenta e oito,
Naquela crise danada
Que, quem comia biscoito,
Terminou sem comer nada,
No distrito do Barreiro,
O cidadão verdadeiro,
Joaquim Ferreira dos Santos,
Fiado vendia milho
A neto, avô, pai e filho
Daqueles pobres recantos.
.
Do seu milho empaiolado
Que havia grande porção,
Vendia sempre fiado,
Sem receber um tostão,
Por ser generoso e franco.
Ia lá o preto e o branco
Também o bonito e o feio
E enquanto não acabou-se,
Quem à sua casa fosse
Voltava de saco cheio.
.
A onda estava bem grossa
E a frequência era geral,
Como formiga de roça
Dentro do mandiocal.
Ninguém saía da linha
Quando um ia, o outro vinha
E os martírios eram tantos
Que o rico não considera
E o Deus do Barreiro era
Joaquim Ferreira dos Santos.
.
Eu tinha cinco mininos,
Estavam pisando em brasa,
Todos cinco pequeninos
Com fome dentro de casa.
Naquele grande aperreio,
Não encontrando outro meio,
Fui logo dizendo assim:
Não temos o que comer,
Eu vou também me valer
Do paiol de seu Joaquim.
.
E fui dormir no sentido
De também levar meu saco,
Mas depois de ter dormido
Acordei bastante fraco
E, para Deus me ajudar,
Me ajoelhei pra rezar,
Pensando em meus tristes prantos
E, com o milho em memória,
Comecei rezando: Glória
.
Joaquim Ferreira dos Santos.
Naquele instante eu notei
Que estava rezando errado
E depressa procurei
Rezar com maior cuidado.
Recorri à Santa Madre
E disse: Em nome do Padre
Mas, ao dizer: e do Filho,
Fui de novo atrapalhando,
Sem assunto, perguntando:
– Seu Joaquim, inda tem milho?
.
E então, como quem se enfeza,
Já bastante aperreado,
Caçando na mente a reza
Que a mamãe tinha ensinado,
Segui na mesma peleja:
Bendito e louvado seja
O cidadão verdadeiro,
Pra sempre seja louvado
Quem vende milho fiado
No distrito do Barreiro.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—

A TRISTE PARTIDA
Passou-se setembro,
outubro e novembro,
estamos em dezembro,
meu Deus que é de nós?
assim diz o pobre
do seco Nordeste
com medo da peste
e da fome feroz.
.
A treze do mês
fez a experiência
perdeu sua crença
nas pedras de sal
com outra experiência
de novo se agarra
esperando a barra
do alegre Natal.
.
Passou-se o Natal
e a barra não veio
o sol tão vermeio
nasceu muito além
na copa da mata
buzina a cigarra
ninguém vê a barra
pois barra não tem.
.
Sem chuva na terra
descamba janeiro
até fevereiro
no mesmo verão
reclama o roceiro
dizendo consigo:
meu Deus é castigo
não chove mais não.
.
Apela pra março
o mês preferido
do santo querido
senhor São José
sem chuva na terra
está tudo sem jeito
lhe foge do peito
o resto da fé.
.
Assim diz o velho
sigo noutra trilha
convida a família
e começa a dizer:
Eu vendo o burro,
o jumento e o cavalo
o jumento e o cavalo
nós vamos a São Paulo
viver ou morrer.
.
Nós vamos a São Paulo
que a coisa está feita
por terra alheia
nós vamos vagar
se o nosso destino
não for tão mesquinho
pro mesmo cantinho
nós torna a voltar.
.
Venderam o burro,
jumento e cavalo
até mesmo o galo
venderam também
e logo aparece
um feliz fazendêro
por pouco dinhêro
lhe compra o que tem.
.
Em cima do carro
se junta a família
chega o triste dia
já vão viajar
a seca é terrível
que tudo devora
lhe bota pra fora
do torrão natá.
.
No segundo dia
já tudo enfadado
o carro embalado
veloz a correr
o pai de família
triste e pesaroso
um filho choroso
começa a dizer.
.
De pena e saudade
papai, sei que morro
meu pobre cachorro
quem dá de comer?
E outro responde:
Mamãe, o meu gato
da fome e maltrato
Mimi vai morrer.
.
A mais pequenina
tremendo de medo
mamãe, meu brinquedo
e meu pé de fulô
a minha roseira
sem água ela seca
sem água ela seca
e minha boneca
também lá ficou.
.
Assim vão deixando
com choro e gemido
seu Norte querido
um céu lindo azul
o pai de família
nos filhos pensando
o carro rodando
na estrada do Sul.
.
O carro embalado
no topo da serra
olhando pra terra
seu berço seu lar
aquele nortista
partido de pena
de longe acena
adeus, Ceará.
.
Chegaram em São Paulo
sem cobre e quebrado
o pobre acanhado
procura um patrão
só vê cara feia
de uma estranha gente
tudo é diferente
do caro torrão.
.
Trabalha um ano
dois anos mais anos
e sempre no plano
de um dia inda vim
o pai de família
triste maldizendo
assim vão sofrendo
tormento sem fim.
.
O pai de família
ali vive preso
sofrendo desprezo
e devendo ao patrão
o tempo passando
vai dia e vem dia
aquela família
não volta mais não.
.
Se por acaso um dia
ele tem por sorte
notícia do Norte
o gosto de ouvir
saudade no peito
lhe bate de molhos
as águas dos olhos
começam a cair.
.
Distante da terra
tão seca mas boa
sujeito a garoa
a lama e o paul
é triste se ver
um nortista tão bravo
viver sendo escravo
na terra do Sul.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
—
BRASI DE CIMA E BRASI DE BAXO
Meu compadre Zé Fulô,
Meu amigo e companhêro,
Faz quage um ano que eu tou
Neste Rio de Janêro;
Eu saí do Cariri
Maginando que isto aqui
Era uma terra de sorte,
Mas fique sabendo tu
Que a miséra aqui no Su
É esta mesma do Norte.
.
Tudo o que procuro acho.
Eu pude vê neste crima,
Que tem o Brasi de Baxo
E tem o Brasi de Cima.
Brasi de Baxo, coitado!
É um pobre abandonado;
O de Cima tem cartaz,
Um do ôtro é bem deferente:
Brasi de Cima é pra frente,
Brasi de Baxo é pra trás.
.
Aqui no Brasi de Cima,
Não há dô nem indigença,
Reina o mais soave crima
De riqueza e de opulença;
Só se fala de progresso,
Riqueza e novo processo
De grandeza e produção.
Porém, no Brasi de Baxo
Sofre a feme e sofre o macho
A mais dura privação.
.
Brasi de Cima festeja
Com orquesta e com banquete,
De uísque dreá e cerveja
Não tem quem conte os rodete.
Brasi de Baxo, coitado!
Vê das casa despejado
Home, minino e muié
Sem achá onde morá
Proque não pode pagá
O dinhêro do alugué.
.
No Brasi de Cima anda
As trombeta em arto som
Ispaiando as porpaganda
De tudo aquilo que é bom.
No Brasi de Baxo a fome
Matrata, fere e consome
Sem ninguém lhe defendê;
O desgraçado operaro
Ganha um pequeno salaro
Que não dá para vivê.
.
Inquanto o Brasi de Cima
Fala de transformação,
Industra, matéra-prima,
Descobertas e invenção,
No Brasi de Baxo isiste
O drama penoso e triste
Da negra necissidade;
É uma coisa sem jeito
E o povo não tem dereito
Nem de dizê a verdade.
.
No Brasi de Baxo eu vejo
Nas ponta das pobre rua
O descontente cortejo
De criança quage nua.
Vai um grupo de garoto
Faminto, doente e roto
Mode caçá o que comê
Onde os carro põe o lixo,
Como se eles fosse bicho
Sem direito de vivê.
.
Estas pequenas pessoa,
Estes fio do abandono,
Que veve vagando à toa
Como objeto sem dono,
De manêra que horroriza,
Deitado pela marquiza,
Dromindo aqui e aculá
No mais penoso relaxo,
É deste Brasi de Baxo
A crasse dos Marginá.
.
Meu Brasi de Baxo, amigo,
Pra onde é que você vai?
Nesta vida do mendigo
Que não tem mãe nem tem pai?
Não se afrija, nem se afobe,
O que com o tempo sobe,
O tempo mesmo derruba;
Tarvez ainda aconteça
Que o Brasi de Cima desça
E o Brasi de Baxo suba.
.
Sofre o povo privação
Mas não pode recramá,
Ispondo suas razão
Nas coluna do jorná.
Mas, tudo na vida passa,
Antes que a grande desgraça
Deste povo que padece
Se istenda, cresça e redrobe,
O Brasi de Baxo sobe
E o Brasi de Cima desce.
.
Brasi de Baxo subindo,
Vai havê transformação
Para os que veve sintindo
Abondono e sujeição.
Se acaba a dura sentença
E a liberdade de imprensa
Vai sê legá e comum,
Em vez deste grande apuro,
Todos vão tê no futuro
Um Brasi de cada um.
.
Brasi de paz e prazê,
De riqueza todo cheio,
Mas, que o dono do podê
.
Respeite o dereito aleio.
Um grande e rico país
Munto ditoso e feliz,
Um Brasi dos brasilêro,
Um Brasi de cada quá,
Um Brasi nacioná
Sem monopolo istrangêro.
– Patativa do Assaré, em ‘Melhores Poemas‘. Seleção e prefácio Cláudio Portella. Global Editora, 2012
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